segunda-feira, 8 de abril de 2024

Miguel de Almeida - Vou chamar o síndico

O Globo

Nascida na esquerda americana, dentro de sua realidade social e política, a gradação ideológica da pauta identitária não é consenso sequer entre os iguais

Em seis situações, a política de cepa identitária assim se encontra neste início de outono:

1) o Tribunal de Justiça de São Paulo abriu concurso para o cargo de desembargador. Homens, fora! É um certame por merecimento somente para mulheres. Vivo, Raymundo Faoro ficaria na janela;

2) a veneranda USP, ancorada em sua Banca de Heteroidentificação, algo como um tribunal racial, rejeitou a inscrição de um aluno, dentro das cotas raciais, por não ser considerado “pardo” o suficiente. Qual Whitney Houston, ele tem “lábios afilados”;

3) a Fuvest, ligada à USP, indicou apenas livros de autoras para seu próximo vestibular;

4) o autor Itamar Vieira Junior, negro, vociferou contra uma crítica a seu novo livro, visto como incipiente, porque foi escrita por uma mulher branca;

5) o deputado Guilherme Boulos, do PSOL, nascido em família de classe média, escolheu morar na empobrecida periferia paulistana;

6) muitos dos indicados a cargos comissionados pela base governista não têm currículo profissional à altura da ocupação, mas preenchem o figurino identitário. Não falo de “ministres”.

Os flagrantes poderiam soar como manchetes do Sensacionalista, se não fossem fatos reais. Nascida na esquerda americana, dentro de sua realidade social e política, a gradação ideológica da pauta identitária não é consenso sequer entre os iguais. A tradução sem adaptação a outros cantos do planeta causa ruídos estridentes. O MeToo dos Estados Unidos, protagonizado por estrelas de Hollywood, se viu ridicularizado por intelectuais e atrizes francesas, em razão de seu caráter messiânico. Brigitte Bardot chegou a falar em hipocrisia e de gente que estava cuspindo na cama.

Élisabeth Roudinesco, historiadora e psicanalista, buscou, no livro “O Eu Soberano”, as raízes da saga para decifrar o caldo de sua intolerância. Lembra como o filósofo Jean- Paul Sartre, um dos líderes da luta anticolonial na Europa no século passado, é crucificado pelo movimento negro. Na argumentação do grupo, Sartre não tem direito a levantar tal bandeira por ser branco. Ai.

Nada a estranhar. O chamado “lugar de fala” não permite que haja solidariedade humana. Karl Marx, pelo raciocínio, estaria desossado — sendo de classe média, não poderia defender os pobres. De acordo com Roudinesco, a bandeira identitária é apenas outra forma de luta pelo poder. De ocupação de espaço a partir de uma tribalização da sociedade, como diversos autores também afirmam. Com outro aviso ainda: a atomização, ao dar pano e linha de lambuja para a extrema direita, explica parte da atual onda populista ao redor do mundo. Eu acrescentaria a mudança de paradigma nos meios de produção — do industrial ao digital — como importante elemento na desestabilização social. Imagine fábrica sem operários. O ministro Luiz Marinho terá de buscar contribuição sindical junto a um ou outro robô (em alguns locais, as entregas já são feitas por drones).

Sempre uma luta justa, os atores identitários começam a bagunçar o ritmo. Como no caso do movimento negro e de alguns de seus próceres. Aplicada a lógica do “lugar de fala”, praticada pelo autor Itamar Vieira Junior, o ex-senador e escritor Afonso Arinos seria outro a ser jogado na panela. O ex-ministro de Jânio Quadros, ainda sob o governo de Getúlio Vargas, fez aprovar a Lei Arinos — a primeira no país contra o racismo. Ele era branco. Como Sartre, estaria hoje no óleo quente da intolerância.

Assim como Lula acaricia seus ditadores, violadores de direitos humanos, a banda identitária ainda negocia os anéis. O Masp, hoje instituição mais politicamente correta do país, montou no ano passado mostras de Paul Gauguin e de Abdias do Nascimento. O pintor francês do século XIX se viu acusado de pedofilia em sua estada no Taiti. Não havia nenhum apontamento de antropólogos sobre os costumes daquelas etnias.

As obras de Abdias do Nascimento, sempre um ícone da luta antirracista, ficaram sem admoestações. Mesmo que seja visto como um dos inspiradores da palavra de ordem “miscigenação é racismo”. Há ainda outros esquecimentos. O ex-senador brizolista, antes militante do movimento integralista sob a liderança do direitista Plínio Salgado, espécie de protobolsonarista, era casado com uma militante americana: Elisa Larkin, sempre loura.

Em São Paulo, existem dois exemplos opostos, capazes de mostrar a catatonia ideológica brasileira. Guilherme Boulos, de classe média, foi morar em bairro de trabalhadores. Tabata Amaral, nascida em família modesta, estudou em escolas públicas e acabou na Universidade Harvard, uma das melhores do mundo.

 

Um comentário:

Daniel disse...

Excelente! Parabéns ao autor, e obrigado ao blog por nos trazer textos com tanta diversidade política!