sábado, 1 de julho de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Decisão do TSE abre caminho à direita civilizada

O Globo

Com Bolsonaro inelegível, rearranjo de forças políticas traz oportunidade para quem tenta romper polarização

Era previsível a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que condenou, por cinco votos a dois, o ex-presidente Jair Bolsonaro por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, no episódio em que reuniu embaixadores no Palácio da Alvorada, em 18 de julho do ano passado, para atacar o sistema eleitoral brasileiro e impulsionar sua candidatura à Presidência. Diante do desprezo pelas instituições e do vale-tudo para derrotar o petista Luiz Inácio Lula da Silva, não havia outro desfecho possível. Nem o próprio Bolsonaro, nem seus advogados, nem seus mais fiéis aliados imaginavam que ele fosse escapar de ficar inelegível por oito anos.

Nos últimos dias ele vinha tentando minimizar o encontro com os embaixadores, insinuando tratar-se de episódio de rotina, sem caráter eleitoral. Seus argumentos foram desmontados pelos ministros Benedito Gonçalves (relator do processo), Floriano de Azevedo Marques, André Tavares, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes (presidente do TSE). Todos entenderam que a reunião não teve outro propósito além do eleitoral. Sem nenhuma prova para embasar suas acusações, Bolsonaro atacou o sistema eletrônico de votação com o objetivo nítido de semear falsas dúvidas junto ao eleitorado e de preparar o terreno para contestar a vitória provável do adversário.

O julgamento no TSE mostra que o Brasil segue na direção certa ao exigir dos candidatos — em especial à Presidência — comportamento compatível com o posto a que almejam. Sobre os ombros de Bolsonaro, pesam diversas acusações, e a reunião com os embaixadores era apenas uma. Não faria sentido, depois do festival de ataques à democracia e dos arroubos golpistas, absolvê-lo e permitir que concorresse na próxima eleição. Basta comparar o Brasil aos Estados Unidos, onde a inexistência de uma Corte eleitoral permite que o ex-presidente Donald Trump, mesmo respondendo a 37 acusações na Justiça e já tendo sido denunciado em uma, concorra novamente à Presidência com chance real de voltar à Casa Branca. É um absurdo.

Além de fortalecer a democracia brasileira, a condenação de Bolsonaro pelo TSE abre perspectivas alvissareiras na política nacional. Sua saída de cena contribui para esvaziar o radicalismo de extrema direita que o cerca e poderá abrir caminho à emergência de uma direita civilizada, capaz de defender o ideário conservador dentro das regras do jogo democrático. Nomes como os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), poderão vir a representá-la. É provável também que a ausência de Bolsonaro nas urnas dê espaço a candidatos de centro que hoje não conseguem romper a polarização entre petismo e bolsonarismo.

Evidentemente não se deve menosprezar a força política de Bolsonaro, que perdeu a eleição por margem estreita, 1,8% dos votos. Ainda que não seja candidato, será um cabo eleitoral poderoso, capaz de influenciar parte relevante do eleitorado. Não se sabe também até que ponto tirará proveito político do discurso de vitimização. Em qualquer cenário, o realinhamento das forças políticas será saudável para a democracia brasileira, por abrir espaço a outras candidaturas. A conflagrada polarização que marcou as duas últimas eleições divide o eleitorado, degrada a política e não ajuda o país. O pós-TSE trará oportunidade a candidatos que inspirem mais propostas e menos ódio.

É incerto efeito da proibição de critério racial nas universidades americanas

O Globo

Suprema Corte foi criticada por prejudicar o acesso de minorias desfavorecidas ao ensino superior

A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos que veda critérios raciais, étnicos ou nacionais na seleção para universidades despertou reações apaixonadas, num país cindido pela polarização. Ninguém tinha dúvida de que, na atual configuração conservadora, o tribunal daria fim às políticas de ação afirmativa. Mas é um erro encarar a decisão apenas como item de uma agenda política. Na superfície, ela parece acabar com o sistema que assegurou a integração de grupos discriminados, em particular negros e latinos. Na realidade, o resultado é mais complexo do que parece.

