Foi uma ousadia porque, desde o golpe de 1964, os militares sempre haviam corrido sozinhos na sucessão, com candidato único
Ricardo
Westin / Folha de S. Paulo
BRASÍLIA | AGÊNCIA SENADO
Uma das ações mais
ousadas do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) na ditadura militar completa 50 anos. Em 22
de setembro de 1973, o partido da oposição desafiou os generais e lançou a
"anticandidatura" do deputado federal Ulysses Guimarães (MDB-SP) à
Presidência da República.
Foi uma ousadia porque,
desde o golpe de 1964, os militares sempre haviam corrido
sozinhos na sucessão, com candidato único. Ninguém havia se aventurado a
enfrentar o regime numa eleição presidencial até aquele momento.
O MDB adotou o
provocativo termo "anticandidatura" por saber desde o início que não
tinha chance de vencer. Tratava-se, em outras palavras, de uma candidatura
simbólica.
O Arquivo do Senado, em
Brasília, guarda o histórico discurso que Ulysses, também presidente nacional
do MDB, proferiu na convenção partidária que o lançou
"anticandidato".
Na fala aos correligionários,
explicou que o objetivo não era ganhar a votação, algo inalcançável, mas, sim,
aproveitar a visibilidade eleitoral para mostrar ao povo os abusos da ditadura
e convencê-lo a também pressionar pela redemocratização:
"Não é o candidato que vai recorrer o país. É o anticandidato, para denunciar a antieleição imposta pela anticonstituição que homizia [encobre] o AI-5 [a norma mais repressiva da ditadura], submete o Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões desamparadas pelo habeas corpus e condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina e torna inaudíveis as vozes discordantes, porque ensurdecem a nação pela censura à imprensa, ao rádio, à televisão, ao teatro e ao cinema."
O MDB não poderia ganhar
porque a ditadura havia tornado as eleições para o Palácio do Planalto
indiretas. Os cidadãos não votavam para presidente.
A escolha cabia ao Colégio
Eleitoral, que, formado por todos os senadores e deputados federais e alguns
deputados estaduais, era dominado com folga pela Arena (Aliança Renovadora
Nacional), o partido de sustentação dos militares.
Por força do Ato
Institucional nº 2 (AI-2), baixado em 1965, a liberdade partidária estava
extinta, e a Arena e o MDB eram as duas únicas agremiações políticas
autorizadas a funcionar. Por essa razão, os historiadores costumam descrever o
MDB como "oposição consentida".
A
"anticandidatura" de Ulysses foi anunciada uma semana depois de a
Arena apresentar a candidatura do general Ernesto Geisel. O militar, homem de confiança do
regime, presidia a Petrobras.
Naquele histórico
discurso de setembro de 1973, Ulysses reconheceu que a vitória do candidato da
Arena era inevitável:
"O Movimento
Democrático Brasileiro não alimenta ilusões. Na situação, o anunciado como
candidato, em verdade, é o presidente, que não aguarda a eleição, e sim a
posse. Na oposição, também não há candidato, pois não pode haver candidato a
lugar de antemão provido. Dura e triste tarefa esta de pregar numa 'república'
que não consulta os cidadãos e numa 'democracia' que silenciou a voz das
urnas."
Ele resumiu o objetivo da
"anticandidatura":
"A inviabilidade da
candidatura oposicionista testemunhará perante a nação e perante o mundo que o
sistema não é democrático."
Os documentos do Arquivo
do Senado mostram que os políticos da Arena se irritaram com o discurso de
Ulysses. O senador José Lindoso (Arena-AM), por exemplo, chamou-o de mentiroso:
"O discurso do
candidato do MDB, homem respeitável, não correspondeu à sua reconhecida
sabedoria política. Impõem-se considerações serenas, porém veementes, sobre as
assertivas daquele discurso não com vista à presente geração, que o sabe de
flagrante irrealismo político e desfocado do painel das perspectivas da
história nacional. Impõe-se tão somente a serviço da verdade, para colaborar
com o analista do futuro quando tiver de elaborar juízos ante a fala do
candidato presidencial."
Lindoso avaliou que as
críticas de Ulysses não passavam de "pobre jogo" e tinham
"efeito eleitoreiro fora de moda". Os generais não poderiam ser
criticados porque, segundo ele, vinham garantindo ao Brasil desenvolvimento
econômico e justiça social.
