Piso da enfermagem deveria ser alerta para Parlamento
O Globo
Levantamento verificou que tramitam no
Congresso 148 projetos com a mesma natureza absurda
Não parece ter limite a desconexão da
realidade que toma conta dos grupos organizados com capacidade de pressão
política. Tramitam no Congresso, de acordo com levantamento do site Poder360,
nada menos que 148 propostas para criar pisos salariais para 59 categorias
profissionais, 133 na Câmara e 15 no Senado. A exemplo do piso nacional
instituído para a enfermagem, proliferam propostas que tentam garantir
remuneração mínima para toda sorte de ocupação.
Estão na lista psicólogos, médicos, dentistas, veterinários, biólogos, histotecnologistas, técnicos agrícolas e industriais, agentes comunitários, assistentes sociais, professores, educadores físicos, instrutores de artes marciais, operadores de telemarketing, costureiras, nutricionistas, fisioterapeutas, garçons, farmacêuticos, vigilantes, mecânicos e, naturalmente, os onipresentes bombeiros e policiais. Felizmente, até agora a única tentativa que deu certo foi a dos enfermeiros. Ela revela tudo o que há de absurdo nessas iniciativas.
A ideia de gravar o patamar mínimo de
remuneração na lei ou na própria Constituição não tem o menor cabimento do
ponto de vista econômico. Para começar, os custos das atividades são distintos
num país continental como o Brasil. Nas palavras do ministro Luís Roberto
Barroso, relator do processo contra o piso da enfermagem no Supremo, “pisos
nacionais num país com as diferenças e as desigualdades regionais do Brasil,
como regra geral, não parecem ser boa ideia”.
Além das diferenças regionais apontadas por
Barroso, há um problema mais grave: numa economia de mercado, não cabe ao
Estado legislar sobre o valor dos contratos negociados livremente entre
empregadores e empregados. A consequência desse tipo de intervenção é a pior
possível: engessamento do mercado, inviabilização de milhares de empresas,
aumento do desemprego e da informalidade. É o que já se vislumbra no caso da
enfermagem, cujo piso imediatamente pôs no horizonte a bancarrota de
prefeituras e serviços privados de saúde.
O plenário do STF referendou a liminar de
Barroso que suspendeu a aplicação do piso da enfermagem em setembro do ano
passado. Mas o próprio Barroso autorizou o pagamento depois que o Congresso deu
um jeito de aprovar o financiamento do Tesouro a estados e municípios que não
tinham como arcar com o custo. Como em qualquer outra das benesses do
funcionalismo, quem pagará a conta é o contribuinte, num momento em que o país
enfrenta uma crise fiscal sem paralelo.
Quanto ao setor privado, não é muito
difícil enxergar os efeitos nefastos da solução adotada por Barroso. Ele deu 45
dias de prazo para as empresas negociarem com os sindicatos remuneração menor,
sob pena de terem de pagar o piso depois de esgotado o prazo, na primeira
semana de julho. Parece evidente o que acontecerá com hospitais, clínicas e
laboratórios que não tiverem condição de manter o nível de remuneração mais
alto. Farão as contas e promoverão ondas de demissões. Sairá prejudicada a
saúde da população, que precisa dos enfermeiros.
A mesma sucessão de eventos acontecerá com
qualquer categoria para a qual o Congresso se meter a assegurar benefícios
economicamente insustentáveis. Bastará os parlamentares cederem aos lobbies e
grupos de pressão empenhados nesses 148 projetos para a realidade tratar de se
impor.
Dificuldades da Caixa expõem riscos do uso
político das estatais
O Globo
Usado na concessão de consignado a quem não
teria como pagar, banco agora pede ajuda ao Tesouro
A Caixa
Econômica Federal pediu ao Ministério da Fazenda para adiar o
pagamento de uma dívida de cerca de R$ 20 bilhões com o Tesouro. A dificuldade
revela o custo do uso político do banco durante o governo Jair Bolsonaro.
