sexta-feira, 1 de abril de 2022

José de Souza Martins*: A decadência da classe média brasileira

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Politicamente frágil e manipulável, ela é mais descartável e sobrante do que a classe operária, também em crise.

Desde 2021, dados como os do Pnad indicam um encolhimento da classe média no Brasil. Ela já deixara de ser a mais numerosa do país e, em proporção, equiparava-se à classe pobre. É sempre complicado falar em classe social. As estatísticas oficiais lidam com agrupamentos de dados e estratos sociais que são estratos de rendimentos. Classe é outra coisa, mais qualitativa do que quantitativa, mais modo de vida e tipo de mentalidade do que apenas dinheiro no bolso.

De qualquer modo, o rendimento é mediação decisiva na situação de classe e mais ainda na da classe média. É ele que define prestígio, aspirações sociais, nível de consumo e de ostentação. Enfim, tudo aquilo que se tornou característico da sociedade capitalista na modernidade, sociedade que é a classe média a que melhor a personifica.

Os níveis do sofrimento pessoal, decorrente da situação econômica adversa, dos membros da classe média, tendem a ser mais intensos do que os dos mais pobres. A classe média, com mais facilidade, tende ao imediatismo e ao inconformismo, tende a achar que pobreza é um atributo dos outros, os que já nasceram assim, pobres. Fica surpresa e indignada quando a pobreza lhe bate à porta.

Os pobres não tendem propriamente ao conformismo, porque são o último grande reduto social da esperança. Eles têm outra compreensão da adversidade. Os que mais carecem são os que mais esperança têm. Sofrem de modo diferente da classe média.

A consciência socialmente crítica da classe média é diferente e intolerante, enquanto a consciência crítica dos pobres tende a ser a da certeza na superação da adversidade. Os da classe média acham que têm mais a exigir do que os da classe pobre, mais generosos, que têm mais a dar de suas pessoas ainda que nada a dar de seu bolso.

A classe média é refém do hoje e do agora. É muito vulnerável às limitações quantitativas do mundo da vida cotidiana. Mesmo quando tem fé e a professa confia mais nas ilusões mercantis do dízimo do que em qualquer outra coisa. É societária.

O Deus do pobre tende a ser um Deus do mundo do sagrado e da compaixão. Um mundo comunitário, ainda não corroído pelo primado do interesse na mediação da vida.

Esse é um quadro próprio para entender os sofrimentos e consequências do declínio social da classe média. É o que, quase que certamente, definirá seu protagonismo nas eleições de 2022. Talvez diferente de 2018.

Na sociedade moderna, a classe média é o termômetro da situação social. Quando as crises chegam nela, geralmente é porque as estruturas econômicas fundamentais do sistema capitalista foram alcançadas pelas irracionalidades corrosivas da falta de prudência e de competência para administrar a economia.

Não só por parte dos políticos que, no Estado, respondem pela carência de discernimento e de decisões competentes em relação aos problemas sociais e à situação econômica. Mas também aqueles que no setor privado enfrentam dilemas e impasses e correm o risco de tomar decisões erradas. Ou que abrem mão de sua responsabilidade política no campo econômico e no campo social. Os que se entregam à tutela de políticos, profissionais ou amadores, voltados unicamente para as tarefas da própria reeleição. Como o atual presidente em campanha eleitoral pela reeleição desde o dia em que foi eleito para o mandato atual. Mal tomara posse, já estava abertamente agindo como candidato a um novo mandato.

A classe média é a categoria social termômetro da decadência porque classe social típica da sociedade de consumo. Já não é da classe trabalhadora e produtiva, a classe operária, que depende a sobrevivência do capitalismo. Depende da classe improdutiva, a dos consumidores, os que, ao comprar, realizam a riqueza contida no que foi produzido e comercializado.

A decadência da classe média, num país como o Brasil, tem muito a ver também com o fato de que é categoria sem inserção criativa na realidade social. Não é inovadora na criação de situações e de relações sociais. É personagem apenas dos fatores e condições sociais de reprodução, de reiteração social, se as coisas vão bem. Se vão mal, porém, ela empurra a sociedade para a negatividade, para a ruptura institucional ou para a revolução. Enfim, para o inesperado.

Nesse sentido, ela não tem como defender-se contra as adversidades sociais. É politicamente frágil e manipulável. Nas lutas e reivindicações de atualizações salariais ou de melhoria das suas condições de vida, tem a fragilidade de ser mais descartável e sobrante do que a classe operária, também em crise. Já a classe operária tem como recuar adaptativamente para funções que podem ser revitalizadas. É muito menor sua incerteza quanto ao amanhã.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).

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