O Estado de S. Paulo
Não se pode subestimar a capacidade de políticos de atender à reivindicação de impostos baixos e governo grande dissimulando a conta e/ou endividando as gerações futuras
“Novo governo, velhos mitos” foi o título
de artigo que publiquei neste espaço em outro domingo de Páscoa (8/4/2007). O
presidente Lula, reeleito em outubro de 2006, havia levado cinco meses para
completar sua equipe de 36 ministros. O longo processo deveu-se à legítima
preocupação em assegurar uma apropriada base de sustentação no Congresso, o que
parecia ter sido alcançado, escrevi à época, “a um custo político e econômico
que ainda a ninguém é dado avaliar”.
Lula 3 levou menos tempo para escolher seus 37 ministros. Mas ainda não está assegurada uma apropriada base no Congresso, muito menos testada em votações importantes. No encaminhamento das linhas gerais da nova regra fiscal, o ministro Fernando Haddad e sua equipe têm demonstrado habilidade política para lidar simultaneamente com o “fogo amigo” do PT, com o Banco Central, com as lideranças da Câmara e do Senado, com o setor privado e com a mídia profissional. Só a leitura do Projeto de Lei, a ser encaminhado ao Congresso nos próximos dias, permitirá maior clareza sobre a regra, mas a expectativa é de que possa, uma vez aprovada, sinalizar a existência de compromisso firme com o controle da expansão dos gastos públicos. Compromisso que permita a geração de resultados primários e uma trajetória de dívida pública percebida como sustentável no médio e no longo prazos – permitindo a ancoragem das expectativas quanto ao curso futuro da inflação.
Ajudaria enormemente, neste processo, se o
novo regime pudesse incorporar, e transformar em política permanente, elementos
acessórios sugeridos por um grupo de economistas que evoquei neste espaço
(11/12/2022): “Monitoramento, avaliação e revisão permanentes de gastos (...)
para garantir a evolução do gasto primário compatível com uma referência de
trajetória da dívida”. Fica a sugestão para a ministra Simone Tebet.
Os próximos 18 meses serão cruciais para
definir o quadriênio 2023-2026 – e talvez muito adiante. O front econômico será
decisivo. É uma questão de tempo, não longo, para que as expectativas comecem a
incorporar nos prêmios de risco eventos já conhecidos: o presidente Lula
designará nos próximos dois anos 4 dentre os 9 diretores do Banco Central; e
não renovará o mandato de Roberto Campos Neto, que expira ao fim de 2024.
Haverá aumento do gasto público, pilar central da visão que o presidente não
hesita em anunciar. É longa a lista de incertezas e riscos.
Será preciso, também, ao lidar com os
enormes desafios que se impõem, ter presente o contexto internacional. A
inflação assumiu caráter global e deverá permanecer superior, no caso dos EUA e
da Europa, aos 2% de suas metas. O mesmo se aplica a países em desenvolvimento
que utilizam o sistema de metas. Ficou mais custoso alcançá-las, o que pode
exigir prazos um pouco mais longos. No caso do Brasil isso já vem acontecendo.
Fatores importantes operam para que seja
assim. Será difícil contra-arrestar os ventos do envelhecimento da população na
maioria dos países avançados e na China, bem como a redução do crescimento
neste último país; e um mundo cada vez mais suspeitoso, militarizado e
desglobalizando (R. Rajan). Como notou Jared Diamond: “Mesmo quando uma
sociedade foi capaz de antecipar, perceber e tentar resolver um problema, ela
pode ainda fracassar em fazê-lo (...): o problema pode estar além das suas
capacidades; a solução pode existir, mas ser proibitivamente custosa: os
esforços podem ser do tipo muito pouco e muito tarde, e algumas soluções
tentadas podem agravar o problema”. Não faltam exemplos de situações assim,
inclusive no Brasil.
Nosso passado mostra que é irrefreável a
tendência da sociedade de reivindicar, ao mesmo tempo, impostos baixos e
governo grande. Mostra também que não se pode subestimar a capacidade de
políticos de atender a essas reivindicações dissimulando a conta e/ou
endividando as gerações futuras: a “tributação dos ausentes”, na feliz
expressão de Gustavo Franco.
A propósito de processos decisórios no mais
alto dos níveis, são memoráveis as afirmações de Lula, em 17/9/2009, em longa
entrevista ao Valor: “Tenho cobrado sistematicamente da Vale a construção de
siderúrgicas no País. A Vale não pode se dar ao luxo de exportar apenas minério
de ferro” (...) “Convoquei o Conselho da Petrobras para dizer: este é um
momento em que não se pode recuar. Que a Petrobras construa refinarias, estimule
a construção de estaleiros. Leva uma refinaria para o Ceará; um estaleiro para
Pernambuco. Este é o papel do governo”. “Não pense que foi fácil fazer o Banco
do Brasil comprar a Nossa Caixa em São Paulo.” “Quando fui comprar 50% do
Votorantim, tive de me lixar para a especulação.” “Não conheço ninguém que
tenha a capacidade gerencial da Dilma.”
A wish is not a policy, dizem os
pragmáticos anglo-saxões. “Brasilidades”, diriam Rosa, DaMatta, Buarque de
Holanda, José Murilo e outros de nossos estudiosos de nós mesmos, que expressam
uma sabedoria que, também ela, é parte de nossa brasilidade: uma esperança não
insensata que talvez possa ser renovada em momentos de travessia, ressurreição
e festa. Como nesta Páscoa, que desejo que possa ser feliz para todos.
*Economista, foi ministro da Fazenda no
governo FHC.
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