Durante a pandemia, não houve nenhum
problema para o banco pagar os auxílios emergenciais, repassando recursos do
Tesouro por meio de sua ampla rede de agências. O desequilíbrio financeiro veio
da concessão de crédito consignado aos beneficiários de programas
assistenciais, com o objetivo de ajudar o projeto político de reeleição de
Bolsonaro. Ao redor de R$ 3 bilhões foram liberados a 3,8 milhões de clientes
sem avaliar o risco de crédito. O resultado dos empréstimos duvidosos são
índices de inadimplência que chegam a 80% — e deverão ser compensados em parte
pelo Fundo Garantidor de Microfinanças (FGM).
Bancos privados enfrentam os mesmos
problemas da Caixa em seus negócios: uma economia que patina e sofre as
consequências da alta de juros. Mas, por não terem como pedir socorro ao
Tesouro, precisam agir de outra forma. Para começar, nenhum banco privado
entrou na onda de conceder empréstimo consignado a quem recebia Auxílio Brasil
ou outros programas sociais.
No último trimestre de 2022, o Bradesco
registrou lucro líquido de R$ 1,5 bilhão, 76% abaixo do apurado no mesmo
período do ano anterior. A principal causa da queda foi ter provisionado como
reserva todo o crédito concedido às Lojas Americanas, R$ 4,8 bilhões, antes
mesmo de a empresa anunciar que enfrentava problemas. O Itaú, maior banco
privado brasileiro, seguiu o mesmo caminho. No último trimestre de 2022,
provisionou R$ 1,3 bilhão como precaução diante das dificuldades das
Americanas, mesmo assim obteve um lucro de R$ 7,6 bilhões.
A Caixa, por seu turno, apresentou lucro
contábil de R$ 9,8 bilhões, sem nenhuma provisão para os créditos que fora
obrigada a conceder em razão dos programas demagógicos de Bolsonaro. Era sinal
do que estava para acontecer. O socorro agora depende do Plano Plurianual que
será concluído no mês que vem. A presidente do banco, Rita Serrano, foi às
redes sociais falar sobre a situação financeira. Não hesitou ao relacioná-la ao
impacto de programas sociais lançados pelo governo anterior.
Enquanto a Caixa bate às portas do Tesouro,
as instituições privadas têm de contornar as dificuldades por si sós. É
espantoso que um banco estatal seja dilapidado sem que tenha havido nenhuma
reação institucional da burocracia estatal. Agora, espera-se que não seja
permitida a transferência de dinheiro do contribuinte para cobrir o rombo da
Caixa. Seria o fim da picada.
PEC da Desfaçatez
Folha de S. Paulo
Proposta que perdoa infrações de partidos é
escândalo que rebaixa o Congresso
Não foi por acaso que a proposta de emenda
à Constituição número 9/2023 ganhou, mesmo entre seus defensores, o apelido de
PEC da Anistia. Com essa iniciativa, os parlamentares querem assegurar que
permaneçam impunes irregularidades cometidas pelos partidos políticos no uso de
dinheiro público nos últimos ciclos eleitorais.
Reconheça-se a qualidade da alcunha; talvez
fosse melhor, contudo, chamar a proposta de PEC da Desfaçatez. Pois é disso que
se trata: deputados e senadores não se pejam de modificar o texto
constitucional com o único objetivo de se protegerem das punições que, tudo indica,
eram líquidas e certas.
Em defesa do Congresso, diga-se que
coerência não lhe falta. Essa não será a primeira vez que, num gesto de
onipotência, ele não só pede perdão a si próprio como também o concede,
garantindo que infrações às regras do jogo mereçam nada além de um profundo
oblívio.
Mais que a repetição de um padrão imoral
sob qualquer ponto de vista, o que chama a atenção são as cifras recordes
envolvidas. Conforme mostrou reportagem da Folha, os partidos
políticos, em conjunto,
deram um calote de R$ 900 milhões em candidaturas de mulheres e de pessoas
negras.
Pelas normas em vigor nas eleições de 2022,
as agremiações estavam obrigadas a repassar recursos para mulheres e pessoas
negras de forma proporcional à quantidade de candidaturas. Ocorre que, da direita à
esquerda, do governo de turno à oposição, quase nenhuma legenda cumpriu esse
ditame.
