quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Felipe Salto* - Foco no ajuste fiscal

O Estado de S. Paulo.

A dívida precisa voltar a ser o centro do arcabouço fiscal. Ela não deve ser referência para um limite numérico, mas para uma tendência

O superávit das contas públicas em 2022 deve ser lido com cautela. A inflação e o câmbio perpassam esse desempenho. É necessário restabelecer um arcabouço de regras mínimas; ao mesmo tempo: críveis, transparentes e simples. Parte-se do teto de gastos, uma regra desmoralizada pelo verdadeiro mosaico de emendas à Constituição aprovadas nos últimos anos. O foco deve ser a contenção das despesas e o aumento das receitas, com vistas à sustentabilidade da dívida pública em relação ao PIB.

A ideia do teto deve ser aproveitada, mas com maior flexibilidade. A dívida pública bruta tem de passar a ser a referência de médio prazo para a política fiscal. As limitações do gasto e as estratégias de reforma tributária estariam sujeitas a esse objetivo maior. Complexo? Claro. Mas é preferível o complexo e viável ao simples e inexequível. Explicando bem, a sociedade, a imprensa, o Congresso e os mercados entenderão.

Trata-se de copiar o bom mecanismo do regime de metas à inflação. Nele, o Conselho Monetário Nacional fixa metas para o índice de preços. O Banco Central, por meio do Conselho de Política Monetária, calibra os objetivos adequados para o juro básico (a meta Selic). Quando a meta de inflação é rompida, o presidente do Banco Central deve explicar-se formalmente.

No lugar de regras draconianas, seria saudável um regime fiscal baseado no aprendizado histórico. Em 1999, adotamos a meta de resultado primário, isto é, um objetivo para a diferença entre as receitas e as despesas, sem contar juros e variáveis financeiras. A Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, coroou esse processo ao criar uma série de instrumentos e obrigações, a exemplo dos Relatórios de Gestão Fiscal.

O teto, em 2016, nasceu para limitar a evolução das despesas. No entanto, pecou pelo excesso de rigidez, tanto nos aspectos jurídicos e de redação quanto nos econômicos e fiscais. Não basta dizer que o automóvel não deve ultrapassar 120 km/h na Castelo Branco. É preciso saber o que acontece se a regra for burlada.

No caso do teto, não havia essa previsão. Apesar do conjunto de gatilhos – medidas restritivas para o caso de rompimento do teto –, o seu acionamento era simplesmente impossível. Se a Lei Orçamentária Anual fosse enviada ao Congresso com o teto estourado, o risco seria configurar crime de responsabilidade.

Quando eu ainda estava na direção da Instituição Fiscal Independente (IFI), alertamos diversas vezes para esse problema. A chamada PEC Emergencial, que redundou na Emenda 109, tentou resolvê-lo, em razão do estouro iminente do teto. Não conseguiu. Tanto é assim que as mudanças constitucionais que se seguiram trataram de abrir espaço no teto a fórceps. Daí o termo “desmoralização” empregado.

Que fazer daqui em diante? A dívida precisa voltar a ser o centro do arcabouço fiscal. Ela não deve ser referência para um limite numérico, mas para uma tendência, como venho defendendo. É preciso ter claro que a dívida vai subir, na esteira dos juros reais elevados. O patamar de cerca de 74% do PIB, no fim de 2022, é ilusório, porque reflete um PIB nominal (aquele que considera a inflação) inchado, justamente pela alta dos preços. Os juros mais altos inverterão essa tendência automaticamente em 2023.

Projetando os cenários para quatro anos à frente, é possível desenhar uma trajetória que contemple esse crescimento, seguido de estabilidade e queda; sempre como proporção do PIB. Essa trajetória seria a baliza para fixar as metas de primário e as restrições ao gasto.

As medidas já anunciadas pela equipe econômica são positivas, mas muito concentradas no curto prazo e no lado da receita. É hora de formular um plano fiscal de médio prazo coeso, com medidas e reformas legais e constitucionais que ajudem a controlar a despesa pública.

Numa segunda frente, o ciclo econômico pode colaborar com o ajuste fiscal. A recuperação da economia ajuda a arrecadação, desde que se mantenha o controle da inflação, com juros convergindo para níveis civilizados. Em tempo, não adianta reclamar com o Banco Central. Juros são consequência. O custo de tomar emprestado sempre será alto quando a capacidade de geração de renda e riqueza for baixa e os déficits, altos.

O governo anterior perdeu uma oportunidade de reformular o arcabouço fiscal. Fez contrarreformas no teto de gastos no caso dos precatórios e das licenças constitucionais para gastar mais, aproveitando-se das delícias dos efeitos de curto prazo da inflação. Mas, agora, José, a festa acabou. “Não, não foi surpresa para mim / Tudo na vida tem fim”, cantava Clara Nunes.

Neste espaço, mostrei que as contas públicas estavam embaladas pela ajuda camarada da inflação, essa velha conhecida dos governos e das famílias. De todo modo, há muito por fazer, a começar pelo compromisso com a sustentabilidade da dívida.

É assim que se resgatará a credibilidade junto dos mercados, barateando o custo da dívida e abrindo espaço para financiar mais políticas públicas. Deixem o Banco Central trabalhar, pois vai muito bem sob a batuta de Roberto Campos Neto. Vamos focar na política fiscal!

*Economista-chefe e sócio da Warren Renascença, foi secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo e o primeiro diretor-executivo da IFI

 

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