- O Estado de S. Paulo
Época houve em que os esquerdistas brasileiros liam muito. Liam só marxismo, mas liam, o que não é dizer pouco. Com o tempo, o hábito desapareceu; a geração atual, pelo que me consta, nem marxismo lê. Lula pertence a uma geração intermediária, mas, por motivos diferentes, tampouco parece ter adquirido o hábito da leitura.
É por isso que as esquerdas atuais desconhecem um dos trechos mais valiosos da literatura marxista: o chamado “testamento político” do grande líder da revolução russa de 1917, Vladimir Ilyich Lenin. No fim de 1922, já muito doente, Lenin decidiu advertir os altos dirigentes do Partido Comunista contra os riscos representados pelo crescente poder de Josef Stalin como secretário-geral, recomendando seu afastamento. Nadia Krupskaia, sua mulher, levou-lhes a carta no início de 1924, mas os dirigentes não deram ouvidos à recomendação de Lenin, decisão que muitos deles acabaram pagando com a vida.
Na mensagem mencionada, Lenin escreveu o seguinte: “A questão da personalidade poderia parecer secundária, mas é uma daquelas coisas secundárias que podem acabar adquirindo uma significação decisiva”. Preocupado com o futuro do partido e da própria revolução, acrescentou que certos traços de caráter de Stalin – notadamente sua “rudeza” e sua tendência a fazer política na base da “malícia” – tornavam perigosa a permanência dele à frente da secretaria-geral. Era preciso substituí-lo naquele poderoso cargo por alguém “mais tolerante, mais leal, mais cordial”, que tivesse “mais consideração por seus camaradas”, que não fosse “tão caprichoso”, etc.
O que tem o testamento de Lenin que ver com a presente conjuntura brasileira, cujo pivô é o impeachment de Dilma Rousseff? Muito simples. O impeachment será o fim de uma farsa cuidadosamente arquitetada, pela qual o Brasil já está pagando, e pagará ainda por vários anos, um preço altíssimo. Um retrocesso econômico terrível e um brutal aumento do desemprego, responsáveis pelo empobrecimento de milhões de famílias que já antes sobreviviam com poucos meios.
Toda farsa que se preze envolve pelo menos dois farsantes; essa a que vou me referir teve Lula e Dilma Rousseff nos papéis principais. Não sei se Lula tem a inteligência que lhe é atribuída, sei apenas que ele faz política com base muito mais numa malícia aprendida e aprimorada nos meios sindicais do que por uma concepção minimamente cívica da vida pública. É acima de tudo um esperto.
A farsa começou lá atrás, quando Lula mandou Dilma Rousseff presidir o Conselho de Administração da Petrobrás. Por que o fez? Três hipóteses me parecem cabíveis. É possível que ele sinceramente acreditasse na competência dela. Ou que a considerasse incapaz de desvendar a teia de corrupção lá instalada. Ou, ainda, por saber que ela a desvendaria, mas não se furtaria a dançar conforme a música.
O segundo momento da farsa foi a eleição de 2010, sobre a qual serei sucinto. Lula tinha uma certeza e um objetivo. A certeza era a de que, com seus próprios recursos, Dilma não se elegeria nem para a Câmara Municipal de Porto Alegre, onde residia. Mas ele, Lula, com mais de 80% de popularidade, dinheiro jorrando da cornucópia da Petrobrás e o marqueteiro João Santana a tiracolo, a conduziria ao Planalto com um pé nas costas. O objetivo era colocar na Presidência uma pessoa que combinasse as virtudes de um poste com as de um cão: a passividade do primeiro e a fidelidade do segundo. De quebra, o chefão petista impediria o surgimento de um rival dentro do partido. Foi docemente constrangida, imagino, que Dilma aquiesceu.
O terceiro momento, é escusado lembrar, foi a campanha eleitoral de 2014. Àquela altura, a catástrofe econômica já comia solta. A questão central era (e continua a ser) a deterioração das contas públicas. Em qualquer país onde as promessas feitas durante a campanha eleitoral sejam levadas um pouco mais a sério, Dilma teria de admitir a inexorabilidade do ajuste fiscal. Mas, hélas!, não admitiu; ao contrário, atribuiu a seu adversário a intenção de fazer o que ela sabia ser inevitável. Explica-se: no leme encontravam-se Lula, João Santana e ela mesma, um trio habituado à malícia e a uma não menos pronunciada prepotência como instrumentos de ação política.
O quarto momento, ainda em curso, mas, felizmente, já na reta final, é o impeachment. Talvez por causa da indisponibilidade de João Santana, preso em Curitiba, a farsa encenada por Lula e Dilma perdeu qualidade. Em que pese sua proverbial esperteza, Lula comportou-se como um jejuno em política. Não percebendo o alcance das manifestações de apoio ao impeachment (e ao juiz Sergio Moro?), pensou que a sociedade brasileira continuaria a acreditar em qualquer coisa que ele dissesse e aceitaria qualquer coisa que fizesse. Instalado numa suíte do hotel Golden Tulip, em Brasília, subestimou o instinto de sobrevivência e, por que não dizê-lo, os brios dos deputados federais, a maioria dos quais ele sempre tratou como “picaretas”. Imaginou que consciência alguma resistiria à força combinada de suas “negociações” com a eficiência de Dilma apressando as edições especiais do Diário Oficial da União. Como se não bastasse, os dois ainda acreditaram que a maioria dos cidadãos e do Congresso Nacional retrocederia ante a tentativa de pintar o impeachment como golpe.
No quinto e último ato, finalmente, Dilma Rousseff desistiu de se apresentar como farsante. Para se segurar no cargo não vacilou em denegrir a imagem do Brasil no exterior, fez discursos tão patéticos quanto reveladores e, no grand finale, decretou “bondades” diversas, ratificando o figurino populista-esquerdoide de sua concepção de política.
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*Cientista Político, membro da Academia Paulista de Letras, é autor do livro ‘Tribunos, profetas e sacerdotes: intelectuais e ideologias no século 20’
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