- O Globo
Desfiles na Sapucaí ampliam visibilidade, escancaram polêmicas
Ao longo de pelo menos quatro décadas de olhar atento aos desfiles, aprendi com o carnaval muitas histórias — contadas ou não — nos livros escolares. Nenhuma delas se relacionou com o vídeo chulo compartilhado por um presidente da República que ainda não aprendeu a liturgia do cargo, e a quem é altamente recomendável a leitura de um código de conduta ou, melhor ainda, um detox das redes sociais. Jair Bolsonaro se elegeu com agenda tão ambiciosa quanto desafiadora. Prometeu dedicar os dias de folia a montar a estratégia de adesão de congressistas e da sociedade à reforma da Previdência elaborada pela equipe econômica. Em vez disso, tuitou conteúdo impróprio e depreciativo à pedagogia da mais importante festa nacional.
O que o carnaval ensina não é pouco nem recente. Décadas antes de Leandro Vieira, o artista catapultado a protagonista do espetáculo das escolas de samba, ter a ideia que levou à maiúscula vitória da Mangueira este ano, os desfiles já presenteavam o grande público com episódios soterrados pela História oficial. Em 1960, Fernando Pamplona, forjado na Escola de Belas Artes (EBA/UFRJ), inaugurou com “Zumbi dos Palmares” no Salgueiro a série de enredos afro que transformariam para sempre a folia. Joãosinho Trinta, outro gênio, reverenciou personalidades negras — de Ganga Zumba a Grande Otelo e Pelé, de Clementina de Jesus a Pinah — em “A grande constelação das estrelas negras” (Beija-Flor, 1983). A Vila Isabel, que neste 2019 deu vivas à princesa de quem tomou emprestado o nome, 31 anos atrás foi campeã com “Kizomba”, enredo de valorização das origens africanas no centenário da Lei Áurea. No mesmo 1988, a Mangueira conseguiu o vice com desfile crítico à Abolição, que não livrou os negros da exclusão social.
Grandes mulheres foram apresentadas ao país pelo carnaval: da ex-escrava e empreendedora Xica da Silva (Salgueiro, 1963) à bailarina negra Mercedes Baptista (Acadêmicos do Cubango, 2008). Foi o então carnavalesco Milton Cunha que, pela Beija-Flor, me revelou a botânica Margaret Mee (1994) e a soprano Bidu Sayão (1995); e pela Unidos da Tijuca (2003), a saga dos agudás, negros que fizeram o caminho de volta do Brasil para o continente de origem.
Necessária e alinhada ao nosso tempo, de cobrança por representatividade e protagonismo feminino, negro, indígena, popular, a narrativa da Mangueira de 2019 não é nem inédita nem suficiente. É o capítulo mais recente e, talvez, contundente de um ativismo que pavimentou longo caminho de reconhecimento a personagens e episódios menosprezados ou invisibilizados pela História. Em 1924, o jornal “Clarim da Alvorada” publicava em São Paulo coluna sobre vultos históricos, como os irmãos engenheiros Antonio e André Rebouças e o advogado Luís Gama.
Na primeira metade do século XX, a Frente Negra Brasileira reivindicava a obrigatoriedade do ensino de História da África e cultura afro-brasileira nas escolas. Nos anos 1940, o Teatro Experimental do Negro, liderado por Abdias Nascimento — que completaria 100 anos neste 14 de março, o do primeiro aniversário da execução brutal da vereadora Marielle Franco, homenageada pela Mangueira —, defendia o mesmo, conta a historiadora Giovana Xavier, da UFRJ. Mas a legislação só foi promulgada em 2003 — e jamais aplicada plenamente.
“A Lei 10.639 é resultado de lutas centenárias para reconhecer o protagonismo negro. Ao longo de 22 anos de carreira como professora, conheci centenas de colegas em todo o Brasil, que, nas condições mais precárias, contam essas histórias que não estão no retrato todos os dias”, resume a historiadora.
Desfiles na Sapucaí ampliam visibilidade, escancaram polêmicas, provocam a opinião pública, despertam o interesse. Sozinhos, não transformam. Nem o carnaval nem o Brasil. O que traz mudança é batalha diária, ação incessante. O Rio de Janeiro e o Brasil dormiram mais felizes com a vitória da Mangueira, mas não acordaram diferentes. Como bem ensinou o espetacular samba-enredo de Manu da Cuíca e parceiros: “Na luta é que a gente se encontra”.
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