segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Mirtes Cordeiro*: Meu Conto de Natal

“Jesus nasce perto dos esquecidos das periferias. Ele vem para enobrecer os excluídos e primeiro se revela a eles, não a pessoas instruídas e importantes, mas aos pastores e aos trabalhadores pobres.”

(Papa Francisco)

Tenho uma lembrança nítida da noite do Natal desde os meus sete anos até os catorze anos de idade, quando conclui o curso Ginasial, que corresponde hoje da quinta à nona série do Ensino Fundamental. Após o Ginásio fui estudar em Fortaleza, a capital do estado, num colégio interno, porque na minha cidade, Ipu, no Ceará, ainda não existia o Ensino Médio.

O colégio pertencente à Congregação de São Vicente de Paulo, uma ordem religiosa católica francesa, era dirigido por freiras Irmãs de Caridade, aquelas que usavam um chapéu chamado corneta, muito usado pelas senhoras parisienses em 1801 (The Times) mantidas como parte de suas vestimentas, o hábito, até a idade contemporânea. Estudara em colégios dirigidos pelas irmãs de caridade desde o Jardim de Infância até o terceiro ano do Magistério, o curso que formava professores para o Ensino Primário.

Então, vivenciei o Natal como uma festa tradicionalmente religiosa e mágica, o que penso contribuiu para moldar a minha personalidade no que chamo hoje um longo processo de resiliência vivenciado durante 77 anos, completados amanhã, 28.

A cidade inteira se preparava para a festa de Natal que acontecia nas Igrejas católicas e nas residências.

Naquela época, década de 1950, não havia igrejas evangélicas no Nordeste, As anglicanas surgiram em 1851 em Recife e Salvador, mas somente se consolidaram a partir de 1962, quando surgiu a primeira Igreja Pentecostal. Também nessa época foi organizada a Conferência do Nordeste com o tema “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro,” o que resultou numa série de discussões sobre as ações que antecederam o golpe militar de 1964.

Segundo Rui Luís Rodrigues, a interpretação religiosa da história, política à época, “deu sanção religiosa a um regime que, em nome do combate à “ameaça comunista”, suprimiu liberdades individuais, prendeu ilegalmente, torturou e assassinou pessoas (e é importante lembrar que as torturas começaram já em 1964, não esperando pelo “endurecimento” da ditadura após dezembro de 1968). Um regime que, em nome do combate à corrupção, introduziu o Brasil numa fase de corrupção desenfreada, conquanto mascarada pela subserviência dos meios de comunicação. Um regime que, ao longo de seus vinte e um anos de existência, ampliou e aprofundou as já então enormes desigualdades sociais existentes em nosso país”. (in As Igrejas Evangélicas Brasileiras e o Golpe de 1964-Algumas Reflexões)

O Natal da minha infância era organizado na forma mais tradicional e conservadora do catolicismo. As missas eram celebradas à meia noite, em latim, com o padre de costas para o público. O padre lia todas as homilias e o coro instalado na parte superior à entrada da igreja entoava os cantos religiosos também em latim. Lindos! Pois eram fundamentados nos cantos gregorianos, com origem nas tradições judaicas.

O objetivo era cada vez mais intensificar o espírito de humildade e crença na história da Bíblia que conta a história do nascimento e vida da criança que viria a ser Jesus, o Salvador da humanidade de todos os seus pecados.

Todos nós acompanhávamos os cantos, em latim, repetindo o som das palavras, mas sem saber o significado, com exceção de alguns jovens que já estudavam latim nos colégios religiosos e dominavam algumas declinações, a forma como se organiza a língua.

Na concepção do catolicismo, religião dominante à época, éramos todos pecadores, pois já nascíamos trazendo conosco o pecado original, por isso a necessidade de batizar as crianças logo que nasciam para livrá-las da herança da culpabilidade imposta pelo ato de Adão e Eva.

Só quando saí para estudar na capital do Estado e interagi com outros conhecimentos, analisando os fatos e atitudes das pessoas na sociedade, compreendi que os pecados não eram subjetivos, eram perdoados pelas promessas feitas nos confessionários, mas nada significava, continuavam pecando da mesma forma. Poucos eram os imaculados, probos, honestos e dignos.

Na verdade, os pecados eram bem objetivos e se manifestavam através da opressão e dominação historicamente conhecidas.

Durante a missa do Natal havia uma exigência que todos se vestissem de branco, significando a pureza, e as pessoas deveriam comungar. As que não o fizessem eram objeto de conversas nas calçadas no dia seguinte. Certamente estariam em estado de pecado.

Na cidade sabíamos quem eram os “eternos pecadores”, os boêmios que saiam pela rua tocando violão, eram muitos, conquistando mulheres, mesmo as casadas, bebendo cachaças e conhaques. As mulheres que moravam na região da cidade denominada como zona de meretrício eram pecadoras eternas. Só podiam ir ao comercio fazer suas compras de mantimentos diários, após às 9h, horário estabelecido pela polícia, para que não encontrassem as famílias de bem que faziam suas feiras logo ao amanhecer.

No Natal as casas da cidade geralmente tinham as suas lapinhas, os espaços onde se colocavam os presépios com muita decoração, alguns com riachos, pequenas cachoeiras caindo das pedras, verdadeiras obras de arte que nos cobriam de encanto quando pensávamos na beleza do nascimento daquele menino Jesus.

Havia até um uma pessoa que se chamava Raimundo Lapinha, porque era um especialista na decoração de lapinha das Igrejas e das famílias mais ricas. Todos o tratavam com muito carinho, mas com algum preconceito por entender que era homossexual, obviamente, ‘um pecador’. Um belo dia, Raimundo se encantou por uma mulher com quem se casou e tiveram 12 filhos, como grande parte das famílias cearenses da época.

As festividades de Natal sempre tiveram essa grande centralização religiosa, da busca da salvação, do perdão, da crença no mistério da encarnação do filho de Deus, a forma encontrada por Roma para dar liberdade de culto aos cristãos por volta do século 3. Segundo alguns historiadores, ”os primeiros dados históricos relativos à festa do nascimento de Jesus Cristo remontam ao ano 336, em Roma”. (comshalom)

Daí para a frente o mundo inteiro abraçou o Natal que é considerado como a maior festa da cristandade, quando o momento seria reservado a maiores reflexões sobre a passagem dos seres humanos pela terra

Não se pode negar que também se transformou numa grande festa do mercado, momento que privilegia o consumo desenfreado através do qual e que cada vez mais se destacam as desigualdades entre as pessoas.

Neste Natal de 2021, o Papa Francisco lamentou que estejamos atualmente acostumados com as grandes tragédias que passam despercebidas e em silêncio. Pediu pelos imigrantes, pelas mulheres que padecem da violência de gênero, pela proteção do meio ambiente para que as gerações futuras possam viver bem. Falou que pessoas indiferentes aos pobres ofendem a Deus e reforçou a necessidade do diálogo entre as pessoas, e sobretudo entre os governantes deste planeta terra. Conclamou que houvesse soluções adequadas para superar a pandemia e suas consequências.

Em suas redes sociais reforçou o verdadeiro espírito cristão do Natal.

No Brasil, o Natal de 2021 foi de muita solidariedade. Os pobres ajudaram os mais pobres, cuidando da fome que permeia os lares de cerca de 41% da população brasileira, ou 84,9 milhões de pessoas que convivem com fome ou algum grau de insegurança alimentar. Os números são da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. 

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