Nos Estados Unidos, candidatos são escolhidos não por uma prova, como vestibular ou Enem, mas pela avaliação de um dossiê apresentado na inscrição. Conta pontos pertencer a uma minoria historicamente discriminada. Desde uma decisão de 1978, as universidades estão proibidas de reservar percentuais de vagas — cotas — a grupos específicos, mas outra decisão de 2003 referendou o uso de critérios étnicos ou raciais na avaliação do dossiê. A Suprema Corte agora reviu sua posição de 20 anos atrás e os proibiu.

É certo que a seleção das vagas mudará, mas ninguém sabe dizer como. As 237 páginas da nova decisão contêm seis votos, quando casos da Suprema Corte costumam ter apenas dois (da maioria vencedora e da minoria vencida). O voto vencedor foi redigido pelo presidente do tribunal, John Roberts. Embora vede a cor da pele como critério de seleção, Roberts escreveu que os candidatos ainda poderão usar, ao pleitear a vaga, uma “discussão de como a raça afetou sua vida”. Com a seguinte ressalva: “O estudante precisa ser tratado com base em sua experiência como indivíduo — não com base na raça”.

O significado dessas palavras deverá ser decifrado pelos tribunais inferiores ao longo dos próximos anos. Universidades já declararam que manterão como objetivo a diversidade do corpo discente e encontrarão outras formas de favorecer minorias discriminadas. É preciso entender, porém, que a queixa responsável pela mudança na opinião da Corte também foi movida em nome de uma minoria — os asiáticos —, discriminada negativamente ao se candidatar. De acordo com Roberts, um estudante negro na quarta faixa (entre dez) de desempenho acadêmico tem mais chance de ser aceito em Harvard que um asiático na primeira. “Eliminar a discriminação racial significa eliminar toda ela”, escreveu. Ele também citou a incoerência de facilitar acesso a filhos de doadores ou ex-alunos.

Defensores das ações afirmativas argumentam que a decisão reduzirá a participação das minorias desfavorecidas no ensino superior. Segundo o chefe do departamento de jornalismo da Universidade Columbia, Jelani Cobb, depois que a Universidade da Califórnia deixou de levar em conta raça, gênero e etnia na admissão, caiu 40% a proporção de negros e latinos nas faculdades disputadas. Algo parecido, diz ele, deverá ocorrer nos próximos anos. Num dos votos divergentes da minoria vencida, a juíza Ketanji Brown Jackson foi mais enfática: “Tornar a raça irrelevante na lei não a torna na vida”.

Bolsonaro fora

Folha de S. Paulo

Ex-presidente sai da cédula, mas eleitorado e quadros à direita continuam fortes

Consumou-se o desfecho esperado do julgamento de Jair Bolsonaro (PL) no Tribunal Superior Eleitoral. O ex-presidente foi condenado à inelegibilidade até as vésperas do pleito nacional de 2030.

Sendo irrisória a probabilidade de reversão por meio de recurso ao Supremo Tribunal Federal, a política nacional começará depressa a acomodar-se ao fato de que o candidato preferido por 49% dos eleitores no segundo turno de 2022 não disputará as próximas eleições.

Não se trata de movimentação banal. Com Bolsonaro habilitado, haveria pouca dúvida de que seria ele mesmo o principal desafiante do candidato governista em 2026. Sem ele na cédula, abre-se um leque de incertezas e possibilidades.

Uma das incógnitas é o cacife político remanescente de Bolsonaro. Numa situação em alguns aspectos assemelhada, ocorrida em 2018 com o PT, mesmo afastado pela Justiça da possibilidade de concorrer, o então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva logrou beneficiar com seu apoio a candidatura de Fernando Haddad a ponto de qualificá-la para o segundo turno.

