Folha de S. Paulo
As condições que permitem aborto no Brasil
não dão conta da nossa realidade
Neste mês em que celebramos conquistas das
mulheres, tivemos aqui no Brasil demonstrações ultrajantes do quanto regredimos
em respeito às nossas lutas e reivindicações. E aqui peço licença ao leitor
para me incluir no texto como sujeito do coletivo maior: mulheres que lutam
para ocupar espaços em sociedades ainda marcadamente patriarcais.
O tratamento degradante a nós dirigido vem do mesmo caldo onde fermentam Bolsonaro e outras figuras repulsivas, como o deputado paulista que escarneceu de refugiadas de guerra, na Ucrânia, e o procurador-geral da República. Augusto Aras disse o que entende por liberdade de escolha para as mulheres: nós podemos decidir a cor do esmalte e o sapato que queremos usar.
O discurso do PGR, recendendo a bolor e
ranço machista, ignora o direito de escolha que realmente nos interessa: a
autonomia sobre nossos corpos para decidir quando e como ser mãe. Nesse
sentido, o Brasil está na contramão de importantes vizinhos. A chamada
"maré verde" começou com a Argentina (2020)
e expandiu-se com o México (2021)
e a
Colômbia (fevereiro de 2022).
As instituições desses países deixaram de
considerar o aborto crime, em diferentes fases da gestação, dando às mulheres
condições de interromper a gravidez de forma segura, no sistema público de
saúde, não sozinhas e desesperadas em clínicas clandestinas, onde muitas
encontram a morte. No Brasil, o aborto só é permitido em caso de estupro, risco
à vida da mãe e quando o feto não tem cérebro (anencéfalo). São condições que
não dão conta da nossa realidade.
A mescla, proposital e nefasta, entre
política e religião, estimulada por Bolsonaro e sua base fundamentalista e
argentária, contamina o debate e trava qualquer avanço legislativo que nos
permita escapar do risco de prisão, sequelas ou morte diante de uma gravidez
indesejada. É por isso que temos que continuar a gritar alto e bom som:
"Tirem os seus rosários dos nossos ovários!".
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