Reforma do ensino médio precisa seguir adiante
O Globo
Suspensão temporária deve ser aproveitada
para incorporar sugestões necessárias a seu aperfeiçoamento
Lançada por Medida Provisória ainda no
governo Michel Temer, a reforma do ensino médio,
que estipula escola em tempo integral e diversos percursos de formação para os
alunos, foi suspensa pelo Ministério da Educação (MEC), sob o pretexto de
reavaliar seu impacto. O erro mais grave seria revogá-la e retomar toda a
discussão sobre o tema da estaca zero, apenas para agradar a grupos de
interesse afetados, como os sindicatos de professores. A reforma é estratégica
e, embora necessite de ajustes, precisa ser retomada com urgência. Contribuição
essencial para isso vem de uma nota técnica do movimento Todos Pela Educação,
elaborada com o auxílio de acadêmicos, secretários estaduais e profissionais do
ensino médio.
No longo caminho para a melhoria do ensino público básico, ficou evidente que o ensino médio, com suas elevadas taxas de evasão, necessitava de uma reforma específica. Ela foi lançada em 2016 e convertida em lei no ano seguinte. O ensino foi ampliado de 800 horas para pelo menos mil horas anuais de aulas, com uma nova organização de currículo. Com o objetivo de aumentar o interesse pelo conteúdo, os percursos se tornaram flexíveis, com a oferta aos alunos de quatro áreas de conhecimento (matemáticas, linguagens, ciências da natureza e ciências humanas e sociais aplicadas). Ganhou destaque a opção pelo ensino técnico e profissional, e estabeleceram-se “itinerários formativos” para incentivar o estudo por meio de oficinas e projetos diversos, escolhidos com a participação dos alunos, com o fim de obter competências exigidas pelo mercado de trabalho.
Além de enfrentar resistências de
sindicatos e grupos mais à esquerda, o projeto de reforma já emitia sinais de
que precisava ser alterado. As disciplinas básicas foram prejudicadas ao
dividir a carga horária com os novos percursos, e não foram criados critérios
sensatos para definir o que vale como itinerário formativo. Corrigir tais
pontos é o que se espera que o MEC faça agora, depois de promover audiências
públicas e receber propostas.
As mudanças sugeridas na nota técnica do
Todos Pela Educação levam a um relançamento da reforma, com alterações na Lei
de Diretrizes e Bases, portarias e normas do MEC. Com a carga horária máxima de
1.800 horas para o currículo básico, ficou curto o tempo para algumas
disciplinas. Para acomodar todas elas, sem prejudicar a formação geral básica e
o tempo concedido aos itinerários formativos, uma das propostas é estabelecer o
mínimo de 2.100 horas para a formação geral e 600 horas para os itinerários.
Em relação à outra deficiência — a falta de
orientação para a escolha dos itinerários, que gerou casos bizarros como uma
disciplina sobre “brigadeiro caseiro” —, a proposta é que, da carga horária
mínima de 600 horas anuais dedicadas a eles, 80% destinem-se a aprofundar
assuntos da área de conhecimento escolhida pelo aluno. Do conjunto de propostas
consta também restringir o ensino à distância, cujas limitações ficaram
comprovadas durante a pandemia. O MEC precisa agora se debruçar sobre essas e
outras sugestões para corrigir as deficiências da reforma. O Brasil não pode
mais perder tempo, nem ceder à pressão daqueles que querem deixar tudo como
está. Sem aperfeiçoar o ensino médio, continuaremos a padecer da deficiência
crônica na qualidade da mão de obra que atravanca o desenvolvimento.
Risco das redes sociais para crianças e
jovens exige medidas de prevenção
O Globo
Relatório do governo americano constatou
relação entre uso da internet e danos à saúde mental
Medicamentos são testados exaustivamente
antes de chegar às farmácias. Carros precisam estar equipados com airbags, e
crianças pequenas só podem andar presas a cadeirinhas. Parece inacreditável,
mas a mesma lógica ainda não é aplicada às redes sociais. Nelas, as práticas de
segurança são irrisórias, deixando crianças e adolescentes sem proteção diante
de vários perigos. Políticas de prevenção para uso de redes sociais são a
principal recomendação do relatório divulgado na semana passada pela mais alta
autoridade americana em saúde pública, o Escritório do Cirurgião-Geral.
