- Época
A autocrítica que o PT não fez
A República brasileira hoje enfrenta o maior inimigo que já teve: Jair Bolsonaro. O candidato do PSL não representa só a herança da ditadura militar: representa o porão, a facção que se opunha à abertura de Geisel — que, a propósito, chamou Bolsonaro de “mau militar”. Os cinco generais que Bolsonaro pretende colocar no ministério não estarão lá para administrar suas pastas, mas para manter a ameaça de golpe permanente. Chegamos a um ponto em que Marine Le Pen, a candidata da extrema-direita francesa, declarou que as coisas que Bolsonaro diz seriam inaceitáveis na França. E a questão é esta: somos uma sociedade como a França, em que mesmo a extrema-direita recusaria Bolsonaro? Ou somos um daqueles negócios exóticos e atrasados para quem o mundo olha e pensa “Eles são assim mesmo, não tem jeito”?
Só Fernando Haddad e o Partido dos Trabalhadores podem defender a República brasileira da ameaça Bolsonaro.
Não, não é a situação ideal.
Mas é o que temos para hoje. A República exige que os brasileiros tenham em quem votar contra Bolsonaro. Para se tornar essa opção, o PT precisa deixar claro que, se Fernando Haddad for eleito presidente, não repetirá os erros que causaram a queda de Dilma Rousseff em 2016.
O partido deveria ter feito uma autocrítica nos últimos anos. Se tivesse falado abertamente sobre os casos de corrupção envolvendo petistas ou sobre o desastre da política econômica do primeiro mandato de Dilma, seria muito mais fácil prometer que nada disso aconteceria de novo.
Não se deve esperar que o PT passe o segundo turno pedindo desculpas, nem eu defendo que o faça. Campanhas eleitorais são sobre o futuro, e, se formos falar de autocrítica, a turma de Bolsonaro ainda nos deve explicações sobre o assassinato de Vlado Herzog, a explosão da dívida externa nos anos 70, a recessão de 1981, o Maluf e o próprio Bolsonaro.
Mas é importante que as propostas do PT neste segundo turno deixem claro que o partido entendeu o que fez de errado quando foi governo.
Aqui vão alguns pontos que deveriam ter constado em uma autocrítica do PT e minhas sugestões de propostas que deixariam claro que o partido aprendeu com seus erros.
Em primeiro lugar, o PT deveria ter reconhecido que desviou bastante dinheiro da Petrobras. Depois do que a Lava Jato revelou, sabemos que os esquemas que abasteceram o PT já existiam havia décadas; mas garanto que não foi o presidencialismo de coalizão ou a cultura política brasileira que obrigaram os petistas a aceitar subornos milionários do cartel das empreiteiras. Como disse Jaques Wagner, o partido lambuzou-se.
O PT se defende dizendo que nenhum partido fortaleceu mais as instituições de controle, que os ministros que condenaram os petistas foram nomeados por Lula e Dilma e que foram presidentes petistas que assinaram a Lei da Ficha Limpa e a Lei das Delações Premiadas.
Isso é tudo verdade, e o partido tem todo o direito de reivindicar essa herança na campanha eleitoral de 2018. Em especial contra Bolsonaro, cuja turma teria pendurado Sergio Moro no pau de arara se o juiz se metesse a investigar, digamos, o Costa e Silva.
O problema é que, como disse o filósofo Ruy Fausto, o PT fez a autocrítica errada. Os fatos eram: o PT tomou iniciativas importantes contra a corrupção, mas também cometeu grandes crimes. A autocrítica certa era: cometemos muitos crimes. A autocrítica feita depois do impeachment foi: as instituições de controle estão descontroladas.
Para corrigir seu surto de estupidez pós-impeachment, o PT tem de se comprometer a respeitar a Lava Jato. O PT não pode propor nada que enfraqueça o Ministério Público ou possa ser interpretado como ameaça à imprensa. Tem de propor, enfim, o mesmo respeito às instituições que demonstrou quando foi governo.
Da mesma forma, o PT tem todo o direito de discordar da decisão que condenou Lula, mas um novo governo do PT deve deixar claro que Lula se defenderá dentro das regras da Justiça brasileira, sem interferência do novo presidente da República.
