- Folha de S. Paulo
Se Morales tivesse saído após o terceiro mandato, teria se consagrado como um dos melhores presidentes da Bolívia
Ver um general latino-americano “sugerindo” a um presidente que renuncie evoca os mais vulgares estereótipos das quarteladas que infestam a região. Talvez seja isso o que aconteceu na Bolívia, onde o presidente Evo Morales se viu compelido a renunciar, dizendo-se vítima de um golpe.
A história, contudo, pode ser mais complicada. Se Morales fraudou mesmo a eleição de outubro para evitar submeter-se a um segundo turno, então a reação dos militares, que se seguiu a uma onda de manifestações populares, pode não ser tão despropositada. Pelo menos não se encaixaria tão automaticamente na narrativa do golpe. Não dá para a esquerda achar que protestos são legítimos no Chile, onde miravam um presidente de direita, mas não na Bolívia, onde visavam um aliado.
E a fraude é real? A OEA, que fez uma auditoria do pleito, diz que sim. O relatório fala em evidências generalizadas de alteração nas totalizações de urna e em violações no software de transmissão dos resultados.
Os próximos acontecimentos na Bolívia deverão deixar mais claro se o movimento está mais para um golpe ou uma deposição. O que já dá para dizer é que Morales se deixou levar pela “hýbris”, a desmedida, a audácia, e, por isso, foi alvo de “némesis”, punição, justiça, a ação corretiva e inevitável ordenada pelos deuses.
Se Morales tivesse saído após o terceiro mandato, como determinava a lei, teria se consagrado como um dos melhores presidentes da Bolívia, responsável por um vistoso crescimento econômico (média de 4,9% anuais entre 2006 e 2018) e pela redução da pobreza de 60% para 35%. Mas, mesmo depois de ter consultado a população sobre a possibilidade de um quarto mandato e ter ouvido um sonoro “não” no referendo de 2016, ele insistiu. Inventou um casuísmo exótico, que foi chancelado pela Justiça, que ele controlava. Insultou os deuses da democracia e, assim, causou a sua própria perdição.
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