Naquele caso, no entanto, Lula arrastou a incerteza sobre a sua habilitação até as portas da votação. A inelegibilidade de Bolsonaro sacramenta-se a mais de três anos da próxima eleição presidencial, um período enorme para a dinâmica frenética da política brasileira.

A permanência de uma alargada fatia do eleitorado disposta a votar na centro-direita parece o fator menos transitório. Seus temas de preferência —como a liberdade de empreender, a desconfiança das regulações estatais e o tradicionalismo nos costumes— dificilmente deixarão de ser encarnados por chapas competitivas em 2026.

A força demonstrada por essa corrente na eleição de outubro passado não foi suficiente para assegurar a reeleição de Jair Bolsonaro, mas deixou um legado de quadros políticos em posição privilegiada seja em governos estaduais, seja no Congresso Nacional. Desse conjunto, provavelmente, surgirá o sucessor de fato do ex-presidente.

Já a centro-esquerda e o governo Lula poderão se beneficiar no curto prazo do enfraquecimento da personificação mais vocal da oposição, mas incorrerão em erro estratégico se tomarem essa situação momentânea como endosso às suas plataformas mais típicas.

Seria o momento, pelo contrário, de a gestão Lula aproveitar a fraqueza do adversário para cativar a parcela centrista do eleitorado que, tudo o mais constante, tende a decidir o vencedor do certame de 2026, como decidiu o de 2022.

O apagar-se do expoente da radicalização odiosa e obscurantista que arrebatou a política brasileira nos últimos anos deveria favorecer as forças da moderação.

Honra não é defesa

Folha de S. Paulo

STF abole recurso anacrônico que absolve acusados de violência contra a mulher

Segundo o artigo 25 do Código Penal, a alegação de legítima defesa pode ser usada quando alguém "usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem". Qualquer bem jurídico é passível de proteção por esse recurso, como a vida, a liberdade, a propriedade e a honra.

Mas desde a instituição do código, em 1940, a legítima defesa da honra tem sido usada de modo execrável para justificar crimes passionais, ao atribuir a motivação do delito ao comportamento da vítima.

Devido ao machismo prevalente na sociedade, maridos e namorados que agrediram ou até mataram suas companheiras já foram absolvidos mediante tal recurso. A infidelidade da mulher mancharia a honra do esposo que, por isso, estaria liberado para atacá-la.

Com as mudanças culturais iniciadas nos anos 1960, pouco a pouco a mulher deixou de ser vista como propriedade do seu parceiro, e a defesa da honra foi caindo em desuso, apesar de nunca desaparecer.

Uma lei aprovada pelo Congresso em 2008 deu margem para o seu retorno, ao admitir a possibilidade de absolvição baseada em "quesito genérico" —um pedido de clemência devido a motivações como a defesa da honra, por exemplo. Na prática, o júri tem o poder de absolver o réu mesmo que isso vá contra as provas dos autos.

Nesta sexta (30), finalmente o Supremo Tribunal Federal formou maioria para derrubar esse mecanismo anacrônico a serviço da impunidade. A defesa da honra é "inconstitucional por contrariar os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero", disse o ministro Dias Toffoli, relator do caso, durante seu voto.

A promotoria, a autoridade policial e os juízes ficam impedidos de se valer da tese da honra nas fases pré-processual ou processual penais. Ademais, se essa ferramenta de defesa for utilizada perante o tribunal do júri, o julgamento pode vir a ser anulado.

É espantoso que, no século 21, a mais alta corte do país ainda precise decidir sobre a validade de um recurso jurídico que desumaniza mulheres e inocenta assassinos.

Que bom que o fez, de todo modo. Desde 2021, parlamentares analisam um projeto que proíbe o uso da defesa da honra como argumento para atenuar pena ou absolver réu acusado de violência doméstica ou feminicídio. Espera-se que o Congresso siga o exemplo do STF.

