quinta-feira, 5 de outubro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

35 anos de Constituição e democracia

O Globo

Carta que garantiu o período democrático mais longevo no Brasil deverá continuar a iluminar o país

‘Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora, será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados.’ A frase de Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, no discurso proferido em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição, não poderia ter sido mais realista ou mais profética. Nossa lei fundamental, que agora completa 35 anos, serviu de alicerce ao período democrático mais longo na História do país. Criada depois do fim da ditadura militar, estabeleceu regras, mecanismos e instituições que têm garantido a democracia. E resistiu com louvor a seu maior desafio, a tentativa de golpe de Estado que culminou no ataque às sedes dos três Poderes em 8 de janeiro.

A ênfase do texto constitucional nos direitos do cidadão, especialmente em saúde, educação e na área social, sustentou uma transformação. Ao longo de três décadas e meia, a expectativa de vida saltou de 65 para 73,6 anos, mais rápido que a média mundial. Em 1988, um quinto da população acima de 15 anos era analfabeta, e 5 milhões com menos de 14 estavam fora da escola. Hoje o analfabetismo está em 5,6%, e os sem escola não chegam a 250 mil. Há muito a fazer ainda no campo social, mas o avanço é inegável.

A principal conquista foi a consolidação da democracia expressa nos direitos fundamentais: igualdade perante a lei, voto secreto e universal, liberdade de expressão, associação e participação política, além de todas as demais garantias gravadas em cláusulas pétreas.

A Constituição foi elaborada num momento ímpar, por um grupo que incluía notáveis como Affonso Arinos, Delfim Netto, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Jarbas Passarinho, José Serra, Luiz Inácio Lula da Silva, Mário Covas, Nelson Jobim, Nélson Carneiro, Roberto Campos, Roberto Freire ou o próprio Ulysses. O principal desafio era erguer um arcabouço institucional duradouro depois da ditadura. Nisso, cada novo aniversário da Carta é prova de seu êxito.

A qualidade dos constituintes, porém, não impediu que cometessem erros. Um dos principais foi o excesso de minúcias, origem do engessamento da gestão pública. A Carta trata de toda sorte de tema: sistemas econômico, tributário, previdenciário, educação, saúde, meio ambiente, cultura, comunidades indígenas, família, criança, adolescente, idoso etc. Com quase 65 mil palavras ao ser promulgada, é a terceira Constituição mais longa do mundo. Muitas vezes os constituintes não se preocuparam com o custo financeiro dos direitos criados, gerando uma conta que a sociedade pena para pagar.

Equívoco no Minha Casa, Minha Vida contribui para deteriorar vida urbana

O Globo

Governo privilegia construção em áreas periféricas em vez da revitalização das regiões centrais

O programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) deveria se destinar a suprir o déficit habitacional brasileiro — cerca de 5,8 milhões de residências —, concentrando o foco no subsídio à população de baixa renda, sobretudo a que vive em áreas de risco, como encostas ou margens de rios. Tal objetivo está distante.

O primeiro motivo é a ambiguidade com que o governo tem tratado o público-alvo. No relançamento do programa, em fevereiro, o discurso falava em consertar as deficiências, priorizar os mais pobres e dar ênfase a áreas centrais e à reforma de imóveis antigos. Não é o que tem acontecido.

O governo estendeu a faixa com direito a maior subsídio, ampliando a renda familiar para R$ 2.640. As demais faixas passaram a atender famílias com renda de até R$ 4.400 e até R$ 8 mil — patamares que as colocam na classe média e desviam o foco do programa. Não bastasse isso, em junho o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu aumentar o limite de renda de R$ 8 mil para R$ 12 mil, financiando imóveis que poderiam chegar a R$ 500 mil. Obviamente a medida sem cabimento traria ainda mais distorção — e felizmente foi esquecida.

O segundo motivo é o jogo de pressão em torno do uso dos recursos do FGTS, cobiçados pelas construtoras que dependem de projetos do MCMV. De modo acertado, o governo Jair Bolsonaro incluiu na política habitacional o subsídio à compra de imóveis usados. Trata-se de incentivo à reforma de edifícios deteriorados nas regiões centrais, onde a infraestrutura urbana está pronta. Melhor isso que criar mais bairros na periferia, submetendo a população a transporte mais caro, mais insegurança e condições de vida piores. O Censo contou 11,4 milhões de casas e apartamentos vazios, boa parte em regiões centrais esvaziadas — quase o dobro do déficit habitacional. Natural que seja prioridade reformá-los.