O senador concluiu:
"Em março de 1974,
comemoraremos o décimo aniversário da revolução [golpe de 1964]. Fez-se não uma
mera mudança de comando de políticos, mas uma revolução para traçar novo
roteiro na história. Revolução não se faz com amenidades. Tem objetivos na
defesa do povo e na luta pela eternidade da pátria. A revolução está
completando o seu ciclo excepcional, e o nosso partido é o seu instrumento
político. O povo maciçamente a apoia."
Para compor a chapa com
Ulysses, o MDB escolheu o jornalista e ex-deputado Barbosa Lima Sobrinho para
candidato a vice-presidente. A Arena, por sua vez, escalou o general Adalberto
Pereira dos Santos para vice de Geisel.
Entre setembro de 1973 e
janeiro de 1974, Ulysses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho percorreram diversas
capitais promovendo a "anticandidatura".
Na visão do senador
Danton Jobim (MDB-Guanabara), a coragem da dupla emedebista merecia aplausos:
"O que a nação hoje
está vendo será, porventura, a quixotice ou a gasconnade [bravata] de uma
candidatura fantástica, fantasmagórica ou impossível? Não. O que vemos é o
exemplo admirável de dois cidadãos carregados de serviços à vida pública e de
bravura cívica incontestável e incontestada, oficiando no altar do sacrifício
para que o credo da supremacia da lei, a religião da liberdade e o culto do
governo do povo pelo povo não venham a desaparecer da nossa terra."
Para espalhar sua
mensagem por toda a sociedade, o MDB esperava contar com a propaganda eleitoral
no rádio e na TV. A possibilidade provocou debates acalorados no Senado. Do
lado oposicionista, o senador Nelson Carneiro (MDB-Guanabara) explicou:
"O que deseja o MDB
é levar ao público, ao povo, a todas as camadas da opinião pública, como poderá
fazer a Arena, a sua palavra para esclarecer as razões que justificaram a
indicação de candidatos à Presidência e à Vice-Presidência da República."
Do lado governista, o
senador Vasconcelos Torres (Arena-RJ) discordou:
"Se a eleição é
indireta, indago: junto a quem a propaganda deve ser feita? Junto àqueles que
vão constituir o Colégio Eleitoral e votar. Para que ir ao rádio e à TV, se os
candidatos podem reunir-se aqui? Estou disposto a ouvir. Vou votar na Arena por
entender que escolheu bem o seu candidato. Entretanto, quero ouvir o brilhante
deputado Ulysses Guimarães e o honrado jornalista Barbosa Lima Sobrinho. O meu
voto não vai mudar. Mas é aqui que a propaganda deve fazer-se."
Carneiro não se deu por
vencido e insistiu:
"Nós, políticos,
deveríamos estar lutando para permitir a propaganda política, não para
impedi-la. É lamentável. Que fiquem tranquilos [os senadores da Arena], pois,
dentro das suas modestíssimas possibilidades financeiras, o MDB fará a campanha
que lhe for possível. Já no sábado, se fará a primeira reunião em Santa
Catarina. Na semana seguinte, iremos ao estado do Rio de Janeiro e, com os
recursos que tivermos, faremos a propaganda. Para comover este país, basta
fazer um cartaz com esta pergunta: 'O custo de vida subiu 12%?'. As donas de
casa responderão."
O senador Eurico Rezende
(Arena-ES) criticou uma motivação supostamente oculta dos adversários para o
pedido de propaganda no rádio e na TV:
"Qualquer pessoa de
mediana inteligência verifica que o MDB deseja não é fazer propaganda de seus
candidatos à Presidência e à Vice-Presidência da República. É assegurar a sua
presença na comunicação sonora e visual duas vezes, para que os seus candidatos
a deputado federal e senador em 1974 embarquem agora na campanha presidencial.
A honrada oposição deseja, por esse artifício, realizar duas campanhas
eleitorais para os postos parlamentares deste país."
Essa intenção, na
verdade, nada tinha de inconfessável. Ela havia sido anunciada pelo próprio
Ulysses Guimarães no discurso de sua "anticandidatura".