Bolsonaro, enfim, é punido

O Estado de S. Paulo

O ex-presidente passou décadas desafiando a democracia impunemente, o que deu ares de legitimidade a seu golpismo; sua inelegibilidade é só o começo de um processo de saneamento

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tornou Jair Bolsonaro inelegível pelos próximos oito anos. Trata-se de punição constitucional e necessária. Desde a redemocratização do País, ninguém havia tido o despautério de fazer o que Bolsonaro irresponsavelmente fez durante o mandato. De forma reiterada e ignorando seu compromisso de respeitar a Constituição, ele se valeu do cargo de presidente para tumultuar o processo eleitoral.

Bolsonaro nunca teve a intenção de aprimorar o sistema de votação, como alega. Se isso fosse verdade, ele teria, em primeiro lugar, que respeitar a competência do Congresso sobre o tema, e não desautorizar as instituições democráticas legitimamente constituídas, caso da Justiça Eleitoral. Como se sabe, ele fez o oposto, atacando insistentemente o processo eleitoral. O ápice foi a infame reunião de 18 de julho de 2022 com embaixadores estrangeiros.

Alega-se que, no limite, se tratou de genuíno exercício de liberdade de expressão. Ora, como já afirmamos diversas vezes nesta página, a liberdade de expressão não é um direito absoluto, sobretudo quando o propósito de quem se expressa não é o de dar uma opinião, e sim o de violentar a democracia. O leitmotiv evidente de Bolsonaro, coerente com toda a sua trajetória política, era o de disseminar a desconfiança nas urnas e gerar instabilidade no País, criando as condições para um eventual golpe. Felizmente, as instituições reagiram e, dentro da mais rigorosa legalidade, declararam o óbvio: quem afronta a democracia de tal forma deve ser impedido de se candidatar a cargo eletivo.

A inelegibilidade de Bolsonaro é medida justa e necessária, mas é preciso reconhecer: ela deveria ter vindo muitos anos antes. Há décadas o sr. Bolsonaro viola as regras básicas do regime democrático. Como deputado federal, ele quebrou várias vezes o decoro parlamentar e nunca respeitou a diversidade de opinião. Em um de seus arroubos, chegou a defender o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso, ocasião em que este jornal exigiu sua cassação (ver o editorial Dejetos da democracia, de 8/1/2000).

A Constituição de 1988 fixou o critério: “É incompatível com o decoro parlamentar (...) o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional”. Sob pretexto da inviolabilidade civil e penal por opiniões, palavras e votos do art. 53 da Constituição, Bolsonaro falou durante anos as maiores barbaridades, sem a mínima consideração pelos limites da lei, o respeito ao outro ou os parâmetros da civilidade. Infelizmente, o Congresso omitiu-se em seu dever constitucional de retirar seu mandato. Ante a impunidade, Bolsonaro julgou-se autorizado a abusos cada vez maiores.

A inelegibilidade de Bolsonaro, portanto, se presta a proteger o regime democrático, mas as mais de três décadas de bolsonarismo impune deixaram como sua principal herança maldita a transformação do golpismo em discurso supostamente legítimo. Antes da ascensão de Bolsonaro ao poder, eram marginais e inexpressivas as manifestações públicas em defesa da volta das Forças Armadas ao poder, fantasma autoritário que parecia bem enterrado pela Constituição de 1988. No entanto, os quatro anos de Bolsonaro na Presidência deram verniz de legitimidade à hermenêutica golpista da Constituição, aquela que vê como legal a convocação de militares para intervir no Estado. A agitação sediciosa na frente dos quartéis e o assalto às sedes dos Três Poderes no 8 de Janeiro, bem como a eleição de muitos parlamentares simpáticos a uma ruptura democrática, são a prova incontestável do retrocesso causado pelo bolsonarismo.