Acertadamente, o governo Lula elevou de 30% para 70% o valor do FGTS destinado ao subsídio de imóveis usados. A medida incomodou as construtoras, pois comprar para reformar é menos lucrativo que erguer do zero em terrenos periféricos de baixo custo. Em 27 de setembro, o ministro das Cidades, Jader Filho, recebeu a visita do presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), Renato Correia. Em 2 de outubro, o Diário Oficial publicou uma norma do ministério cortando de 70% para 50% o subsídio concedido a fundo perdido a quem compra imóvel usado pelo MCMV. O motivo alegado pelas construtoras para apoiar a mudança foi a preservação de empregos no setor.

Mesmo com atenuantes, déficit zero é difícil de atingir

Valor Econômico

É da maior importância que o Congresso e o Planalto deem seu aval às iniciativas da Fazenda para conter o déficit

Ainda que tenha se autoimposto uma missão extremamente difícil, a equipe econômica está disposta a fazer o que for possível para atingir a meta de déficit público zero em 2024, para a qual precisará arrumar R$ 168 bilhões em receitas adicionais. Em entrevista ao Valor, o secretário do Tesouro, Rogério Ceron, relatou vários motivos para manter o objetivo, sem deixar de ser realista e considerar que o alvo pode não ser atingido. “Uma coisa é o resultado efetivo, outra é a meta que você vai buscar”, disse. Se não falta determinação à equipe do ministro Fernando Haddad, o mesmo não pode ser dito em relação à ala política do governo e ao próprio presidente Lula, que até agora não deu demonstração firme de que repetirá o benéfico “fiscalismo” de seu primeiro mandato.

Para o secretário do Tesouro, a meta não deverá mudar, até porque partir dessa premissa no início de um esforço fiscal vigoroso seria condenar ao descrédito tanto a iniciativa quanto a meta. Ceron afirmou que há boas condições de ao menos obter resultados bem melhores do que os projetados pelo mercado, que não prevê déficit zero em nenhum dos anos do governo Lula e estima o resultado do ano que vem em -0,75% do PIB, algo próximo do 1% do PIB que a Fazenda mira para o resultado negativo de 2023. Em termos de expectativas, seria a segunda melhor opção fora atingir as metas - ter realizado todas as tentativas e obter o menor déficit possível. De novo, boas intenções na Fazenda podem esbarrar nos cálculos políticos contrários do Planalto.

Sem cortar despesas - que, ao contrário, aumentarão - zerar o déficit é uma batalha morro acima. Mas há, entretanto, expedientes que podem atenuar a difícil missão de Haddad. Manoel Pires, economista e coordenador do Observatório Fiscal do FGV Ibre, indicou vários deles, calculou seu impacto (Valor, 2 de outubro) e concluiu que, mesmo assim, chegar à meta de déficit zero exigirá em qualquer hipótese significativo esforço fiscal, entre R$ 66 bilhões e R$ 96 bilhões, dependendo do mix de medidas de ajuste que tomará.

No orçamento de 2024 há receitas superestimadas e despesas não incluídas, combinação que conspira contra o cumprimento da meta. Nos cálculos de Pires, supõe-se que o governo obterá os R$ 168 bilhões, dos quais na verdade R$ 125 bilhões ficarão em seus cofres - o restante corresponde à repartição de receitas com Estados e municípios. Ficou fora do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 24, por exemplo, uma reestimativa realista dos gastos da Previdência, de R$ 24 bilhões, causados tanto pelo reajuste real do salário mínimo, que impacta aposentadorias, auxílio desemprego, LOAS etc., como, residualmente, pela investida para encolher uma fila de 1,5 milhão de pessoas que aguardam o parecer do INSS para se aposentar.

A primeira providência legal que o governo pode tomar sem infringir qualquer regra do novo regime é usar a banda que lhe é permitida e atingir um déficit de 0,25% do PIB, ou R$ 29 bilhões. A segunda é contar com o empoçamento de recursos não executados, da ordem de R$ 22 bilhões (média histórica). Até agosto, o empoçamento atingiu R$ 27 bilhões. Utilizar as duas opções abateria R$ 51 bilhões da meta.

Pelo novo regime fiscal, o descumprimento da meta não acarreta punições automáticas aos administradores, embora obrigue a redução do percentual de despesas em relação às receitas líquidas de 70% em um exercício para 50% em outro. Mas, por outro lado, só não haverá sanções se o governo realizar contingenciamento de gastos nas revisões bimestrais de despesas e receitas quando for constatado que a meta corre riscos. O contingenciamento só pode recair sobre as despesas discricionárias, orçadas em R$ 211 bilhões.

Pires fez quatro cenários em que o contingenciamento varia de zero a R$ 30 bilhões. No valor máximo, o aperto ameaça paralisar setores da administração pública, pois reduziria essas despesas a 1,4% do PIB, o mesmo montante observado durante a pandemia, quando grande parte da máquina pública de fato foi paralisada. O represamento de R$ 20 bilhões em gastos os levaria a 1,5% do PIB, o segundo menor desde 2017. A única hipótese em que as discricionárias ficariam próximas à média do período é a de contingenciamento zero. Nesse caso, porém, o esforço fiscal deveria ser o maior, de R$ 96 bilhões.

Há iniciativas do Congresso para ampliar gastos e que podem ser incorporadas na votação do orçamento. Nele não há também previsão para correção dos pagamentos do Bolsa Família, nem para a atualização do Imposto de Renda prometida pelo governo. Sempre atento aos gastos, o Congresso, avalia Pires, teria incentivos para aprovar as receitas de que o governo necessita, pois, em caso contrário, as despesas no exercício seguinte, e quase certamente as emendas feitas pelos parlamentares, teriam de encolher.

É da maior importância que o Congresso e o Planalto deem seu aval às iniciativas da Fazenda para conter o déficit, sem o qual elas não serão bem-sucedidas. Para que a economia possa deslanchar de forma sustentável é imperioso que as contas públicas estejam em ordem e os juros voltem a padrões civilizados. Só assim o país pode crescer mais e por mais tempo, o que mal tem feito desde a recessão de 2014.

De calças curtas

Folha de S. Paulo

Em meio a piora de humores, governo se vê incapaz de elevar credibilidade fiscal

Já se sabia que era circunstancial o alívio no clima econômico observado no país em meados deste ano. Agora que os humores voltaram a piorar, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se encontra em posição de fragilidade devido aos maus resultados e perspectivas das contas do Orçamento.

Cerca de três meses atrás, havia uma confluência de notícias positivas —o Produto Interno Bruto crescera acima do esperado, a inflação dava sinais de queda, avançava no Congresso a nova regra fiscal e agências de risco faziam observações favoráveis ao país.

Havia certa calmaria no cenário internacional e, mais importante, por aqui saíam de cena os piores temores quanto às inclinações gastadoras e intervencionistas da gestão petista. O alívio de então se refletiu nas cotações do dólar, que caíram para pouco mais de R$ 4,70.

De lá para cá, no entanto, o governo Lula foi incapaz de apresentar medidas que elevassem a credibilidade das finanças públicas —e, em particular, da meta oficial de eliminar o déficit orçamentário já no próximo ano.

Pelo contrário, o desempenho da arrecadação de impostos, os resultados do Tesouro Nacional e a proposta de Orçamento para 2024 deram mais razões para o ceticismo.

A receita tributária não acompanhou o desempenho surpreendente do PIB, e o déficit primário (que exclui gastos com juros) de janeiro a agosto, de R$ 104,6 bilhões, é o maior para um início de mandato desde o Plano Real.

O projeto de lei orçamentária levantou questionamentos em série sobre o esperado déficit zero, que se baseia não apenas em projetos em tramitação difícil no Congresso como em projeções que parecem excessivamente otimistas.

As estimativas de analistas para o rombo federal no próximo ano rondam os R$ 80 bilhões —o que seria um fracasso retumbante já no primeiro ano do novo regime fiscal. Não por acaso, espera-se crescimento contínuo da dívida pública como proporção do PIB.

É nessa situação que o país enfrenta um cenário global que se tornou mais incerto, com temores de juros mais altos nos Estados Unidos, encarecimento do petróleo e desaceleração da economia da China. No termômetro cambial, a cotação do dólar subiu a R$ 5,15.

Não se trata de dar importância demasiada a oscilações do mercado financeiro. Fica evidente, porém, que a economia brasileira estará mais vulnerável a períodos de adversidade enquanto o governo Lula relutar no inevitável enfrentamento dos gastos públicos.

Dele dependem o controle da inflação, o alcance do corte dos juros do Banco Central, o crescimento da economia e, por extensão, a redução duradoura da pobreza.

O legado do papa

Folha de S. Paulo

Em disputa com conservadores, Francisco defende bênção a casais homossexuais

Aos 86 anos, o argentino Jorge Mario Bergoglio parece decidido a imprimir uma marca progressista a seu papado, iniciado há dez anos sob o nome de Francisco.

O termo, claro, é relativo. A Igreja Católica, maior denominação cristã do mundo com 1,36 bilhão de fiéis, não é dada a revoluções —e nisso se encerra, deve-se dizer, parte do segredo de sua longevidade e influência.

Entretanto as demandas do mundo moderno têm acelerado os movimentos reformistas desde o grande divisor de águas que foi o Concílio Vaticano 2º, nos anos 1960.

Aquele encontro atualizou algumas práticas da igreja e, fundamentalmente, lançou bases para uma pendular dinâmica de rivalidade entre os ditos progressistas e os conservadores.

Francisco é um expoente da primeira ala, tendo sucedido a um papa ultraconservador, o alemão Bento 16.

Acusado de populismo por detratores, que resgatam sua origem no ambiente peronista argentino, ele busca abordar temas sensíveis na área comportamental desde o início do pontificado.

Deu declarações simpáticas a homossexuais, por exemplo, e envolveu-se em 2017 numa disputa aberta com cardeais tradicionalistas.

Liderados pelo americano Raymond Burke, eles tornaram pública consulta interna ao papa acerca da comunhão a divorciados que vivem novos relacionamentos, sugerida por Francisco. Ficaram sem resposta e expuseram a fratura.

Agora, o mesmo Burke e outros quatro colegas questionam bênçãos a casais homoafetivos, cada vez mais comuns na Europa. Bergoglio deu o troco: não apenas defendeu a hipótese como fez o Vaticano publicar suas respostas.

O papa mede palavras e deixa claro que não se trata de apoiar o casamento gay, inaceitável para a doutrina. Mas antecipa o tom dos debates daquele que deve ser o principal veículo para o que pretende deixar à história, o Sínodo dos Bispos, iniciado nesta quarta (4).

No encontro hospedado no Vaticano, pela primeira vez mulheres poderão votar —54 em 365 eleitores. As temáticas incluem permissão para que diáconos, a primeira etapa na carreira eclesiástica, sejam do sexo feminino, questões relativas a grupos LGBTQIA+ e ordenação de homens casados.

O palco, portanto, está dado para um novo, e talvez decisivo, embate público entre Francisco, um progressista que acompanha o ritmo lento de sua fé, e seus oponentes.

Os 35 anos da ‘Constituição Cidadã’

O Estado de S. Paulo

Há razões para celebrar a efeméride. Mas só uma corajosa reflexão sobre as deficiências da Carta fará com que o texto siga como o farol mais brilhante das liberdades democráticas

Completam-se hoje 35 anos de promulgação da Constituição de 1988. Há razões de sobra para que esse marco histórico da democracia brasileira seja celebrado, mas, especialmente, por ser esta a Constituição, entre as sete que já vigoraram desde a Independência, a que melhor reflete o justo anseio de uma sociedade livre e plural por participar das escolhas políticas que, dia após dia ao longo de todo esse tempo, têm feito do Brasil um país menos desigual e mais próspero.

Malgrado as suas muitas deficiências, já tantas vezes apontadas por este jornal, inclusive durante a Assembleia Nacional Constituinte, e as atribulações políticas e institucionais ao longo de sua vigência, incluindo nada menos que a cassação de dois presidentes da República por crimes de responsabilidade, o fato é que a Constituição de 1988 triunfou sobre os seus inimigos – sejam os que tentaram sabotá-la no nascedouro, sejam os que a ameaçaram como nunca nos últimos quatro anos –, ganhou os corações e mentes dos brasileiros e permitiu ao País experimentar o mais longevo período de normalidade democrática da história republicana.

Em respeito aos fatos, porém, é forçoso dizer que, em meio ao restabelecimento de direitos e garantias fundamentais que foram eliminados durante a ditadura militar (1964-1985), além da concepção de todo um arranjo institucional para sustentar o Estado Democrático de Direito, a Constituição é prolixa, disfuncional e por vezes incongruente ao longo de seus 250 artigos.

Compreende-se a sofreguidão com que os constituintes originários decidiram alçar à Lei Maior uma série de temas que, quando muito, deveriam se circunscrever à legislação ordinária. Mas essa decisão custou caro ao País. Não são poucos os direitos que só existem no papel; e não são poucos os deveres virtualmente impossíveis de serem cumpridos – que o digam milhares de prefeitos Brasil afora.

Esses defeitos, omissões e excessos da Constituição não raro têm dado azo a interpretações equivocadas, no melhor cenário, e manipulações, no pior, que perpetuam privilégios incompatíveis não só com os princípios que iluminaram a sua redação, mas com a própria ideia de República. É espantoso o grau de desassombro com que a Constituição foi violada ao longo desses 35 anos, ora de forma acintosa, ora por meios sub-reptícios, independentemente do viés político-ideológico dos governos e legislaturas de turno.

Entretanto, boa ou ruim, a Constituição é o que é, e como tal deve ser respeitada por todos e protegida por aqueles a quem a própria Lei Maior incumbe dessa nobilíssima missão: os onze ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

Há poucos dias, o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, ilustrou bem como o desrespeito contumaz à letra da Constituição, como se sua validade fosse seletiva ou balizada por interesses inconfessáveis, pode se enraizar no Estado e na sociedade a ponto de anestesiar os cidadãos. Para inaugurar sua gestão à frente do Supremo, o ministro pautou o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, que trata do “estado de coisas inconstitucional” instalado nos presídios Brasil afora. Pode-se (e deve-se) questionar a excentricidade da tese, mas não há como negar que nada avilta tanto os direitos e garantias fundamentais de uma Constituição dita “cidadã” do que as condições subumanas do sistema prisional brasileiro. É uma questão fundamental a ser debatida com coragem e honestidade intelectual por toda a sociedade.

Neste 35.º aniversário da carinhosamente chamada “Constituição Cidadã”, é tempo para o País celebrar seus avanços civilizatórios e, ao mesmo tempo, refletir sobre os não poucos desafios que ainda persistem. É hora de a sociedade unir esforços para fortalecer as instituições democráticas consagradas pela Carta Política da redemocratização e promover as reformas necessárias para que a Constituição seja menos disfuncional e cada vez mais forte. Só assim ela haverá de seguir como o farol mais brilhante dos direitos e do sentido de justiça para todos os brasileiros por muitos anos à frente.

Ocaso da indústria de transformação

O Estado de S. Paulo

Estudo da Fiesp mostra que é praticamente intransponível o abismo da produtividade do setor. Reformas estruturais em vez de promessas vagas sobre ‘neoindustrialização’ dariam alento

O retrato captado pelo estudo Investimento e estoque de capital da indústria de transformação – 1996 a 2021, da Fiesp, exibe um setor claudicante, incapaz de conter a depreciação de seu parque fabril. Com base em dados estatísticos do IBGE, pela primeira vez foi calculado o volume de investimentos necessários para recuperar a competitividade da indústria de transformação: R$ 456 bilhões ao ano, por cerca de dez anos consecutivos, como mostrou reportagem do Estadão. E isso apenas para voltar ao patamar de cinco décadas atrás.

É desalentador verificar em detalhes como vem definhando o segmento mais estratégico da indústria. Aquele que, por transformar matérias-primas em bens de consumo e equipamentos, tem a particularidade de difundir o crescimento por diversos outros setores. Em pouco mais de duas décadas, a indústria de transformação, que respondia por 20,9% do total dos investimentos industriais do País, minguou para 12,9% em 2021, último dado disponível. E, pelos sinais que vêm sendo observados, não para de encolher.

São indícios largamente conhecidos os da deterioração da produção industrial brasileira. Tanto que suscitaram, há pouco mais de quatro meses, uma análise publicada neste jornal pelo presidente da República, Lula da Silva, e seu vice, Geraldo Alckmin. No artigo Neoindustrialização para o Brasil que queremos (25/5/23), ambos reconheceram que o País está “perdendo a corrida da sofisticação produtiva” ao cair da 25.ª para a 50.ª posição no ranking de complexidade da economia.

O mês era maio, e o artigo, acompanhado do anúncio da elaboração de um plano para reativar a indústria, teve ampla repercussão. Aos elogios pela iniciativa somaram-se críticas pela falta de menção a pontos importantes, como produtividade, pesquisa e desenvolvimento e qualificação de mão de obra. O fato é que o calendário avançou para outubro e ainda não se tem qualquer informação concreta sobre a tal proposta de neoindustrialização.

Ao mapear os baques que a indústria de transformação vem enfrentando nas últimas décadas, o estudo da Fiesp não faz referência a um plano específico que tenha o condão de restituir o papel de condutor da economia ao segmento. Que isso sirva para dissuadir o governo da adoção de soluções mágicas de curto prazo, como subvenções esdrúxulas, crédito direcionado e protecionismo exacerbado – o velho cardápio do subdesenvolvimento.

Em vez de defender incentivos governamentais, como já se tornou tradicional, o documento da Fiesp cita uma medida bem mais simples e objetiva: a necessidade de fazer avançar as reformas estruturais, em especial a tributária, com a fixação da alíquota máxima de 25% para o Imposto sobre Valor Agregado (IVA).

Esperada há pelo menos 30 anos, a reforma tributária parecia tramitar a contento com a aprovação no plenário da Câmara, apesar das inúmeras modificações no texto. Agora está emperrada no Senado. A cada arranjo parlamentar, o que se vê é uma reforma mais imperfeita, mas que, diante da barafunda tributária em vigor, com certeza ainda contribuirá para reduzir o famigerado custo Brasil.

Esse deve ser o objetivo a perseguir, e não medidas pontuais do tal “Estado indutor”, como defende Lula da Silva. Não há incentivo a este ou aquele setor que garanta competitividade a longo prazo. E é preciso investir muito para começar a notar algum avanço. Hoje, o que é aplicado na indústria de transformação corresponde a parcos 2,6% do PIB. Precisa chegar, ao menos, a 4,6%.

Além disso, tem de haver espalhamento da aplicação de recursos em inovação e tecnologia na indústria de transformação. Hoje, o setor de petróleo e biocombustíveis concentra um terço desse capital. É necessário irradiar o investimento para mais setores da indústria, inclusive para melhorar a renda do mercado de trabalho que, no ano passado, chegou ao menor nível dos últimos dez anos.

O PIB de 2023 estaria comprometido sem o avanço extraordinário do agronegócio, um setor que conta com política pública como o Plano Safra, que se reverte em contínua modernização. O País carece também de uma política industrial eficaz.

A saga das vacinas

O Estado de S. Paulo

O Prêmio Nobel de Medicina prestigia não só o poder da ciência, mas da cooperação e perseverança

Com quase quatro anos de covid-19, o mundo ainda cicatriza suas sequelas socioeconômicas. Mas, se a pandemia virou história, devemos isso à epopeia das vacinas. Decisiva foi a tecnologia mRNA. Se há um prêmio para cientistas digno de ser celebrado além dos círculos científicos, é o Nobel de Medicina aos responsáveis por ela, Katalin Karikó e Drew Weissman.

No início, era incerto se e quando teríamos um imunizante. A vacina contra o HIV da aids ainda elude os cientistas. A da pólio tomou 20 anos. Em 2020, 17 anos após o coronavírus da Sars saltar de um animal para os humanos, o financiamento das pesquisas antivirais se desidratara e não havia vacinas. Previsões otimistas para uma contra a covid-19 falavam em 18 meses. Na metade desse tempo se criaram várias. Estima-se que no primeiro ano salvaram 20 milhões de vidas.

O mRNA é uma molécula que entrega às células códigos do DNA que orientam a produção de proteínas. Muitas doenças são causadas por proteínas ou por sua ausência, e desde a descoberta do mRNA, em 1961, sonhava-se com mRNAs sintéticos instruindo células a fabricar proteínas aptas a curá-las. O primeiro passo além do laboratório rumo à medicina foi dado por Karikó e Weissman em 2005, ao descobrirem modificações químicas aptas a inserir mRNAs artificiais em células sem ativar reações imunológicas hostis. Assim, as células poderiam ser transformadas em usinas de remédios.

A aplicação em escala na vacina da covid-19 vingou num ecossistema que combina a capacidade do livre mercado de gerar inovações com a do poder público de distribuí-las. A tecnologia não teria se desenvolvido se investidores não tivessem bancado os riscos da pesquisa, e sua aplicação nas vacinas (que têm baixa perspectiva de monetização) não teria sido possível sem recursos públicos. Tampouco sem sorte. Se a vacina foi produzida tão rápido, é porque cientistas já trabalhavam num protótipo de imunizante para a família dos coronavírus. Há vacinas para 15 das 26 famílias virais, mas só para uma delas há um protótipo. Desenvolver outros é crucial para reagir agilmente a futuras pandemias.

Há esperança de outros tratamentos com mRNAs, de cânceres a deficiências cardíacas ou cerebrais. Mas é incerto se e quando serão efetivos. Podem ser só um sonho, como a pandemia foi um pesadelo. No seu auge, ela viralizou mobilizações filantrópicas que aceleraram a conquista e distribuição da vacina. Se os sonhos do mRNA podem se tornar realidade, isso acontecerá tão rapidamente quanto maiores forem essas mobilizações. Mas, com o tempo, elas tendem a se esvair sob as demandas do dia a dia.

A saga de Karikó e Weissman pode nos imunizar contra esse risco. Por décadas suas pesquisas foram menosprezadas entre seus pares nos campi. A insistência de Karikó em persuadi-los de sua importância lhe valeu a alcunha de “picareta do mRNA”. “Há 10 anos eu não conseguia nem ser reconhecida como professora, não tinha equipe, tinha sido rebaixada de posto.” O Nobel é, assim, um emblema da gratidão da humanidade aos cientistas, mas também do poder da perseverança.

Há 35 anos, o reencontro com a democracia

Correio Braziliense

Concretizava-se o fim do pesadelo de 21 anos do regime mais obscuro da República. Um tempo marcado de massacres, prisões arbitrárias, assassinatos pela tortura nos porões das forças militares e de segurança pública

Hoje, a Constituição completa 35 anos da sua promulgação. O então presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, na véspera de completar 72 anos, com os braços erguidos, segurava a nova Carta Magna acima de sua cabeça e anunciou a Constituição Cidadã. O plenário estava lotado de parlamentares, autoridades, convidados e familiares. As galerias foram tomadas por brasileiros de todas as cores, idade e origem. Concretizava-se, ali, o fim do pesadelo de 21 anos do regime mais obscuro da República. Um tempo marcado de massacres, prisões arbitrárias, assassinatos pela tortura nos porões das forças militares e de segurança pública.

O Brasil poderia, novamente, se colocar ao lado das nações democráticas. Os direitos humanos, de expressão, de fazer escolhas, de ir e vir e de tantos outros que nos diferenciam do mundo irracional estavam ressuscitados. Começava um novo tempo, para saciar o anseio popular por liberdade. O pacto político e social foi construído por representantes dos mais diferentes segmentos da sociedade. A diversidade de pensamento, ideologia, gênero, étnica, social, econômica e religiosa estava contemplada na Carta Magna.

Os setores organizados da sociedade foram empoderados. A Lei Maior criou conselhos com a prerrogativas para propor e influenciar a construção de políticas públicas no campo da segurança alimentar, da assistência social, da saúde, meio ambiente, da criança e do adolescente, educação do trabalho e emprego, de negros, de mulheres e outros.A Carta Cidadã inaugurou um tempo de participação popular na história do país. Rompeu com o modelo amparado na verticalidade, em que as decisões eram adotadas de cima para baixo, ignorando os anseios dos segmentos sociais. Estabeleceu ainda prazo para o Executivo fazer justiça aos povos originários (indígenas) e tradicionais (quilombolas), por meio da demarcação dos territórios que ocupavam.
A Constituição que reconhece a importância dos cidadãos, a contribuição de cada um para o fortalecimento da nação, com perfil social, que assegura igualdade e equidade, enfrenta adversários adeptos do autoritarismo, da exploração dos mais fragilizados social e economicamente. Hoje, os conservadores que habitam o parlamento, com o apoio de parcela da sociedade eivada de preconceitos descabidos, trabalham em favor de retrocessos a fim de revigorar práticas dos regimes de exceção.

Em pleno século 21, não cabe retorno ao passado. É tempo de caminhar para frente, com mais segurança, solidariedade, paz, respeito aos diferentes, educação de elevado nível, saúde, oportunidades iguais para todos. Perseguir nessa construção é manifestação real e sincera de patriotismo, a fim de tornar o Brasil um exemplo a ser respeitado e seguido por aqueles que ainda não conseguiram vencer as barreiras do primitivismo.

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