Que os políticos gostem ou não desse tipo
de ação afirmativa é irrelevante. A eles compete produzir leis, não
descumpri-las.
O caso das cotas nem é a única infração
cometida quase à unanimidade. Há ainda a malversação do dinheiro público
detectada pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Ao julgar com atraso as contas dos partidos
relativas a 2017, a corte determinou a devolução aos cofres públicos de ao
menos R$ 40 milhões, a título de ressarcimento e multa —valor que ainda precisa
ser corrigido pela inflação.
Entre as situações mais graves está a do
Pros, partido do qual quase ninguém se lembra e que foi incorporado ao
Solidariedade neste ano. Pois essa agremiação nanica julgou oportuno queimar o
dinheiro do contribuinte em itens como 3.700 quilos de carne, além da
construção de uma piscina e da reforma da casa de Eurípedes Jr., que vem a ser
ex-presidente do Pros.
A PEC da Anistia ainda está em tramitação
no Congresso, o que significa que deputados e senadores ainda podem se
corrigir. Caso não o façam, estarão dizendo para toda a sociedade que não têm
escrúpulo de amesquinhar o valor da Casa a que pertencem.
Retomar a imunização
Folha de S. Paulo
Covid afeta cobertura, que cai desde 2016;
é preciso diagnosticar gargalos
No dia 5 de maio, a Organização Mundial da
Saúde decretou o fim do estado de emergência da pandemia de Covid-19. Mesmo
assim, a situação ainda inspira cuidados.
Na semana epidemiológica do fim do mês de
maio, 22,2 mil novos casos e 243 óbitos foram registrados no Brasil. O aspecto
alarmante de fato arrefeceu graças aos imunizantes. Mas, apesar dos benefícios
constatados, a cobertura vacinal contra o Sars-CoV-2 no país enfrenta
dificuldades.
Os dados sobre a vacina bivalente —que
combina a cepa original com a ômicron, predominante em todo o mundo— são
sintomáticos.
Apesar de ter sido lançada em fevereiro
para grupos prioritários e liberada no
final de abril para toda a população acima de 18 anos, até agora
apenas 12,1% dos brasileiros tomaram o imunizante. São Paulo, estado com melhor
desempenho, tem só 17,2% de cobertura; Roraima e Acre têm ínfimos 3,6% e 4,4%,
respectivamente.
Ademais, a pandemia impactou a imunização
contra outras doenças. Em abril, o Unicef chegou a emitir um alerta: a
vacinação contra sarampo, caxumba e rubéola no Brasil caiu de 93,1%, em 2019,
para 71,5% em 2021, e a da poliomielite, de 84,2% para 67,7%.
Os índices já vinham caindo desde 2016, mas
a tendência se acentuou na crise sanitária. O colapso dos serviços de saúde e o
medo das famílias de se contaminarem com o coronavírus levaram à queda na
vacinação —na primeira infância, crianças são imunizadas contra ao menos 17
doenças.
Não à toa, uma das prioridades listadas por
Nísia Trindade, ministra da Saúde, em entrevista à Folha, foi a ampliação
da cobertura vacinal. A chefe da pasta reconhece que há problemas e aponta que
o governo voltou a fazer campanha de conscientização —de fato
lançada em 27 de fevereiro.
É bem-vinda a intenção de focar o trabalho
em áreas carentes, como a região amazônica, e de articular lideranças
religiosas, formadores de opinião e Ministério da Educação para esclarecer a
população sobre a importância da imunização.
Nísia também
falou sobre o perigo da desinformação online, publicada inclusive
por médicos. O Conselho Federal de Medicina, por óbvio, tem o dever de avaliar
e julgar os casos. Mas, dado que o enfraquecimento da cobertura vacinal é
anterior à pandemia, é preciso diagnosticar os gargalos no programa de
imunização brasileiro, não apenas contra o coronavírus.