Assim, a inelegibilidade de Bolsonaro, obviamente tardia, é apenas o começo de um longo processo de saneamento da política, absolutamente necessário diante da constatação de que o ex-presidente, malgrado ter sido um mau militar e um mau político, continua a ser considerado por muita gente como um potente cabo eleitoral. Ou seja, para evitar a recidiva autoritária, que costuma ser muito pior que a doença, a democracia precisa ter a capacidade de expurgar quem pretende destruí-la – e para isso nada mais poderoso do que seguir rigorosamente o que está na lei.

Prevalece a razão

O Estado de S. Paulo

A despeito do desejo de Lula de interferir na política monetária para seus devaneios populistas, o Conselho Monetário Nacional, de maioria governista, manteve a meta de inflação

O Conselho Monetário Nacional (CMN) manteve a meta de inflação para 2024 e 2025 em 3% e definiu o mesmo objetivo para 2026. O colegiado também decidiu adotar a meta contínua a partir de 2025, em substituição à apuração pelo ano-calendário. Foi a primeira mudança substancial em relação ao sistema de metas de inflação, criado há 24 anos, e, felizmente, foi uma mudança positiva e alinhada a práticas internacionais.

Em termos práticos, o trabalho do Banco Central (BC) continua o mesmo. Não é de hoje que a autoridade monetária guia suas decisões pelo horizonte relevante, que considera o período de 18 meses à frente. Mas o fato de que essa prática foi referendada pelo CMN faz toda a diferença, especialmente em um governo em que o presidente faz questão de expor sua hostilidade em relação ao BC.

O CMN é o órgão superior do Sistema Financeiro Nacional e tem como responsabilidade a formulação da política monetária e de crédito. Embora o colegiado se reúna com frequência mensal, raramente seus trabalhos figuram nas manchetes do noticiário, exceto em junho, quando as metas de inflação são anunciadas.

Neste ano, a reunião era aguardada por outras razões. Era a primeira vez que uma decisão tão relevante seria tomada por um CMN de composição mista. Dois dos três membros, os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento, Simone Tebet, foram escolhidos por Lula da Silva, enquanto o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, foi indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.

Desde que assumiu o cargo, Lula atacou Campos Neto, criticou a taxa básica de juros, condenou a autonomia do Banco Central e insinuou que a meta de inflação era muito rígida. Considerando que os membros do Copom têm mandato fixo, que a posição de Campos Neto está garantida até o fim de 2024 e que a autonomia do BC não poderia ser revertida sem o aval do Congresso, o único campo que Lula poderia explorar agora seria o CMN, por meio da maioria de votos que tem no colegiado.

Mudar a meta, no contexto atual, não alteraria a inflação de imediato, mas teria impacto nas expectativas sobre o comportamento dos preços no futuro e na curva longa de juros. São informações anódinas para a maioria da população, mas relevantíssimas para o BC, parte fundamental do horizonte relevante sempre mencionado pelos diretores e pelas divulgações oficiais do órgão.

Quando as expectativas de inflação superam a meta, ou seja, estão desancoradas, o BC sobe os juros ou mantém a taxa em um nível restritivo por mais tempo. Uma vez que as expectativas finalmente estão mais próximas da meta depois de tantos meses, alterar a meta neste momento seria contraproducente, e também trágico para um governo que busca obter credibilidade na condução de sua política econômica.

Ainda assim, Lula poderia facilmente ter ignorado a realidade e usado a maioria de votos que tem no CMN para alterá-las. Goste-se ou não, é prerrogativa do governo. Se não o fez, foi por mérito de Haddad, que, além da habilidade e interlocução que demonstra ter com o Congresso, investidores e setor produtivo, parece ser o único conselheiro que Lula ouve em seu terceiro mandato.