Relatórios similares mudaram o debate sobre o cigarro e a aids no século
passado.
Como as redes sociais são criadas para
manter alto engajamento, pesquisadores acreditam que elas podem induzir o
vício. Em casos mais extremos, a internet também é um terreno fértil para a
ação de pedófilos, ideias extremistas, conversas sobre como realizar massacres
e pactos de suicídio ou automutilação. Nas palavras do cirurgião-geral Vivek
Murthy, elas podem provocar “um profundo dano à saúde mental e ao bem-estar de
crianças e adolescentes”.
No Brasil, 96% dos usuários de internet de
9 a 17 anos a acessam todos os dias ou quase todos os dias, e 86% têm perfil em
rede social. Três em cada dez dizem ter acontecido algo na internet de que não
gostaram, que os ofendeu ou chateou, constatou a pesquisa Tic Kids Online
Brasil 2022, divulgada em maio. Os períodos de pré-adolescência e adolescência
são marcados pela vulnerabilidade. Levantamentos em diferentes países apontam
relação entre uso de redes sociais e casos de depressão provocada por bullying
e de transtornos alimentares.
Claro que as redes trazem benefícios aos
jovens, como a possibilidade de conversar com amigos, obter informações ou se
divertir. O que teria sido dos adolescentes sem um celular durante a pandemia?
A internet pode ser particularmente benéfica à saúde mental de minorias, ao
permitir a afirmação de uma identidade a partir de conexões e redes de apoio.
Não é preciso eliminar tais benefícios para reduzir os riscos.
O relatório do cirurgião-geral pede a colaboração das plataformas digitais para que acadêmicos independentes tenham acesso a todos os dados necessários para pesquisas. Isso não tem acontecido. Sem dados, será difícil preencher as lacunas no conhecimento sobre redes sociais e saúde mental. Com base nos estudos existentes, porém, formuladores de políticas públicas e legisladores já deveriam ter tomado medidas corretivas e preventivas. Pais, crianças e adolescentes não podem mais ficar sozinhos, à mercê dos perigos digitais.
Democracia e economia
Folha de S. Paulo
Normalidade importa mais do que o PIB;
alternância minimiza erros no longo prazo
Dadas as tensões políticas e institucionais
que se acentuaram nos últimos anos, será particularmente doloroso —e perigoso—
que nova etapa de retrocesso econômico afete diretamente o bem-estar da
sociedade brasileira. O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), infelizmente,
tornou esse risco mais elevado.
A aposta na hipertrofia estatal como meio
de resolução de conflitos e carências, que desde antes da posse se traduz em
aumento contínuo e insustentável do gasto público, dificulta o controle da
inflação, a queda dos juros e, logo, a retomada do crescimento da produção e da
renda em bases duradouras.
O novo regramento orçamentário, que tramita
no Congresso com o aval das forças fisiológicas, estabelece
apenas limites débeis ao avanço da despesa, sem oferecer uma
perspectiva confiável de contenção da dívida pública, hoje já em patamares
exagerados para uma economia emergente.
Pelo panorama que se desenha à frente, ou
haverá arrocho desmesurado da carga tributária ou nova escalada do
endividamento. Nas duas hipóteses, o investimento e o emprego tendem a ser
sufocados.
Uma quadra de mediocridade já seria um
infortúnio para um país cuja renda per capita ainda é menor que a de dez anos
atrás. Há mais perigos, porém.
Lula ensaia promover uma contrarreforma dos
avanços renegados pelos ideólogos de seu partido. Assim se dá com o assédio
obsessivo à autonomia do Banco Central, que favoreceu uma troca de governo sem
maiores solavancos financeiros —em contraste, aliás, com a explosão do dólar e
dos juros de 2002, na primeira conquista presidencial do petista.
Não satisfeito em interromper
privatizações, o mandatário busca reaver o controle da Eletrobras, sabota a
legislação que profissionalizou a gestão das estatais e enfraquece as agências
reguladoras.
Com o mesmo ímpeto estatizante,
corporativista e clientelista, investe contra
o marco legal do saneamento, instituído na tentativa de
universalizar um serviço ao qual cerca de 100 milhões de brasileiros
vergonhosamente ainda não têm acesso, reflexo do modelo estatal que vigorou por
décadas até 2020.