Educação também é gasto
O Estado de S. Paulo
Seria conveniente atribuir as falhas do
ensino público a uma questão de recursos, mas seria também um equívoco. Todas
as receitas e despesas devem ser contabilizadas pelo arcabouço fiscal
Após sua aprovação pela Câmara dos
Deputados, a proposta que cria um novo arcabouço fiscal chegou ao Senado, onde
a expectativa é que seja apreciada ainda no primeiro semestre. Embora o Senado
seja menos hostil ao governo, senadores têm defendido mudanças para excluir
algumas rubricas do alcance do dispositivo, como as despesas do Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Essas alterações, ao
contrário do que acreditam alguns senadores, não trarão benefícios nem à
educação nem à política fiscal e, portanto, não podem prosperar.
Por trás desse tipo de proposta estão
embutidos vários erros conceituais sobre a política fiscal, mas também um
julgamento moral descabido sobre o mérito do gasto público. É como se houvesse
recursos limitados para algumas áreas e infinitos para outras, um pensamento simplista
que não tem contribuído para melhorar a qualidade do ensino no País.
Sob o ponto de vista orçamentário, é fato
que a educação sempre foi tratada com prioridade. Diferentemente da maioria das
áreas, a educação conta com um piso de gastos definido no texto constitucional.
Desde 1988, a União não pode aplicar menos de 18% de suas receitas com impostos
no ensino, enquanto Estados e municípios têm um limite mínimo de 25%.
Em 2016, durante a discussão do teto de
gastos, os parlamentares blindaram a educação do limite imposto às demais áreas
e garantiram que suas despesas fossem corrigidas pela variação da inflação.
Gastos adicionais também seriam possíveis, desde que fossem compensados com
cortes no Orçamento de outras áreas.
Em plena pandemia de covid-19, à revelia do
que desejava o governo de Jair Bolsonaro, o Congresso promulgou uma emenda
constitucional que tornou o Fundeb permanente e aumentou consideravelmente a
participação da União no custeio do fundo, garantindo o piso salarial dos
professores e um valor mínimo por aluno matriculado no ensino público.
Seria, portanto, conveniente atribuir as
inúmeras falhas da educação brasileira a uma questão de recursos, mas seria também
um equívoco, como bem salientou a secretária executiva do Ministério da
Educação, Izolda Cela, no recente evento Reconstrução da Educação, realizado
pelo Estadão.
Izolda Cela salientou que a área não carece
de mais recursos financeiros, mas de planejamento e da efetiva implementação de
boas políticas públicas. Sobre o ensino integral, por exemplo, a secretária
executiva afirmou que o período que os alunos passam na escola precisa vir
acompanhado de mais qualidade. “Não é só um ‘mais tempo’ de qualquer jeito”,
disse.
A secretária executiva está coberta de
razão. Nos últimos anos, não foram poucas as ocasiões em que recursos da
educação, ainda que reservados, ficaram “empoçados” sem serem executados ou
remanejados para outras finalidades dentro da própria pasta. E, ao menos até
agora, o governo Lula não contingenciou gastos da educação. Dizer isso não é o
mesmo que afirmar que o ensino público não precise de dinheiro, mas avançar na
direção da melhoria do gasto, um debate que o País se recusa a enfrentar há
décadas.
No caso do debate sobre o arcabouço fiscal,
o que parece é que a educação tem sido usada como desculpa para abrir a fila de
exceções a serem contabilizadas na apuração da meta fiscal. Junto com a
educação, senadores querem excluir do alcance da norma, também, o Fundo
Constitucional do Distrito Federal (FCDF), que custeia as forças de segurança
da capital federal.
Como já afirmamos neste espaço, incluir o
Fundeb nos limites do arcabouço fiscal não é falta de sensibilidade com uma
área ou outra, mas o simples atendimento de princípios fiscais básicos, como a
obrigatoriedade de que toda a receita e toda a despesa primária sejam
computadas na apuração da meta (ver editorial Meritório ou não, gasto é gasto,
de 23/5/2023).
Vale para a educação, mas vale também para
a saúde e para todas as outras áreas. O País precisa aprender a fazer escolhas
e a arcar com o peso da responsabilidade por cada uma delas. A educação,
afinal, não pode servir de bode expiatório para o fracasso da política fiscal.
