quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Maria Cristina Fernandes - Brasil desafia crença de que a catástrofe une

Valor Econômico

O tardio conjunto de propostas do governo em resposta à crise das queimadas na Amazônia e no Pantanal nem chegou ao Congresso mas já desafia a crença de que a catástrofe une

O tardio conjunto de propostas do governo em resposta à crise das queimadas na Amazônia e no Pantanal nem chegou ao Congresso mas já desafia a crença de que a catástrofe une. A começar pelo crédito extraordinário que, autorizado pelo Supremo, será endereçado por medida provisória em curso.

Equivale a 1,2% daquilo que está previsto para compensar o Rio Grande do Sul pelas enchentes. Apesar disso, fez pipocar alardes fiscais desproporcionais ao reduzido volume de gasto face à elevada extensão do dano. Se os R$ 40 bilhões previstos para a tragédia gaúcha são necessários à reconstrução de um Estado agrícola que enterrou 183 vítimas e desabrigou 81 mil pessoas, os R$ 514 milhões de crédito extraordinário também o são para recuperar a Amazônia e o Pantanal.

Suas chamas espalharam fumaça por 60% do território nacional e deixaram localidades onde moram 10 milhões de brasileiros em situação de emergência. Para comer, o país precisa respirar.

Uma parte desses recursos será destinada à contratação de brigadistas temporários para o Ibama. Apenas em agosto, o Executivo conseguiu pôr fim a uma paralisação que durou quase um ano. Até julho, quando a Amazônia começou a queimar, os autos de infração lavrados pelo Ibama na região haviam caído 70%. Some-se a isso o sucateamento do órgão. Com quase metade dos quadros de carreira vagos, o Ibama não foi contemplado no Concurso Nacional Unificado.

O segundo capítulo da reação do Executivo são as medidas de endurecimento penal, corte de crédito e confisco de terras. As penas para quem provoca incêndio são tão baixas - de dois a seis anos de acordo com a lei que se use - que até a bancada ruralista concorda em discutir sua elevação.

Não há dúvida de que a bancada representa um setor fortemente impactado pelas queimadas. Depois de uma enchente como a gaúcha e a seca amazônica, o Brasil entrou numa lista que até então era reservada àquelas partes do planeta sujeitas a terremotos, tufões e tsunamis, a dos países com risco climático, com previsível impacto sobre o seguro rural.

Se a situação os leva a apoiar o endurecimento penal, não têm a mesma abertura para discutir barreiras à concessão de financiamento rural a quem queima a mata ou o confisco de suas terras, consideradas muito mais efetivas do que o endurecimento de penas. Tampouco cogita-se a revisão do Código Florestal, em descompasso com a meta de desmatamento zero em 2030.

E, finalmente, a Autoridade Climática, cargo que seria responsável pela articulação transversal de diversas instâncias do Executivo, e cuja criação é a terceira frente da reação governista, despertou um otimismo precoce demais da ministra do Meio Ambiente.

Marina Silva conseguiu arrancar o cargo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas os parlamentares não se desarmaram como a ministra esperava. Desde que possam indicar um nome em que possam mandar, aprovam qualquer um.

Por mais que os presidentes das duas Casas, o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e o deputado Arthur Lira (PP-AL), estejam convencidos da gravidade da situação, paira, no Congresso, o receio de que a bancada ruralista, abespinhada, tumultue a sucessão das mesas diretoras. Ambos contêm as pressões com o discurso de que o crime ambiental tem que ser contido sem “populismo penal”.

Não há rival no Congresso para a Frente Parlamentar da Agropecuária. São 290 deputados e 50 senadores, um quarto maior do que na legislatura passada. Não apenas constituem um paredão contra projetos que afetem seus interesses quanto desestabilizam qualquer chapa que dispute o comando das mesas.

Daí porque se tornaram intransponíveis. A pressão sobre a União Europeia contra sanções ao agronegócio brasileiro é uma porta que o governo mantém aberta com a bancada. É um jogo duplo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem empenhado esforços para evitar vetos a produtos brasileiros, mas voltou a mencionar nesta semana a iminência das sanções para baixar resistências na bancada às políticas ambientais.

Os ministros das Relações Exteriores, Mauro Vieira, e da Agricultura, Carlos Fávaro, subscreveram carta à UE para que a lei antidesmatamento aprovada pelo parlamento europeu em 2020 não entre em vigor no fim deste ano.

De acordo com esta lei, produtos produzidos em áreas desmatadas depois de 2020 não poderão ser comercializados na Europa. Se esta pressão não surtir efeito, a tensão subirá, cenário que os ambientalistas veem como o único possível para fazer aprovar uma legislação mais efetiva contra as catástrofes climáticas no país.

O Executivo não tem que dobrar apenas a bancada ruralista como suas próprias contradições. A cinco dias da abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas por Lula, quando se espera um novo libelo pelo clima, o “Financial Times” publicou uma longa reportagem em que questiona a dupla ambição presidencial de colocar o país no clube dos gigantes do óleo, com a exploração da Margem Equatorial, e reivindicar a liderança do combate ao aquecimento global.

O jornal reconhece que o país precisa do dinheiro do óleo para se desenvolver, mas a pergunta que lhe serve de título - “O Brasil quer ser um campeão do clima e um gigante do óleo. Conseguirá ambos?” - chega ao fim da reportagem sem uma resposta.

 

2 comentários:

Anônimo disse...

Excepcional. Destaco: "a Frente Parlamentar da Agropecuária são 290 deputados e 50 senadores, um quarto maior do que na legislatura passada." Isto é bem mais que a metade da Câmara Federal e do Senado: 290 de 513 deputados, e 50 de 81 senadores! Praticamente todos mais interessados no Agronegócio que no Meio Ambiente!

ADEMAR AMANCIO disse...

Eis a questão!