Uma vez que as metas foram mantidas, ainda faltam informações sobre como funcionará o novo sistema de apuração do objetivo contínuo. Não está claro se a tradicional carta do BC ao Ministério da Fazenda, enviada em janeiro para explicar por que a meta não foi cumprida, ainda será necessária. Sem as pressões sazonais que o ano-calendário impõe, o intervalo de tolerância de 1,5 ponto porcentual pode se tornar exagerado.

São detalhes que, no entanto, não tiram a relevância de uma decisão que valoriza o trabalho do Banco Central e contribui para eliminar ruídos que impediam o início do ciclo de queda dos juros. Ademais, ela devolve parte da institucionalidade perdida nos anos sob Jair Bolsonaro. Tendo a chance de agir como um instrumento político do governo, o CMN atuou como um órgão de Estado, algo que deveria ser obrigatório, mas que os anos recentes provam que deve ser celebrado.

Às favas o interesse nacional

O Estado de S. Paulo

Lula extingue avaliações para definir se estatais atendem a seus fins constitucionais

O presidente Lula da Silva determinou o fim de um dos principais instrumentos legais para a União e a sociedade brasileira examinarem se as estatais federais continuam a atender aos seus imperativos constitucionais ou se a melhor opção seria privatizá-las. Trata-se das avaliações periódicas de sustentabilidade econômico-financeira dessas empresas pelo Conselho Nacional de Desestatização (CND), eliminadas com uma canetada no Decreto 11.580/2023, publicado na edição do último dia 28 do Diário Oficial da União.

Ao acabar com uma ferramenta de avaliação do desempenho dessas empresas que, por definição, são públicas, o governo não apenas limita a transparência. A medida fere, sobretudo, a capacidade de o CND examinar, de forma técnica e despolitizada, até que ponto as estatais atendem ao artigo 173 da Constituição de 1988. O texto é claro: “A exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”. Sublinhe-se o advérbio “só”.

É certo que as empresas públicas estão obrigadas aos mesmos requisitos de divulgação de seus resultados contábeis e financeiros exigidos da iniciativa privada. A Lei das Estatais (13.303/2016) impõe obrigações adicionais, como as divulgações de demonstrativos financeiros e dados operacionais e de relatório integrado anual, além de prever o acesso irrestrito de órgãos de controle a seus dados, inclusive os sigilosos. No entanto, as duas avaliações periódicas do CND respondiam a uma questão nevrálgica: o status jurídico de uma empresa como estatal é de interesse nacional?

A aversão do governo Lula da Silva à privatização, sobretudo ao programa definido por seu antecessor, Jair Bolsonaro, não gera estranhamento. Sua defesa à preservação das empresas públicas nos palanques eleitorais de 2022 segue o mesmo veio estatista de seus dois mandatos anteriores e da cartilha doutrinária do PT. Surpreendente seria Lula, em seu terceiro mandato, trilhar um caminho liberal nessa seara.

Em abril passado, por meio de outro decreto (11.478/2023), o governo excluiu sete estatais do PND, entre as quais os Correios e a Empresa Brasil de Comunicação (EBC). No mesmo texto, retirou do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) a Telebras e a Pré-Sal Petróleo (PPSA), além dos armazéns da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Na ocasião, ao referir-se à retirada dos Correios e da Telebras dessas listas, o governo alegou que seu objetivo era “reforçar o papel destas empresas na oferta de cidadania e ampliar ainda mais os investimentos”.

O argumento oficial não poderia ser mais inconsistente diante dos exíguos recursos do Estado para elevar a competitividade e a missão das estatais. Contrasta ainda com a ampliação da cobertura de serviços de energia e telecomunicações aos cidadãos brasileiros verificada a partir das privatizações dos anos 1990. Quem já esperou anos para comprar uma linha telefônica de uma estatal sabe do que se trata. Mas, nos delírios estatólatras do lulopetismo, isso não tem a menor importância.