O arriscado ‘negócio da China’
O Estado de S. Paulo
Programa chinês para financiar projetos mal
planejados e possivelmente explorados por corruptos locais na África, Ásia e
América Latina ameaça asfixiar países em desenvolvimento
Em 2013, o presidente chinês, Xi Jinping,
anunciou um vasto programa de financiamento de infraestrutura em economias
emergentes. A Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês), disse
ele, era o “projeto do século”. Com efeito, a China se tornou o maior credor
bilateral do mundo, especialmente para os países em desenvolvimento, eclipsando
até o Banco Mundial e o FMI. Dez anos depois, as falhas no programa – incluindo
a sua opacidade, gerenciamento de risco insuficiente e a participação de algumas
das nações devedoras menos confiáveis do mundo – estão forçando Pequim a uma
operação para apagar incêndios, com o risco de precipitar uma “crise da dívida
do século” para o mercado emergente.
A China financiou projetos de
infraestrutura em dezenas de países, desde ferrovias na África, portos na Ásia
e estradas na América Latina, que, somados, beiram US$ 1 trilhão. Os críticos
chamaram a iniciativa de “diplomacia de armadilha da dívida”, para forçar os
devedores a ceder ativos estratégicos, como portos e minas. Uma vez que os
termos e condições dos empréstimos são sigilosos, é difícil avaliar se e até
que ponto foi esse o caso. Especialistas apontam que os empréstimos vêm de
dúzias de bancos espalhados pelo país e são aleatórios demais para serem
coordenados de cima. De acordo com o centro de pesquisas AidData, do College of
William and Mary, na Virgínia, os contratos iniciais estavam em linha com os
preços de mercado. Na maioria dos casos, os bancos chineses não exigiam dos
tomadores de empréstimo a penhora de ativos físicos. No entanto, os bancos
chineses exigiam que os países mantivessem uma conta separada a ser tomada ou
bloqueada em caso de disputa, o que, somado às condições de confidencialidade,
tornava difícil para outros credores e os próprios cidadãos desses países
monitorar as condições financeiras do governo.
Já no final da década passada, o pagamento
das dívidas começou a escassear. Com a pandemia e a guerra na Ucrânia, os
riscos de calotes se multiplicaram. Novos empréstimos foram feitos pela China,
mais para evitar novos calotes, especialmente na África, do que em novos
projetos. Esses empréstimos, segundo o Kiel Institute for the World Economy,
tomaram novas formas. Eles seguem opacos, mas, além disso, comportam juros
inusualmente altos. De resto, não são canalizados para todos os participantes
da BRI, mas exclusivamente para os que representam riscos para os bancos
chineses. É difícil contornar a suspeita de agiotagem em escala internacional.
Obviamente, os países estrangulados pelo
garrote chinês não são meras vítimas inocentes. É mais do que plausível supor
que boa parte dessas obras foi feita sem planejamento adequado e se tornou
campo fértil para esquemas de corrupção das elites locais. Mas o fato, como
disse o premiê alemão, Olaf Scholz, é que “há um perigo sério de que a próxima
grande crise do Sul Global seja alavancada pelos empréstimos que a China
distribuiu pelo mundo”.
Esforços do G-20, do qual a China faz
parte, para criar um “Quadro Comum” de reestruturação da dívida provaram-se
letra morta. A cooperação exigiria compartilhar informações, mas a China
prefere conduzir suas negociações em privado, frequentemente exigindo
pagamentos em commodities ou seus ganhos futuros, e “furando a fila” dos outros
credores.
“Na minha visão, nós temos de arrastá-los –
mas talvez esse termo seja rude. Nós precisamos caminhar juntos”, afirmou a
diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, a respeito da China. “Porque, se
não o fizermos, haverá catástrofe para muitos, muitos países.”
É do interesse de todo o mundo, incluindo
Pequim, criar um sistema eficiente de resolução de dívidas e empréstimos
emergenciais para conter a crise dos mercados emergentes que se avizinha. Em
alguns casos críticos, como na Zâmbia ou Sri Lanka, a China chegou a cooperar
com o FMI em pacotes de resgate. Mas, para ampliar essa cooperação, será
indispensável que os credores chineses tragam à luz os termos de seus
empréstimos e aceitem soluções multilaterais equânimes para todos os credores.
Por que Juscelino ainda é ministro?