Os planos do MDB foram
logo por água abaixo. O TSE (Tribunal Superior Eleitoral), subordinado ao
governo militar, vetou a propaganda gratuita no rádio e na TV por entender que
ela só fazia sentido nas eleições diretas, como aquelas para prefeito, deputado
e senador.
Isso mostra que, se não
chegou ao extremo de proibir a "anticandidatura" oposicionista, a
ditadura fez o que pôde para sabotá-la.
O discurso do general
Ernesto Geisel no lançamento de sua candidatura foi transmitido ao vivo pela TV
para todo o Brasil. O discurso do deputado Ulysses Guimarães, por sua vez, não
—contrariando a promessa do governo de que o evento do MDB também seria
televisionado. Ulysses falou naquele 22 de setembro acreditando que era visto
pelo país inteiro. Só soube que não após a convenção.
O senador Nelson Carneiro
denunciou a sabotagem:
"O governo dirá que
em momento algum proibiu o televisionamento e até ajudou a oposição, cedendo o
caminhão de externas da Agência Nacional. Os líderes da Arena na Câmara e no
Senado já estão instruídos para sustentarem a preliminar de que tudo se deveu a
uma decisão das emissoras. Parece tudo muito cômodo: a transmissão não foi ao
ar porque as emissoras não quiseram se responsabilizar por ela e, assim, correr
o risco de punições. Provavelmente não se terá durante muito tempo a medida
exata das intenções e das manobras que determinaram a não transmissão dos
discursos de Ulysses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho."
De acordo com o senador
Franco Montoro (MDB-SP), a sabotagem também afetou a mídia impressa. Ele citou
o caso de um jornal do Rio de Janeiro:
"O jornal Opinião
pretendia publicar na íntegra o discurso proferido pelo deputado Ulysses
Guimarães, divulgado por toda a imprensa. Tudo foi censurado. Está aqui o
exemplar da Censura. É evidente que se trata de uma exorbitância, de uma medida
destituída de fundamento. São a liberdade de imprensa e o direito que tem a
opinião pública de ser informada que estão sendo violados pelo ato de um
funcionário subalterno da Censura. A matéria é seria e exige esclarecimento das
autoridades. Há alguma coisa de desacertado entre a Censura e o Ministério da
Justiça."
Por força daquele
ambiente hostil à democracia, Ulysses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho não
fizeram a campanha majoritariamente na rua, com grandes comícios ou passeatas,
mas em locais fechados, como clubes, teatros e universidades, com público
reduzido.
Em certas cidades, os
governantes não permitiram que os candidatos do MDB se apresentassem em prédios
públicos. Em outras, a polícia ficou na cola deles o tempo todo, com o intuito
de inibi-los nas críticas ao regime.
As TVs ignoraram a
"anticandidatura". Como estavam sujeitas à censura e não queriam
problemas com a ditadura, preferiram omitir as viagens de Ulysses pelo país. Os
jornais, ao contrário, noticiaram a campanha, mas prudentemente sem dar
destaque ou demonstrar apoio.
Muitos brasileiros, por
essa razão, jamais souberam da existência de uma candidatura alternativa à
Presidência da República na eleição de 1974.
Durante a campanha, os
parlamentares do MDB evitaram ataques violentos a Geisel, para não sofrerem
retaliações no futuro. Afinal, o candidato da Arena inevitavelmente seria o
ocupante do Palácio do Planalto. Fizeram críticas, sim, porém cautelosas,
comedidas, nas entrelinhas.
O senador emedebista
Nelson Carneiro discursou:
"Por votar em
Ulysses Guimarães, não quer dizer que eu não reconheça no general Ernesto
Geisel aquelas qualidades para governar e dirigir bem este país. Inclusive
porque somente nele nós podemos depositar as esperanças do diálogo político que
está interrompido neste país desde 1968 [quando foi baixado o AI-5]. É preciso
que se reabra esse diálogo, e a esperança é o general Ernesto Geisel."
O colega de partido
Danton Jobim adotou um tom semelhante:
"Sinto verdadeira
admiração pela figura austera do ex-presidente da Petrobras, que deverá ser
neste momento de exceção, por processos que não aprovamos, o futuro presidente
da República. O voto do país é para que ele continue a obra do seu antecessor
no campo do progresso econômico, mas que abra corajosamente uma janela no
sistema fechado da revolução, por onde possa entrar uma lufada de ar fresco, a
participação popular na obra do governo."
