segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Gustavo Loyola* - A ressurreição da “Nova Matriz”

Valor Econômico

Parcelar pagamento de precatórios para abrir espaço para novos gastos soa como nova forma de pedalada fiscal, tão ou mais grave do que aquelas que foram atribuídas à administração Dilma

No Brasil, não basta apenas o passado ser incerto. Aqui o presente e o futuro são permanentemente assombrados por fantasmas de vilões notórios do passado. O recente assassinato do teto dos gastos pelas mãos do governo Bolsonaro é prova disso. Bolsonaro, com a ajuda do Congresso Nacional, acaba de trazer de volta a famigerada e catastrófica “Nova Matriz Econômica” que marcou o governo petista de Dilma Rousseff.

Essa volta de 360 graus colocando o arcabouço fiscal praticamente na mesma posição em que estava quando do impeachment de Dilma vai trazer enormes prejuízos para a sociedade brasileira. No curto prazo, interrompe a recuperação da econômica que se seguiu à pandemia da covid-19. No médio e longo prazo, em razão do enfraquecimento das instituições fiscais, põe em risco a solvência do setor público e representa uma ameaça inflacionária de graves proporções.

Não se trata de catastrofismo. Ao contrário. São abundantes as evidências de que as instituições que sustentam a solvência do setor público estão se enfraquecendo continuadamente nos últimos meses, com a cumplicidade, em maior ou menor grau, dos três Poderes da República. O uso abusivo, em 2021, das emendas de relator para criação de um orçamento paralelo para atender interesses paroquiais de parlamentares, em detrimento de alocações para despesas obrigatórias, deu partida a um ataque generalizado à responsabilidade fiscal, culminando com a proposta do próprio Poder Executivo de violação do teto de gastos para viabilizar um programa de transferência de renda com intuito visivelmente eleitoreiro.

No mesmo contexto, a iniciativa de parcelar o pagamento de precatórios para abrir espaço para novos gastos soa como uma nova forma de pedalada fiscal, tão ou mais grave do que aquelas que foram atribuídas à administração Dilma.

O teto de gastos foi introduzido logo após os danos produzidos pela “Nova Matriz Econômica” no governo de Dilma Rousseff. Como âncora fiscal, seu objetivo era o de gerar credibilidade no processo de reversão do déficit primário herdado do governo petista, inclusive com a aprovação de reformas estruturais, num horizonte em que se evitaria uma contração fiscal abrupta com danos recessivos numa economia já enfraquecida. Apesar de não ser um mecanismo perfeito, a medida logrou efeitos positivos, permitindo a redução imediata do prêmio de risco e das taxas de juros, beneficiado por certo também pela recuperação da credibilidade do Banco Central.

O Brasil é conhecido como sendo um país em que há dois tipos de lei: as que pegam e as que não pegam. Por isso, há aqui inúmeros dispositivos legais que são letra morta; ninguém se dá ao luxo de observá-los. Sequer precisam de revogação explícita. A Emenda Constitucional que criou o teto de gastos começa a seguir essa nefasta tradição. Vai permanecer inscrita na Carta Magna, mas exceções casuísticas serão tantas que sua efetividade será zero. Aliás, não será a primeira regra fiscal que cai no vazio por intepretações e exceções oportunistas. A excelente e inovadora Lei de Responsabilidade Fiscal sofreu o mesmo processo de enfraquecimento, com inovações interpretativas que flexibilizaram as restrições formalmente estabelecidas na Lei.

Desse modo, a reação dos mercados ao anúncio do abandono do teto de gastos em 2022 com o patrocínio do próprio ministro da Economia foi mais do que justificada. Com o enfraquecimento do valor da moeda e o deslocamento para cima da curva de juros, a economia começou imediatamente a pagar o preço da irresponsabilidade fiscal, numa conjuntura macroeconômica já difícil pela ocorrência de choques negativos de oferta e aceleração da inflação.

A propósito, a decisão do último Copom de acelerar o ritmo de alta da taxa Selic e de sinalizar um ciclo mais longo de elevação dos juros deveu-se muito à piora das expectativas que derivou do anúncio do rompimento do teto de gastos, tendo o Comitê avaliado que “os recentes questionamentos em relação ao arcabouço fiscal elevaram o risco de desancoragem das expectativas de inflação, aumentando a assimetria altista no balanço de riscos”.

Com tudo isso, aumentaram em muito as chances de o crescimento econômico voltar ao terreno negativo em 2022, agravando um ciclo de baixo crescimento iniciado nos estertores do último governo petista. Em tal cenário, as condições do mercado de trabalho continuarão desfavoráveis trazendo prejuízos sociais que nem de longe serão mitigados por programas de transferências de renda patrocinados pelo governo federal.

Paira sobre o Brasil o espectro de uma eleição presidencial polarizada em que a população terá que decidir entre o diabo e o capeta no que concerne ao compromisso dos candidatos com a responsabilidade macroeconômica. Tomara que tal situação não se concretize, mas é inevitável lembrarmos do título de uma celebrada e distópica obra do escritor Ignácio de Loyola Brandão: “Não verás país nenhum”.

*Gustavo Loyola, doutor em economia pela EPGE/FGV, foi presidente do Banco Central e é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo

 

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