Defender a Lava Jato, aliás, traz vantagens para o PT em 2018. Em 2016, a operação realmente deu a impressão de que só o partido era corrupto. De lá para cá, os adversários do PT caíram na rede da operação, um a um, mesmo que depois tenham escapado da prisão por manobras que a direita sabe fazer melhor que a esquerda.
O PT também deve desculpas ao público pela política econômica implementada por Dilma Rousseff em seu primeiro mandato, a chamada Nova Matriz Econômica (NME).
A NME começou como um programa mais ou menos ideológico reivindicado pelo setor industrial — o que a economista Laura Carvalho chamou de “Agenda Fiesp” —, com redução forçada de juros e intervenções no setor elétrico. Deu errado e, conforme a eleição se aproximava, virou um negócio meio avacalhado, com desonerações de impostos para o empresariado. No fim das contas, o crescimento não veio, e o governo quebrou, processo bem descrito no livro Como matar a borboleta azul, da economista e colunista de ÉPOCA Monica de Bolle.
Já houve esboços tímidos de autocrítica petista na área econômica. O partido — e a própria Dilma — já reconheceu que as desonerações da folha de pagamentos foram um erro, um negócio tão imbecil que o Paulo Guedes resolveu copiar e incluir no programa do Bolsonaro.
Mas, para que o partido recupere a reputação de responsabilidade, o PT precisa enfatizar muito mais a necessidade de enfrentar nosso problema fiscal, a situação terrível em que se encontram as contas públicas.
O programa do PT defende unificar os regimes da Previdência, o que seria um avanço, mas não é suficiente. O programa de compromisso proposto por Samuel Pessôa na Folha de S.Paulo do último domingo — com alguma flexibilização do teto de gastos para facilitar os investimentos, impostos sobre ricos e reforma da Previdência — é um bom ponto de partida para a conversa.
E é importante lembrar: o PT já geriu a economia brasileira com grande competência. A gestão de Palocci no primeiro governo Lula é reconhecida por todos os economistas como exemplar. Sim, ter chamado o Meirelles ajudou muito. A política de combate à crise econômica de 2008 foi bastante eficiente.
Há, portanto, uma herança de competência macroeconômica petista, mas para reivindica-la o PT precisa reconhecer que o que deu certo em seus governos não foi o que seus documentos internos defenderam. Esses documentos deveriam enfatizar o que o partido fez de certo, não o que faz sucesso nos departamentos universitários em que os petistas dão aula. E, finalmente, a Venezuela.
Esse talvez seja o erro mais estúpido do PT, porque, nesse caso, não há qualquer fator atenuante. Não há crise do euro, não há política do Fed, não há necessidade de montar alianças no Congresso, não há nada que tenha obrigado o PT a apoiar Nicolás Maduro.
Em 13 anos de governo, o PT não deu um único passo em direção à venezuelização. A imprensa investigativa, os tribunais, o Congresso, todos viveram uma era de ouro durante os governos petistas — e, no fim das contas, derrubaram Dilma em 2016. Não conseguiram a mesma coisa contra Temer, que muito mais o merecia. E ninguém investiga, condena ou derruba general.
Por que, então, defender Maduro? Os parentes ideológicos do PT são Mujica e Bachelet. Esses, sim, governaram no espírito da social-democracia que Haddad invocou em sua entrevista ao Jornal Nacional.
Haddad, aliás, vem fazendo progressos em todas essas frentes. Já abandonou a proposta petista de nova Constituição, defende — ainda sem a ênfase necessária — reformar a Previdência, reconheceu que a Venezuela não é mais uma democracia. Seu encontro recente com Joaquim Barbosa foi um passo na direção certa que superou as expectativas.
Uma autocrítica nos últimos anos teria sido mais suave, mais gradual. Mas, se for necessário fazê-la na marra, sob golpes da opinião pública, nos próximos dias, que o PT a faça assim.
E nada, nada do que defendi até agora impediria o PT de fazer o que sempre fez bem: trazer os pobres brasileiros para dentro da democracia e do mercado. Isso é a civilização. Bolsonaro é outra coisa.
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Celso Rocha de Barros é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford, Inglaterra
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