Políticas de subsídios a empresas,
concentradoras de renda e geradoras de ineficiência, são ressuscitadas a
pretexto de fortalecer a indústria nacional. O incentivo à
volta de carros supostamente populares acrescenta um tom
tragicômico à agenda passadista.
Tudo considerado, entretanto, os desmandos
econômicos não podem obscurecer o retorno à normalidade institucional com a
eleição de Lula.
Após quatro anos de ameaças contínuas à
democracia sob Jair Bolsonaro (PL), é um alento que as instituições tenham
evitado uma ruptura, que as Forças Armadas tenham respeitado seu papel
constitucional, que o diálogo entre os Poderes esteja restabelecido e que o
presidente não açule seguidores e o aparelho do Estado contra a crítica.
A soberania das urnas e a alternância de
poder acabam por funcionar como antídotos contra más políticas econômicas.
Governos que empobrecem a população em geral não são reconduzidos. Reside aí a
tênue esperança de que Lula reverta a repetição de velhos erros —ou, ao menos,
que o Congresso Nacional, hoje mais protagonista, o faça.
Dez anos depois
Folha de S. Paulo
Falta líder que encarne junho de 2013, que
catalisou a rivalidade política atual
Em junho de 2013, o Brasil
assistia ao desgaste de um partido havia mais de década no poder,
com lideranças condenadas por corrupção poucos meses antes. Exauria-se um forte
ciclo de crescimento econômico, cujo prolongamento artificioso tornara-se a
obsessão de um governo inábil.
O contexto internacional não era menos
desafiador. Uma crise financeira global havia sido domada à custa de ciclópicas
intervenções de tesouros e bancos centrais. Massificava-se a utilização das
redes sociais, que haviam dado mostras de seu poder de mobilização na rodada de
revoltas da Primavera Árabe.
A tarifa de transporte em metrópoles
brasileiras —cuja alta costumeira do início do ano fora adiada por pressão da
presidente Dilma Rousseff (PT)— serviu como estopim dos protestos iniciais de
rua. Grupos juvenis inexpressivos bateram-se contra a tentativa de reajuste e
de repente se viram inundados por uma torrente de apoiadores com variadas
reivindicações.
A violência passou a acompanhar as
passeatas, algo até então incomum na política da Nova República, sob a forma de
depredações, confrontos e repressão abusiva das polícias. Prédios federais em
Brasília foram fustigados por multidões como só
ocorreria novamente em 8 de janeiro de 2023.
A coloração esquerdista da primeira fase da
revolta deu lugar à de seus antípodas na etapa seguinte. As camisetas amarelas
predominavam ao final, com uma mixórdia que incluía repúdio ao intervencionismo
econômico, clamores anticorrupção e conservadorismo nos costumes. Grupelhos
autoritários perderam o pudor de exibir seu ódio à democracia.
Essa direita renovada e popular, fenômeno
também inédito no Brasil democrático, firmou-se no cenário político nacional.
Propiciou as disputas presidenciais apertadíssimas de 2014 e 2022, o aval
multitudinário ao impeachment em 2016 e a eleição de um demagogo autoritário,
Jair Bolsonaro, em 2018.
Já a esquerda permaneceu na órbita do PT,
que disputou o segundo turno nas três eleições presidenciais seguintes e venceu
duas delas.
Nenhum dos dois lados da anteposição que se
sustenta desde então no país logrou converter-se em maioria sólida seja na
sociedade, seja na representação política.
Ficou evidente que vilipendiar a
institucionalidade, mensagem implícita em alguns discursos desde as Jornadas de
Junho, é atalho para o despotismo, não para a resolução dos graves problemas
nacionais.
A melhor síntese de 2013 —um país em busca
de justiça e amparo social, democracia, progresso material, liberdade econômica
e compostura no exercício do poder— ainda não encontrou uma liderança que a
personifique.
Ação em rede
Folha de S. Paulo
Capacitação de professores e centros
integrados ajudam a combater abuso infantil
São preocupantes os números da violência
sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. O Ministério dos Direitos
Humanos registrou alta de 48% nas denúncias feitas pelo Disque 100 no primeiro
quadrimestre deste ano em relação ao mesmo período de 2022.
Já na internet, as notificações de imagens
de abuso sexual infantil aumentaram 70% nos quatro primeiros meses do ano, de
acordo com a ONG SaferNet.
Em relação à prevenção, estamos em 25º
lugar entre 60 países, atrás de nações menos desenvolvidas como Ruanda, Vietnã
e Quênia, segundo o índice Out of the Shadows (Fora das Sombras), produzido
pela revista The Economist.
Se antecipar às agressões é importante
porque na maioria das vezes a vítima convive com o potencial agressor —76,5%
dos casos acontecem dentro de casa, de acordo com o Anuário Brasileiro de
Segurança Pública. E a escola cumpre papel importante nessa tarefa.
No Brasil, não há uma diretriz nacional e
material didático específico para que professores possam transmitir noções
básicas de educação sexual, inclusive formas de evitar, identificar e combater
casos de abuso. Governos municipais, portanto, precisam estabelecer políticas
sobre o tema.
O Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a
Aprendizagem, da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, acompanha 30
mil crianças que sofrem de transtornos mentais. Dessas, cerca de 8.000 foram
vítimas de violência, sendo 900 do tipo sexual. Para prevenir casos e agilizar
denúncias, o programa realiza seminários
itinerantes para capacitar educadores da rede pública de ensino.
Já do ponto de vista do acolhimento, da
investigação e da punição, é preciso maior integração entre as diversas
instituições envolvidas na apuração desse tipo de crime —como Conselho Tutelar,
Polícia Civil, Instituto Médico Legal, Ministério Público e Secretaria
Municipal de Saúde.
Cidades como Porto Alegre, Fortaleza, Rio
de Janeiro, Brasília e Vitória da Conquista já possuem
centros interdisciplinares do tipo.
A violência sexual contra crianças e adolescentes é um crime complexo e silencioso, dado que ocorre no ambiente doméstico e com vítimas submetidas à estrutura de poder familiar. Para enfrentá-lo é necessário inteligência no desenho de políticas públicas que atuem em redes de ponta a ponta, da prevenção à punição dos culpados.
Nossos filhos nas redes sociais
O Estado de S. Paulo
Ante indícios de que as redes contribuem
para transtornos mentais de crianças e adolescentes é preciso garantir mais
controle dos pais e impedir a monetização de seus dados e engajamento
Muita tinta e saliva têm sido gastas sobre
o papel das redes sociais na polarização política e na degradação da verdade.
Se em geral elas favorecem a “arte da associação”, que Alexis de Tocqueville
via como chave de uma democracia vibrante, seus elementos tóxicos a deterioram.
Mas, além da cultura cívica que essa geração legará à próxima, eles podem estar
degradando a saúde mental dos herdeiros. O “risco pode ser profundo”, adverte
um relatório da principal autoridade de saúde americana, dr. Vivek Murthy.
Fato: algo terrível aconteceu com a Geração
Z, nascida após 1996. Na última década, as taxas de depressão, ansiedade,
comportamentos autodestrutivos e suicídios escalaram entre crianças e
adolescentes, justamente os que cresceram sob o uso massivo e diário das redes
viabilizado pelos smartphones. Correlação não implica causalidade, e, mesmo
sendo uma causa, as redes não são a única. Mas há indícios de que, além de
reforçar as outras, elas são a principal.
Algo dessa ansiedade pode refletir a
ansiedade dos pais com tensões políticas e sociais. Uma cultura protecionista e
a pressão por resultados deixa às crianças cada vez menos tempo para atividades
livres e não supervisionadas entre si, minando o desenvolvimento de suas
habilidades em cooperar, ceder, solucionar conflitos e tolerar adversidades.
Essa psique fragilizada é palpável nos campi, onde universitários “cancelam”
opiniões que são sentidas como “violência”.
A terceirização da educação e recreação
para as telas pode ter um papel no isolamento dos jovens. Sua relação com
transtornos mentais é mais incerta. Nesse sentido, as telas seriam como um novo
alimento. A comida é necessária à vida; desbalanceada, é nociva. As telas
seriam como açúcar, dispensável para a nutrição, mas saboroso, e, em excesso,
pernicioso. Já as redes parecem ser algo mais. Não são como veneno de rato,
tóxico para todos, mas mais como o álcool, uma substância medianamente viciante
que facilita interações sociais, mas pode levar à dependência e depressão de
uma minoria. Para jovens em desenvolvimento cerebral e emocional, alerta
Murthy, as sequelas podem ser agudas.
Por décadas as mídias tradicionais, sob
pressão social e governamental, se autorregularam para manter seu conteúdo
amistoso às famílias. Isso contrasta com a anarquia online. No caso das redes,
há uma novidade radical. Os usuários não são só espectadores, mas interagem com
os produtores de conteúdo e, sobretudo, expõem seus conteúdos. E há o modelo de
monetização: utilizando dados pessoais para maximizar o engajamento dos
usuários e expô-los à publicidade, o desenho dos algoritmos estimula o vício, a
agressão, conspirações e outros comportamentos antissociais.
Adolescentes são singularmente sensíveis ao
julgamento de amigos e da multidão digital. “As mídias sociais parecem
sequestrar esta sensibilidade aguda aos pares e induzir a um pensamento
obsessivo sobre a imagem corporal e a popularidade”, advertiu o psicólogo
Jonathan Haidt.
Murthy e Haidt recomendam às famílias
estratégias, como confraternizações offline, e convergem em focos regulatórios
que obriguem as redes a permitir que pesquisadores acessem seus dados; a dar,
via controles parentais, mais poder aos pais e menos às empresas, que deveriam
inclusive ser responsabilizadas por danos causados por ou a menores que
utilizem perfis não autorizados por um adulto responsável; e a criar ambientes
adequados às crianças, caso não consigam mantê-las afastadas. Crucial é impedir
a monetização de seus dados e engajamento tal como se faz com adultos.
No mundo “real” os jovens estão sendo
introduzidos no espaço público adulto cada vez mais tarde; no mundo “virtual”,
cada vez mais cedo. Para piorar, a praça pública digital é controlada por corporações
que, para maximizar seu lucro, estimulam a adicção e comportamentos intrusivos
e performáticos numa competição por popularidade. Enquanto os adultos dessa
geração avaliam as consequências desse ambiente para si, a prudência exige
manter seus filhos a uma distância segura.
‘Parlamentarismo’ sem freios
O Estado de S. Paulo
O Congresso não pode apenas acumular poder
e exercê-lo sem quaisquer controles. A República não admite Poderes incontidos.
Passa da hora de o País discutir a sério o ‘semipresidencialismo’
A série de derrotas que o presidente Lula
da Silva tem amargado no Congresso, cujo ápice foi a diluição de seu poder para
determinar até mesmo como seria a organização administrativa do governo, revela
que o presidencialismo agoniza no Brasil – não do ponto de vista
jurídico-institucional, mas em sua natureza, vale dizer, como a forma de
governo na qual o presidente da República é quem se ergue como principal
indutor da agenda nacional. Nesses primeiros meses de mandato, Lula tem sido
muito mais um coadjuvante do que um protagonista na orientação dos rumos do
País.
O que se vê instalado no Brasil há alguns
anos é um modelo de governança a um só tempo disfuncional e muito distante do
espírito da Constituição de 1988. Em troca da chamada governabilidade,
presidentes fracos – seja moral, política ou administrativamente – têm cedido
cada vez mais poder ao Congresso, que, por sua vez, o tem exercido sem ser
contido pelos freios próprios do parlamentarismo, como a moção de censura ou o
poder de dissolução do Parlamento pelo presidente, com convocação de novas
eleições. Não há como essa gambiarra à brasileira dar certo. Ademais, a
República não admite Poderes incontidos.
A bem da verdade, Lula não é o primeiro
presidente a ter de se submeter aos humores e à voracidade de parlamentares
oportunistas, que sentem o cheiro do sangue que governos fracos jorram na água.
Mas poderia ser o último, se assim realmente quisesse. Não parece ser o caso.
O mesmo Lula que prometeu durante a
campanha eleitoral não apenas “salvar a democracia” no Brasil, como resgatar o
presidencialismo do limbo é o presidente que ora apenas assiste, inerte, ao
aumento do protagonismo do Congresso em troca de uma governabilidade
extremamente frágil. Muito diferente daquele Lula bravateiro da campanha de
2022, o presidente parece tão acuado que, há poucos dias, sentiu-se compelido a
pedir desculpas ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), pela falta de
traquejo de seus emissários para a articulação política com os parlamentares.
Desde o trevoso governo de Dilma Rousseff,
a quem pode ser atribuída a concepção desse modelo de empoderamento desmesurado
do Congresso, tanto por sua fraqueza política como por sua notória, até
anedótica, ojeriza à interlocução com deputados e senadores, o Poder
Legislativo vem ocupando o espaço vazio deixado por presidentes que não
apresentaram ao País nem um programa de governo inclusivo e responsável, capaz
de envolver diferentes segmentos da sociedade em torno de objetivos comuns, nem
disposição para governar de fato. A exceção foi o governo de Michel Temer, que
tentou – e em boa medida conseguiu – estabelecer um reequilíbrio de forças na
Praça dos Três Poderes, ao qual se convencionou chamar de
“semipresidencialismo”.
Passa da hora de o País discutir a sério a
adoção desse modelo. A estrovenga que ora impera como modelo de governança
informal do País não está funcionando, ou ao menos só tem funcionado bem para o
Congresso. Para o Brasil, é tão ruim estar à mercê de presidentes fracos como de
um Congresso forte, porém sem controle no exercício de seu poder.
Os brasileiros, como é sabido, já
rejeitaram o parlamentarismo por mais de uma vez, talvez por depositar na
figura do presidente da República todas as suas esperanças, angústias e
revoltas. Talvez seja o caso de tentar o modelo “semipresidencialista”. É muito
difícil, para não dizer impossível, imaginar o Congresso cedendo um naco que
seja do poder que acumulou nos últimos anos. Que ao menos, então, passe a
exercê-lo com mais responsabilidade na figura de um primeiro-ministro que pode
cair quando errar, sem provocar grandes crises, ou ser reconduzido pelo tempo
em que estiver governando o País como deseja a maioria dos brasileiros, por
meio de seus representantes no Parlamento.
Há uma Proposta de Emenda à Constituição
(PEC) que trata da adoção do “semipresidencialismo” no Brasil a partir da
eleição de 2030, dando chance ao atual presidente de concorrer à reeleição. É
hora de desengavetá-la.
O campo, de novo, salva o PIB
O Estado de S. Paulo
Resultado do crescimento deve-se ao
agronegócio, mas Lula preferiu louvar o Bolsa Família
O crescimento de 1,9% da economia no
primeiro trimestre do ano, calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), foi o samba de uma nota só, executado no compasso do
agronegócio. Mais do que segurar, o agro catapultou o Produto Interno Bruto
(PIB) a um patamar acima das expectativas, contribuindo para o desempenho
positivo do setor de serviços e impedindo a queda mais acentuada da indústria.
O avanço exuberante de 21,6% da
agropecuária no período deixa a falsa impressão de que a economia brasileira
vai bem. Não vai, como indicam a estagnação do consumo das famílias, com 0,2%
de alta, e o tombo de 3,4% no investimento. O agro vai bem. E, apesar da
improvável repetição, nos próximos trimestres, da mesma pujança do início do
ano, já garantiu com o saldo a revisão das projeções para o crescimento
econômico de 2023, que deve se situar em torno de 2%, como previra o ministro
da Fazenda, Fernando Haddad.
A demonstração de força do agronegócio
ocorre num momento em que estão sendo discutidas as condições do Plano Safra
2023/24. Por isso não foi mera coincidência o resultado do PIB ter sido
comemorado com mais entusiasmo pelo ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, do
que pelo próprio Haddad. “É um PIB espetacular, mostrando a força da economia”,
vibrou Fávaro. “Devemos ter cautela, porque o agro veio muito forte”, ponderou
Haddad.
O presidente Lula da Silva preferiu
enveredar por um caminho transverso, com loas à suposta capacidade que
programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, têm de devolver o
poder de consumo à população. O problema é que o consumo patinou no trimestre
e, ademais, o PIB do primeiro período do ano é um fruto que está sendo colhido
de uma árvore que não foi plantada pelo atual governo, e sim pelo anterior. Nem
haveria tempo para isso.
Os elogios de Lula ao agronegócio vieram a
público por intermédio de seu ministro da Agricultura, que anunciou ter
recebido do chefe orientações para dar ao Plano Safra todo o apoio necessário.
De Lula propriamente, no entanto, suas declarações mais recentes a respeito dos
empresários do agro foram farpas.
No mês passado, para justificar sua
presença em uma feira agrícola na Bahia, disse estar ali para “fazer inveja” a
“alguns fascistas de São Paulo”, numa clara alusão à atitude desastrosa de
representantes da Agrishow, de Ribeirão Preto, semanas antes, no “desconvite”
ao ministro Fávaro, uma retaliação aos afagos de Lula ao MST.
É preciso governar mirando o crescimento do País, e isso deveria ser mandatório para um governo que se diz interessado no bem-estar dos mais pobres. Já há alguns anos, o segmento produtivo com mais força na alavanca impulsionadora do crescimento é a agropecuária e sua agroindústria, e isso se traduz em influência cada vez maior do agronegócio na tomada de decisões do Congresso. Logo, não é inteligente, como fazem os petistas, antagonizar esse setor nem, muito menos, sugerir que seus empresários são “fascistas”. É preciso respeitá-los. O PIB agradece.
Batalhas a vencer no meio ambiente
Correio Braziliense
"Passados cinco meses do discurso de
posse, e na véspera do Dia Mundial do Meio Ambiente, a realidade insiste em
desafiar as intenções do titular do Palácio do Planalto"
Ao assumir em 1º de janeiro o terceiro
mandato como presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva anunciou que
estava ressuscitando o compromisso do governo brasileiro com a preservação do
meio ambiente. Em discurso no Congresso Nacional, o chefe do Executivo
delimitou metas ambiciosas. "Nossa meta é alcançar desmatamento zero na
Amazônia e emissão zero de gases do efeito estufa na matriz elétrica",
bradou. Prometeu, ainda, uma política pública efetiva em favor dos povos
originários. "Vamos revogar todas as injustiças cometidas contra os povos
indígenas". "Ninguém conhece melhor nossas florestas nem é mais capaz
de defendê-las do que os que estavam aqui desde tempos imemoriais",
justificou.
Passados cinco meses do discurso de posse,
e na véspera do Dia Mundial do Meio Ambiente, a realidade insiste em desafiar
as intenções do titular do Palácio do Planalto. Por uma conjunção de fatores, o
compromisso do governo Lula em favor da sustentabilidade e da preservação dos
biomas nacionais sofre profundos reveses. Os avanços ocorridos no início da
atual gestão foram neutralizados por ações urdidas no Congresso Nacional, em
particular na Câmara dos Deputados.
A aprovação da MP 1.154/23 esvaziou o poder
de ação das ministras Marina Silva e Sônia Guajajara, responsáveis pelas pastas
de meio ambiente e dos povos originários. Ao retirar desses ministérios
competências como o controle ambiental das águas e a demarcação de terras
indígenas, o Parlamento desferiu um duro golpe nos planos ambientalistas do
governo Lula. Nas palavras de Guajajara, a Câmara dos Deputados, sob controle
da poderosa bancada ruralista e de setores conservadores, cometeu um
"genocídio legislado".
Os parlamentares foram além. Ao aprovarem o
PL 490/07, marcaram posição sobre o marco temporal, em mais uma ofensiva contra
os povos originários. Pelo entendimento dos deputados, a demarcação das terras
indígenas só será considerada para as comunidades que ocupavam o solo na data
da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Ainda que a proposição
tenha de passar pelo Senado, os deputados impuseram uma dura derrota à política
indigenista do governo Lula e deram um recado ao Supremo Tribunal Federal, que
deve se debruçar sobre a questão esta semana.
Os ataques à bandeira da sustentabilidade e
do respeito aos povos indígenas mostram claramente que o presidente da
República e seus auxiliares precisarão ir além das boas intenções. Será preciso
muita articulação para dobrar forças políticas poderosas e obter avanços na
agenda ambiental. Neste 5 de junho, há pouco a se comemorar. Ainda não está
vencida a batalha contra aqueles que defendem uma "boiada" na
Amazônia ou que auferem lucros escandalosos com o garimpo ilegal, o tráfico de
drogas, a violência contra indígenas e outros ilícitos a corroer o patrimônio
natural brasileiro.
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