Em 15 janeiro de 1974,
sem provocar surpresa ou comoção, Geisel ganhou de lavada. Ele recebeu 400
votos no Colégio Eleitoral. Ulysses, por sua vez, meros 76. Houve 21 votos
nulos.
Dois meses depois, o
general Emílio Garrastazu Médici passou a faixa presidencial ao general Ernesto
Geisel, que se tornou o quarto dos cinco presidentes da ditadura militar.
O historiador Rodrigo
Patto Sá Motta, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e
autor do livro "Passados Presentes: o golpe de 1964 e a ditadura
militar" (Editora Zahar), lembra que, no momento em que lançou a
"anticandidatura", o MDB estava em franca decadência.
Entre 1966 e 1968, os
parlamentares do MDB foram extremamente críticos, combativos, agressivos. A ditadura
reagiu com o AI-5, cassando dezenas de mandatos. O partido ficou acuado e
apático.
Ao mesmo tempo, o governo
militar ganhava cada vez mais respaldo popular, em razão do chamado milagre
econômico (com o país crescendo mais de 10% ao ano), do tricampeonato na Copa
do Mundo de 1970 e das comemorações ufanistas dos 150 anos da Independência, em
1972.
Nas votações
parlamentares de 1970 e municipais de 1972, ambas diretas, os resultados foram
péssimos para o MDB, que elegeu poucos candidatos. Diante de tanta debilidade,
o partido cogitou a possibilidade de se autodissolver.
Sá Motta explica que, na
época, muitos políticos do MDB enxergaram a "anticandidatura" como um
fiasco e até mesmo um tiro no pé:
"Primeiro, claro,
porque Ulysses não venceu. Depois, porque a candidatura da oposição, na visão
desses políticos, acabou legitimando o sistema de eleição indireta. Uma ala do
MDB defendia a retirada da candidatura poucos dias antes da votação do Colégio
Eleitoral, justamente para deslegitimá-la. Por fim, porque o partido saiu
rachado da eleição. Alguns parlamentares do MDB preferiram votar nulo a votar
em Ulysses."
Segundo o historiador,
foi somente mais tarde que se entendeu que a "anticandidatura"
representou um divisor de águas na história do MDB e marcou a ascensão do
partido. Sá Motta continua:
"Eu acredito que,
por causa da censura, o efeito da "anticandidatura" sobre a população
em geral foi pequeno. A mensagem da oposição não chegou ao povo. No entanto, o
efeito sobre os militantes do MDB foi enorme. A coragem cívica de Ulysses
estimulou a militância a se tornar mais ousada, aguerrida e agressiva e levou o
MDB a se firmar como um partido verdadeiramente de oposição."
Não à toa, na primeira
eleição parlamentar posterior à "anticandidatura", em novembro de 1974,
o MDB alcançou um resultado surpreendente. No voto popular, o partido cresceu
extraordinariamente no Senado, na Câmara dos Deputados e na assembleias
estaduais, passando a ter poder de veto.
"O crescimento do
MDB foi tão significativo que em certos momentos Geisel se viu forçado a pisar
no freio da distensão política", lembra o historiador da UFMG.
Sá Motta diz que as
pessoas normalmente se lembram do Ulysses que ajudou a liderar a campanha Diretas Já, em 1983 e 1984, do que conduziu a
elaboração da Constituição de 1988 e até do que se candidatou a presidente da
República em 1989, mas desconhecem o Ulysses que desafiou os generais há 50
anos, com sua "anticandidatura".
Na visão do historiador,
esta última faceta também deveria ser de conhecimento público, para o bem da
democracia:
"A 'anticandidatura'
é um episódio que precisa ser conhecido e lembrado porque muita gente, levada
por mentiras, pensa no período militar com nostalgia e pede a sua volta, como
se não tivesse sido uma ditadura. Um dos argumentos que os negacionistas usam
hoje e os próprios militares usavam na época é o de que havia eleições
periódicas para presidente. Havia mesmo, mas a oposição não tinha chance de
vencer. A votação era um jogo de cartas marcadas, e as campanhas eleitorais
tinham censura, repressão e prisão de oposicionistas. Isso tudo significa que o
Brasil era, sim, uma ditadura, nunca uma democracia."
Um comentário:
Artigo lonnngo e esclarecedor.
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