- O Globo
Solange Hernandes foi a censora mais temida da ditadura. Agora seus discípulos voltaram ao poder, e querem dar a última palavra na produção cultural brasileira
Solange Hernandes foi a censora mais temida da ditadura militar. Chefe da Divisão de Censura de Diversões Públicas, decidia o que podia e o que não podia ser exibido no teatro, no cinema e na televisão. A tesoura estatal podava toda obra que, aos olhos dela, atentasse contra a moral e os bons costumes. Críticas ao regime, nem pensar: eram cortadas na raiz.
Na Nova Era, o governo quer voltar a dar a última palavra na produção cultural. A censura, extinta pela Constituição de 1988, ressurge nas formas de veto ideológico e asfixia econômica.
Um dos primeiros atos do bolsonarismo foi a extinção do Ministério da Cultura. De lá para cá, acumulam-se tentativas de interferência nas artes.
O presidente já anunciou que deseja impor um “filtro” à produção cinematográfica. “Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine”, ameaçou. Ele acusou o órgão de financiar “filmes pornográficos” e defendeu que o cinema brasileiro passe a exaltar “heróis brasileiros”. “Nem na ditadura isso ocorreu”, reagiu o diretor Bruno Barreto, que rodou “Dona Flor e Seus Dois Maridos” em pleno governo Geisel.
Em agosto, a Ancine suspendeu um edital que havia selecionado séries sobre sexualidade e diversidade de gênero. Com o veto, quatro produções perderam o direito a captar recursos no mercado. “Conseguimos abortar essa missão”, festejou o presidente, em live para seus seguidores.
Em outra frente, o governo implodiu a Lei Rouanet, principal mecanismo de financiamento do setor. O teto para a captação de recursos despencou de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão. O Planalto não apresentou nenhum estudo econômico que justificasse o corte.
A tesoura chegou até ao Itamaraty. A embaixada em Montevidéu vetou a exibição de um documentário sobre Chico Buarque. O chanceler Ernesto Araújo disse que a obra não era de “interesse” do governo.
A censura federal faz escola. Em Porto Alegre, a Câmara Municipal cancelou uma exposição com charges críticas a Bolsonaro. No Recife, a Caixa Cultural tirou de cena uma peça contra o autoritarismo. No Rio, o prefeito Marcelo Crivella enviou fiscais à Bienal do Livro para apreender um gibi com beijo gay.
A blitz do bispo ainda não tinha ocorrido quando Fernanda Montenegro posou para a revista “Quatro Cinco Um” fantasiada de bruxa, prestes a ser queimada numa fogueira de livros. O desconhecido Roberto Alvim, diretor de artes cênicas da Funarte, reagiu com fúria. Chamou de “sórdida” e “mentirosa” a maior atriz brasileira, que faz 90 anos na semana que vem.
Antes de assumir o cargo, Alvim convocou “artistas conservadores” a criarem uma “máquina de guerra cultural” para combater quem pensa diferente. Essa mentalidade macarthista está por trás do sistema de censura prévia instituído na Caixa Econômica Federal. A “Folha de S.Paulo” revelou que funcionários do banco passaram a vasculhar posições políticas e postagens em redes sociais antes de definir patrocínios.
Na nova cruzada autoritária, o diretor da Funarte e seus pares parecem buscar a notoriedade de Dona Solange, que virou personagem de músicas de Leo Jaime e Rita Lee. A chefe da DCDP não está mais por aqui, mas seus discípulos chegaram ao poder.
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