O Estado de S. Paulo
Está elástica demais a tolerância de Lula
com as estripulias de seu ministro das Comunicações
O que falta para o presidente Lula da Silva
demitir o ministro das Comunicações, Juscelino Filho? Depois de abrir as portas
do Ministério para que o sogro, o empresário Fernando Fialho, transformasse a
pasta em escritório privado, o que mais Juscelino teria de fazer para que Lula,
enfim, acordasse para o fato de que seu auxiliar direto não reúne condições
morais e políticas para permanecer no cargo?
Fernando Fialho não foi nomeado para cargo
público algum. Não deveria, portanto, bater ponto no gabinete do ministro das
Comunicações. Para adicionar insulto à injúria, o empresário fez troça do País
ao afirmar que, “em respeito à administração pública”, sua nomeação “jamais foi
cogitada” pelo genro, haja vista a relação de parentesco entre os dois.
Procurado pelo Estadão, Juscelino confirmou
que o sogro se aboletou em sua cadeira de maneira informal, para prestar
“apoio” devido à sua “experiência”. Resta saber em que área, pois em
telecomunicações não é.
O sogro empresário já foi diretor da
Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e secretário de
Desenvolvimento Social e Agricultura Familiar do Maranhão. Sua passagem pelo
governo estadual, aliás, o fez réu em uma ação penal por suspeita de desvio de
R$ 4,9 milhões em recursos públicos por meio de um convênio firmado entre a
secretaria e um obscuro instituto mantido por laranjas. Mas, à luz do interesse
público, ainda que a reputação do empresário fosse imaculada, sua presença no
Ministério já seria totalmente irregular.
Como este jornal tem revelado há meses,
brotam evidências por todos os lados de que Juscelino usa despudoradamente seu
cargo no primeiro escalão do governo para cuidar de seus interesses
particulares. O ministro já fraudou viagens oficiais para participar de leilões
de cavalos em São Paulo; já escondeu patrimônio da Justiça Eleitoral; já pagou
os salários de funcionários de suas propriedades com verba de gabinete da
Câmara dos Deputados; já utilizou recursos do orçamento secreto para asfaltar
uma estrada que dá acesso às suas fazendas no Maranhão.
A facilitação para o lobby ilegal do
sogrão, como se vê, é apenas a afronta mais recente do ministro aos princípios
republicanos. Está longe de ser a última. Se Lula for paciente e lhe der mais
tempo no cargo, Juscelino será capaz de mostrar ao chefe que pode superar os
limites de sua própria indecência.
Decerto interesses políticos de ocasião
podem ter levado o presidente a escolher um obscuro deputado como chefe de uma
das pastas mais importantes da Esplanada. Mas permanece um mistério a razão
pela qual Lula mantém Juscelino Filho no cargo após a revelação de tantos
malfeitos. Não há ganho técnico para o governo, pois a familiaridade de
Juscelino com a área de telecomunicações deve se limitar a saber ligar e
desligar um celular; e não há ganho político, haja vista que o partido do
ministro, o União Brasil, não entrega votos no Congresso e ainda provoca a
ciumeira de outras legendas pelo número de pastas que detém.
Ou seja, não há explicação plausível, e isso autoriza toda sorte de explicações.
Crédito é ferramenta para avançar a pauta
ambiental
Valor Econômico
A pecuária é hoje a principal atividade
rural associada ao desmatamento
A agenda ambiental do setor privado deu um
passo importante na semana passada com o anúncio de que os maiores bancos,
inclusive o BNDES, capitaneados pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban),
vão negar crédito para frigoríficos que comprarem gado proveniente de áreas de
desmatamento ilegal da Amazônia. A iniciativa nem de longe compensa o
retrocesso causado pela retirada das atribuições do Ministério do Meio Ambiente
pela MP que reorganizou a Esplanada e foi aprovada pelo Congresso, mas não
deixa de ser animadora.
O compromisso dos 22 bancos que aderiram à
autorregulação da Febraban é demandar que os frigoríficos da Amazônia Legal e
Maranhão que desejam crédito comprovem não estar comprando gado de região de
desmatamento ilegal de fornecedores diretos e indiretos, por meio de sistema de
rastreabilidade e monitoramento, além do Cadastro Ambiental Rural (CAR) das
propriedades de origem dos animais.
