segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Bruno Carazza*: A elite e seu próprio umbigo

Valor Econômico

Pressão por reajuste de servidores evidencia distorções

Jair Bolsonaro abriu a caixa de Pandora. Ao decidir conceder um reajuste salarial para policiais federais, despertou a inveja, a cobiça e o ciúme das demais carreiras do topo do serviço público brasileiro. Imediatamente, auditores da Receita entregaram seus cargos comissionados, assim como associações de servidores anunciam para janeiro uma paralisação dos trabalhos.

Existem inúmeras razões para se pagar bem aos empregados do Estado. Altos salários atraem bons profissionais, o que em tese melhora a qualidade dos serviços prestados. Um corpo técnico bem remunerado, também na teoria, é menos propenso a ser capturado pelos interesses do setor privado ou por políticos poderosos, protegendo as políticas públicas dos vícios do patrimonialismo, do lobby ou da corrupção pura e simples.

No Brasil, porém, bons princípios são sempre distorcidos pelo corporativismo e utilizados para justificar o injustificável.

O economista Roberto Macedo foi um dos primeiros a mergulhar nos dados e a comparar, com rigor estatístico, as diferenças salariais entre o setor público e privado no Brasil. Coletando informações de centenas de milhares de trabalhadores de companhias estatais e particulares em 1981, e controlando os testes econométricos segundo setor da economia, gênero, idade, escolaridade, ocupação e anos de experiência dos trabalhadores, o professor da USP constatou que os empregados nas estatais ganhavam quase o quádruplo do que os do setor privado, e que uma parcela expressiva dessa diferença (entre 26% e 83%, a depender da ponderação) não era explicada pelos perfis distintos da mão de obra entre os dois segmentos. Havia, portanto, um robusto prêmio salarial pago aos empregados públicos simplesmente porque eles eram... empregados públicos.

Desde o trabalho pioneiro de Macedo, dezenas de pesquisas vêm reforçando a mesma constatação: servidores públicos ganham mais do que trabalhadores do setor privado, mesmo descontando as características pessoais (sobretudo de escolaridade e experiência de trabalho) entre eles. Esses resultados não levam em conta, ainda, o mais generoso dos benefícios indiretos: a estabilidade no emprego. Isso, como o velho comercial dizia, “não tem preço”.

Mas há servidores e servidores. Aqueles que estão na ponta do atendimento ao cidadão, como professores da educação básica ou técnicos de enfermagem nos centros de saúde, recebem, em média, menos do que seus pares do setor privado. Mas quando se avança para os cargos burocráticos de mais alto nível, a desigualdade muda de direção.

Advogados públicos, fiscais da Receita, gestores governamentais, auditores do Tesouro e da CGU, diplomatas, analistas do Banco Central, pesquisadores do Ipea e policiais federais constituem a elite do Poder Executivo Federal.

Esses servidores, logo após aprovados em concurso, já começam a receber entre R$ 19.197,06 (no caso das carreiras do ciclo de gestão) e R$ 21.020,09 (fiscais e advogados públicos). Os delegados da Polícia Federal, que pressionam Bolsonaro por aumento, têm remuneração inicial de R$ 23.692,24.

Esses vencimentos, para o começo de profissão, são muito superiores a seus equivalentes no setor privado. Apenas em termos de comparação, um advogado júnior num dos maiores escritórios de São Paulo ganha em torno de R$ 6 mil mensais, assim como um gerente de auditoria numa das “big four” (Deloitte, E&Y, KPMG e PwC) recebe em torno de R$ 8 mil por mês, segundo o site Glassdoor.

Além de começarem ganhando muito bem, as carreiras na elite do Poder Executivo federal são curtas. Em tese, um gestor público ou auditor de finanças e controle chega ao topo em 13 anos - e para chegar até lá não há um processo rigoroso de avaliação de desempenho. Assim, em pouco tempo os servidores da elite federal estão recebendo entre R$ 27,3 mil (carreiras de gestão, do Tesouro e da CGU) e R$ 30,9 mil por mês (os delegados da PF).

Mas desde que se estabeleceu que o teto do serviço público é a remuneração dos ministros do STF (R$ 39,2 mil), essa passou a ser a meta da elite do funcionalismo.

As carreiras com maior poder de pressão tentam chegar lá por meio de novos penduricalhos. Os auditores da Receita que acabaram de entregar os cargos e realizam “operação padrão” pleiteiam que seja ampliado o seu “bônus de eficiência e produtividade” - o nome é uma ironia, pois se trata de um extra de R$ 3 mil mensais que hoje é distribuído igualmente a todos (inclusive aposentados!). A vida dos advogados da União é ainda melhor: depois que conseguiram contrabandear um dispositivo no Código de Processo Civil, eles vêm recebendo um adicional (os famosos “honorários de sucumbência”) que passou de R$ 10 mil mensais em 2021 (também estendido aos inativos).

Como os salários no Brasil são irredutíveis, só há duas formas de trazer esses rendimentos para próximo da realidade.

Para os servidores atuais, não há muito o que ser feito: apenas resistir aos pleitos de reajuste, e deixar que a inflação corroa seu valor real até que eles se equiparem aos níveis de cargos com igual nível de qualificação e responsabilidade observados no setor privado. É o que vinha sendo feito desde a adoção do teto de gastos, até Bolsonaro passar a desrespeitá-lo sistematicamente.

Para os futuros servidores, há uma agenda de reformulação importante a ser implantada: racionalização dos cargos, com a unificação de atribuições e competências, redução do salário de entrada para níveis compatíveis com postos semelhantes no setor privado, alongamento das carreiras, adoção de avaliação de desempenho periódica, reestruturação remuneratória (com uma parte fixa, porém baixa, e outra variável de acordo com as metas cumpridas) e a regulamentação da demissão por insuficiência de resultados.

No mito narrado por Hesíodo, após ver que todo tipo de mal estava saindo do jarro que lhe foi confiado por Zeus, Pandora se apressou em tentar fechá-lo para minimizar os danos. Mas já era tarde demais; só havia restado a Esperança. Se o efeito cascata do aumento para a elite do funcionalismo se comprovar, nem ela resistirá.

*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 

 

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