sexta-feira, 30 de junho de 2023

José Eli da Veiga - A soberba do pensamento econômico

Valor Econômico

A “economia positiva” deixou de lado muitos dos difíceis aspectos morais, que afetam o comportamento humano

Engenharia e ética são as duas dimensões essenciais do pensamento econômico. Têm sido inócuas as tentativas de isolar apenas a mais instrumental, com a ingênua pretensão de purificá-lo. Têm sido até mais precárias que as inventadas nos 150 anos que separaram a obra clássica de Adam Smith (1776) da de Lionel Robbins (1932).

Claro, são duas tradições bem mais antigas. A que inclui a ética remonta a Aristóteles, para quem a finalidade do Estado deveria ser a promoção comum de uma boa qualidade de vida. E lhe foi contemporânea a exclusivamente logística proposta por Kautilya, conselheiro e ministro do avô do célebre Ashoka.

Desde meados do século passado, só diminuiu o peso relativo do componente ético. A metodologia da chamada “economia positiva” não apenas se esquivou de posturas normativas como também acabou por deixar de lado muitos dos difíceis aspectos morais, que afetam o comportamento humano.

Ao examinar as proporções das duas ênfases em publicações acadêmicas sobre economia, salta aos olhos a aversão à dimensão ética e o descaso pela influência de considerações deontológicas no tocante a condutas individuais e sociais. Um crescente e empobrecedor distanciamento.

Ao mesmo tempo, por mais importantes que sejam os problemas suscitados por motivações e realizações sociais, é impossível negar certas virtudes da ótica engenheira. É a própria natureza dos fatos econômicos que dá, a ambas, alto poder de persuasão, por menos que se queira reconhecer.

Para ilustrar, tomem-se os melhores estudos sobre os tragicamente atuais problemas de desnutrição. O fato de irromperem fomes coletivas, mesmo em situações de grande e crescente disponibilidade de alimentos, pode ser melhor analisado mediante os padrões de interdependência ressaltados pela teoria do equilíbrio geral.

Ou seja, a perspectiva aética do pensamento econômico não precisa ser necessariamente infrutífera. Mas poderia se tornar muitíssimo mais proveitosa se não pretendesse descartar as incontestáveis considerações éticas que moldam o comportamento e o juízo dos seres humanos.

Infelizmente, não tem sido a propensão predominante entre os mais influentes economistas. Partidários da tendência engenheira não apenas abominam os também éticos como são capazes de alta crueldade, sempre que algum dos seus decide romper com tal sectarismo.

Emblemático foi o banimento do genial “NGR”: Nicholas Georgescu-Roegen (1906-1994). Chegou a ser endeusado por promover decisivos avanços da Microeconomia, graças à sua invejável sapiência matemática. No entanto, assim que descortinou a incongruência de teorias econômicas sem ética, foi condenado ao ostracismo.

Neste caso, o Torquemada foi alguém de particular relevância na história do pensamento econômico: Paul Samuelson (1915-2009). Primeiro estadunidense a receber o prêmio Nobel de Economia, em 1970, é dele o livro-texto introdutório mais utilizado no mundo: Economia, lançado em 1948, agora, na 19ª edição.

Samuelson dignificou NGR como “pioneiro da economia matemática”, “economista dos economistas” e “scholar’s scholar”. Isto em prefácio ao livro Analythical Economics, no qual NGR reuniu, em 1966, uma dúzia de artigos publicados a partir de seu segundo pós-doc (1935-6), supervisionado por Joseph Schumpeter (1883-1950), em Harvard.

Só que, na abertura do livro, incluiu uma inédita “1ª parte”, de cinco capítulos, em 126 páginas, com exposição de estudos inspirados pelo pós-doc anterior, no University College London (1930-2), com o estatístico e filósofo da ciência Karl Pearson (1857-1936). Com certeza, Samuelson leu, mas não entendeu, essa “1ª parte”.

NGR chegara à conclusão de que a essência do pensamento econômico transmitido pelos modelares manuais era não apenas inteiramente mecânica como escandalosamente avessa à evolução e à física moderna. Se assim não fosse, os economistas já teriam sido levados a se afligir - e muito! - com as futuras gerações.

Ora, ao apontar tamanhos déficits epistemológico e ético no pensamento econômico padrão, NGR passou a ser visto pelos cardeais do establishment acadêmico como um transgressor a ser aniquilado. Oportunidade de ouro surgiu, em 1973, na assembleia da American Economic Association, que coroou o seu encontro anual.

NGR pediu transcrição em ata do singelo manifesto “Rumo a uma Economia Humana”, lançado pelo movimento pacifista-cristão Fellowship of Reconciliation. Depois de sério tumulto, o texto acabou saindo na edição de maio de 1974 da American Economic Review, mas de forma quase ilegível, deixando NGR arrasado.

O epitáfio esperou 1976, quando saiu a décima edição do admirado livro-texto de Samuelson. Em peculiar nota de rodapé, ele advertiu os leitores sobre o esconjuro. Um verdadeiro ícone do gigantesco desprezo que o cânone econômico nutre pelo futuro.

Três livros em português serão muito úteis ao leitor fisgado: Sobre Ética e Economia, de Amartya Sen (Companhia das Letras, 1999); Decrescimento, de NGR (Senac-SP, 2012) e A Natureza como Limite da Economia, de Andrei Cechin (Senac-SP, 2010).

*José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP, está lançando o livro “O Antropoceno e as Humanidades” (Editora 34)

Nenhum comentário: