O Globo
Nascida na esquerda americana, dentro de sua
realidade social e política, a gradação ideológica da pauta identitária não é
consenso sequer entre os iguais
Em seis situações, a política de cepa
identitária assim se encontra neste início de outono:
1) o Tribunal de Justiça de São Paulo abriu
concurso para o cargo de desembargador. Homens, fora! É um certame por
merecimento somente para mulheres. Vivo, Raymundo Faoro ficaria na janela;
2) a veneranda USP, ancorada em sua Banca de
Heteroidentificação, algo como um tribunal racial, rejeitou a inscrição de um
aluno, dentro das cotas raciais, por não ser considerado “pardo” o suficiente.
Qual Whitney Houston, ele tem “lábios afilados”;
3) a Fuvest, ligada à USP, indicou apenas
livros de autoras para seu próximo vestibular;
4) o autor Itamar Vieira Junior, negro,
vociferou contra uma crítica a seu novo livro, visto como incipiente, porque
foi escrita por uma mulher branca;
5) o deputado Guilherme Boulos, do PSOL,
nascido em família de classe média, escolheu morar na empobrecida periferia
paulistana;
6) muitos dos indicados a cargos comissionados pela base governista não têm currículo profissional à altura da ocupação, mas preenchem o figurino identitário. Não falo de “ministres”.
Os flagrantes poderiam soar como manchetes do
Sensacionalista, se não fossem fatos reais. Nascida na esquerda americana,
dentro de sua realidade social e política, a gradação ideológica da pauta
identitária não é consenso sequer entre os iguais. A tradução sem adaptação a
outros cantos do planeta causa ruídos estridentes. O MeToo dos Estados Unidos,
protagonizado por estrelas de Hollywood, se viu ridicularizado por intelectuais
e atrizes francesas, em razão de seu caráter messiânico. Brigitte Bardot chegou
a falar em hipocrisia e de gente que estava cuspindo na cama.
Élisabeth Roudinesco, historiadora e
psicanalista, buscou, no livro “O Eu Soberano”, as raízes da saga para decifrar
o caldo de sua intolerância. Lembra como o filósofo Jean- Paul Sartre, um dos
líderes da luta anticolonial na Europa no século passado, é crucificado pelo
movimento negro. Na argumentação do grupo, Sartre não tem direito a levantar
tal bandeira por ser branco. Ai.
Nada a estranhar. O chamado “lugar de fala”
não permite que haja solidariedade humana. Karl Marx, pelo raciocínio, estaria
desossado — sendo de classe média, não poderia defender os pobres. De acordo
com Roudinesco, a bandeira identitária é apenas outra forma de luta pelo poder.
De ocupação de espaço a partir de uma tribalização da sociedade, como diversos
autores também afirmam. Com outro aviso ainda: a atomização, ao dar pano e
linha de lambuja para a extrema direita, explica parte da atual onda populista
ao redor do mundo. Eu acrescentaria a mudança de paradigma nos meios de
produção — do industrial ao digital — como importante elemento na
desestabilização social. Imagine fábrica sem operários. O ministro Luiz Marinho
terá de buscar contribuição sindical junto a um ou outro robô (em alguns
locais, as entregas já são feitas por drones).
Sempre uma luta justa, os atores identitários
começam a bagunçar o ritmo. Como no caso do movimento negro e de alguns de seus
próceres. Aplicada a lógica do “lugar de fala”, praticada pelo autor Itamar
Vieira Junior, o ex-senador e escritor Afonso Arinos seria outro a ser jogado
na panela. O ex-ministro de Jânio Quadros, ainda sob o governo de Getúlio
Vargas, fez aprovar a Lei Arinos — a primeira no país contra o racismo. Ele era
branco. Como Sartre, estaria hoje no óleo quente da intolerância.
Assim como Lula acaricia seus ditadores,
violadores de direitos humanos, a banda identitária ainda negocia os anéis. O
Masp, hoje instituição mais politicamente correta do país, montou no ano
passado mostras de Paul Gauguin e de Abdias do Nascimento. O pintor francês do
século XIX se viu acusado de pedofilia em sua estada no Taiti. Não havia nenhum
apontamento de antropólogos sobre os costumes daquelas etnias.
As obras de Abdias do Nascimento, sempre um
ícone da luta antirracista, ficaram sem admoestações. Mesmo que seja visto como
um dos inspiradores da palavra de ordem “miscigenação é racismo”. Há ainda
outros esquecimentos. O ex-senador brizolista, antes militante do movimento
integralista sob a liderança do direitista Plínio Salgado, espécie de
protobolsonarista, era casado com uma militante americana: Elisa Larkin, sempre
loura.
Em São Paulo, existem dois exemplos opostos,
capazes de mostrar a catatonia ideológica brasileira. Guilherme Boulos, de
classe média, foi morar em bairro de trabalhadores. Tabata Amaral, nascida em
família modesta, estudou em escolas públicas e acabou na Universidade Harvard,
uma das melhores do mundo.
Um comentário:
Excelente! Parabéns ao autor, e obrigado ao blog por nos trazer textos com tanta diversidade política!
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