Hedionda violência contra as crianças

Correio Braziliense

Nos primeiros quatro meses deste ano, as violências sexuais — abuso, estupro, exploração e psíquica — somaram 17.500 casos, segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania

A violência em todas as faixas etárias está generalizada, quando não banalizada. Nesse trágico cenário, crianças e adolescentes não são poupados da monstruosidade humana. Nos primeiros quatro meses deste ano, foram registradas 397 mil violações de direitos humanos de crianças e adolescentes. As violências sexuais — abuso, estupro, exploração e psíquica — somaram 17.500 casos, segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

A internet, por meio das redes sociais, tornou-se espaço de agressões e veiculação dos atos desprezíveis contra os menores de idade. Os pedófilos exibem e colecionam violências sexuais, cenas explícitas de sexo, fotografias e vídeos em que meninas e meninos são violentados. Entre janeiro e abril, as operações policiais prenderam 94 pessoas — três vezes mais do que em 2022 —, além de vasto material pornográfico. As operações policiais, inclusive com apoio internacional, são insuficientes para banir as violações, lucrativas para os criminosos, traumáticas para as vítimas.

Nesta quinta-feira, o Distrito Federal ficou consternado com o sequestro de uma menina de 12 anos, a caminho da escola, no Jardim Ingá, distrito do município de Luziânia (GO). O criminoso contou com a ajuda de uma mulher grávida. Com um pano imerso em clorofórmio, a cúmplice sedou a criança e ajudou o pedófilo a colocar a vítima, algemada nos pés e nas mãos, dentro de uma mala, que foi depositada no porta-malas do veículo. Graças à ação de um policial, amigo da família da criança, homens da Polícia Militar do DF prenderam o agressor, no apartamento dele, na Asa Norte. A menina estava seminua e algemada, na cama do agressor.

Os atos hediondos contra crianças ocorrem em todo o país. Reportagem do Estado de Minas, em maio último, com base em dados da Polícia Rodoviária Federal (PRF), revelou que Minas Gerais é a unidade da Federação com 73 pontos críticos em vulnerabilidade à exploração sexual de crianças e adolescentes do país — 19 a mais do que na Bahia, que ocupa a segunda posição no ranking nacional. Em janeiro deste ano, a Secretaria de Segurança Pública do estado registrou 310 casos de estupro, sendo 229 (74%) contra crianças menores de 14 anos ou pessoas com deficiência incapazes de qualquer ato de resistência — uma vítima a cada duas horas.

Os dados oficiais (federal ou estaduais) sobre os abusos sexuais de crianças e adolescentes são alarmantes — e subnotificados, reconhecem as autoridades. A maioria dos atos violentos é praticada por familiares ou amigos próximos das vítimas. A fim de livrar os agressores da punição, eles não são denunciados à polícia. Assim, os criminosos escapam da Justiça. Entre os 909.061 presidiários, 4% (36.362) cumprem pena por "ferir a dignidade sexual", o que inclui o estupro — um número bem inferior ao de crimes registrados pelas autoridades. O artigo 217 do Código Penal estabelece pena de 8 a 20 anos de prisão ao autor do crime. A privação de liberdade pode chegar a 30 anos em caso de morte da vítima.

Além do rigor da lei, fazem-se necessárias ações preventivas contra os abusos sexuais de crianças e adolescentes por meio de campanhas de esclarecimento à população, inclusive nas escolas. As famílias, amigos, vizinhos têm de ser convencidos de que, nesses casos, não podem ser cúmplices dos criminosos. Precisam denunciar sempre, seja lá quem for, o agressor. A impunidade é um estímulo para que ele siga atacando mais vítimas. A gravidade desse quadro contra crianças e adolescentes, com danos irreparáveis, exige ainda uma ação firme contra as redes sociais que propagam o crime, como se fossem troféus. O momento demanda uma legislação que regule as redes sociais e estabeleça punição severa aos que usam os espaços da internet, nos quais trafegam a pornografia dos pedófilos ainda impunes.

 

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