Enquanto os frigoríficos são concentrados,
a produção pecuária é espalhada. Há cerca de 1,2 mil frigoríficos no país, e
três deles respondem por 27% do processamento de carnes. O Brasil é o maior
exportador mundial do produto, vendendo para o mercado internacional 25% da
produção.
A nova regra de crédito dos bancos entra em
vigor em fins de 2025, dando tempo para as empresas se prepararem. Ainda assim
os frigoríficos se manifestaram. Em nome deles, a Associação Brasileira das
Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec) disse não aceitar que “outros setores
terceirizem as suas responsabilidades para os frigoríficos”, reclamando que os
bancos não adotam a mesma exigência socioambiental de proprietários rurais
correntistas. Segundo a Abiec, os frigoríficos já cortaram as relações
comerciais com cerca de 20 mil fornecedores por inconformidade ambiental, “mas
é possível que eles continuem tendo relações comerciais com o setor
financeiro”.
Os frigoríficos têm um ponto e a exigência
de compliance ambiental deveria realmente ser aplicada em todo o relacionamento
do banco. O Manual de Crédito Rural do Banco Central para operações na Amazônia
busca regularizar o tema, embora haja registro de manobras para contorná-lo.
A responsabilização precisa de um ponto de
partida. O crédito para a agropecuária, produtos florestais, pesca e
aquicultura somou R$ 40 bilhões em 2021, segundo o Relatório de Economia
Bancária do Banco Central. Metade desse valor foi para a pecuária, estima a
Febraban. O crédito para a agropecuária cresceu quase 20% em 2021, praticamente
o dobro dos 10,5% da média das operações com empresas. O crescimento foi de 22%
na região Norte e de 14% no Nordeste. Ou seja, o negócio é importante para os
bancos.
E os bancos respondem à pressão
internacional que quer garantir que a carne importada não seja proveniente de
área de desmatamento. Relatório internacional constatou que as importações da
União Europeia contribuíram, em 2017, para 16% do desmatamento relacionado ao
comércio global. O tema é também a principal barreira à conclusão do acordo
União Europeia e Mercosul, que o presidente Lula gostaria de fechar após duas
décadas de negociação.
Os europeus vêm apertando as exigências.
Não as cumprir significa perder mercado. O Parlamento Europeu aprovou, em
abril, legislação que impede que produtos de áreas florestais desmatadas depois
de 1º de janeiro de 2021 sejam vendidos nos 27 países que integram a UE. A
medida atinge as cadeias de uma série de produtos, entre eles a de gado e
derivados. Consta que o texto original responsabilizava os bancos pela
fiscalização da produção, mas a menção foi retirada ao final. Para alguns
especialistas, o recado foi entendido. No que se refere às instituições financeiras,
a questão ambiental esbarra no risco reputacional e na figura jurídica do
poluidor indireto.
É legítima, no entanto, a preocupação com a
preparação dos frigoríficos, especialmente dos menores, para atender as novas
regras. A Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), que representa
estabelecimentos de menor porte, preocupa-se especialmente com a
responsabilidade de checar os fornecedores indiretos, e temem serem ejetados do
mercado e ficar alijados do crédito.
Embora especialistas digam que a tecnologia
da rastreabilidade seja eficiente e barata e ainda passível de ser realizada
com apoio do Fundo Amazônia, nem todos os pecuaristas têm dinheiro para isso,
além de dificuldade para regularizar sua situação, caso estejam fora da lei.
Os números são eloquentes. O desmatamento, com a degradação dos solos, responde por 45% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil, e é a principal fonte de emissões do país. A Amazônia é o bioma que apresenta a maior área desmatada, cerca de 60% do total. A maior parte deste desmatamento, 95% em 2021, segundo o Mapbiomas, ocorre de forma ilegal. E a pecuária é hoje a principal atividade rural associada ao desmatamento. Para resolver tantos problemas será necessária a negociação entre os envolvidos. Afinal, esse cenário já faz parte do horizonte próximo. O Brasil se comprometeu a acabar com o desmatamento ilegal até 2030.
Reforma tributária não pode fracassar
Correio Braziliense
"O sistema tributário brasileiro é
extremamente complexo e injusto. Corrigir as distorções deve ser prioridade
máxima, não apenas do Legislativo"
O Congresso não pode mais adiar a análise e
a votação da reforma tributária. Diante das transformações pelas quais o mundo
vem passando, seja no mercado de trabalho, cada vez mais digitalizado, seja na
questão demográfica, devido ao rápido envelhecimento da população, os governos
terão de correr contra o tempo para ajustar a arrecadação de impostos às novas
demandas por gastos. O Brasil, mesmo ainda tendo uma população majoritariamente
mais jovem que a média dos países desenvolvidos, já se defronta com tal
realidade e numa situação pior, pois não enriqueceu o suficiente para garantir,
por exemplo, boas pensões aos trabalhadores e um sistema de saúde mais
inclusivo.
O sistema tributário brasileiro é
extremamente complexo e injusto. Corrigir as distorções deve ser prioridade
máxima, não apenas do Legislativo. O governo também precisa entrar em campo
para convencer os parlamentares de que, depois de 30 anos de discussões, o país
não tem outra alternativa para ampliar o potencial de crescimento da economia.
Da forma como os impostos estão estruturados hoje, o Brasil está condenado a
crescer pouco, ampliando o fosso que separa ricos e pobres. Sem uma atividade
forte e um ambiente de negócios favorável aos investimentos produtivos, não há
como se pensar em saltos expressivos do Produto Interno Bruto (PIB). Um dos
caminhos para consolidar esse cenário benigno é a indústria.
Historicamente, são as fábricas as mais
punidas pela injusta tributação brasileira. Não à toa, a indústria vem
perdendo, ano a ano, participação no PIB. O setor é responsável pelos empregos
de melhor qualidade e pelos salários mais altos. Contudo, sem competitividade e
amarrada por impostos em cascata, não consegue dar o salto de produtividade que
a economia atual exige. Não se está pedindo privilégios, até porque não há mais
espaço para isso no Orçamento da União. O que está em jogo é a importância de
se corrigir erros sucessivos cometidos ao longo de décadas para financiar uma
máquina estatal ineficiente e cara.
O quadro no Brasil é mais alarmante em
relação ao mundo desenvolvido, porque o país ainda está debatendo que imposto
será incorporado ao outro, se terá alíquota única ou diferenciada. Na Europa,
por exemplo, as discussões são no sentido de buscar fontes adicionais de
financiamento para o Estado, levando-se em conta a nova economia, com sua
digitalização e a inevitável transição energética. Os europeus têm a exata
noção de que a tributação sobre a renda já está no limite. Portanto, o desafio
é descobrir de onde podem vir recursos extras para manter as conquistas sociais
obtidas após a Segunda Guerra Mundial.
O Brasil corre o risco de perder mais uma
oportunidade de tirar os dois pés do atraso com a reforma tributária. A postura
fisiológica do Congresso tem se escancarado votação após votação. Mantido esse
comportamento arcaico, as chances de ao menos uma parte do ajuste dos impostos
sair do papel ficarão cada vez menores. O certo é que todos perderão, sobretudo
os mais pobres, que, proporcionalmente, pagam mais tributos. Apenas essa
informação já seria motivo de sobra para que governo e legisladores agissem em
benefício do país.
Ante a premência da reforma tributária ameaçada, a sociedade terá papel crucial no sentido de pressionar Legislativo e Executivo a levarem adiante as propostas que estão mais do que maduras entre deputados, senadores, governadores e prefeitos. Defender interesses setoriais só pune a maioria. O ansiado ajuste na estrutura dos impostos resultará em ganhos ao logo do tempo para todos. Esse deve ser o pensamento, não o do fisiologismo e o daqueles que tentam incutir o falso dilema de que os preços vão subir com a reforma. O Brasil já tributa excessivamente o consumo. Agora, é hora de avançar sobre a renda dos mais ricos, começando pela cobrança de impostos sobre lucros e dividendos. Isso é justiça social.
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