quarta-feira, 27 de abril de 2022

Roberto DaMatta: Carnaval, guerra e tortura

O Globo

Os inabaláveis negam justamente o que nos faz humanos: nossa capacidade de mudar mesmo aceitando que o pecado de ontem é, hoje, trivial.

A consciência da nossa finitude certamente explica a atração pelo permanente. Por isso os que pregam certezas atraem tanto. Eles nos impingem que existe mesmo a lâmpada de Aladim e o próprio Aladim. Coisas permanentes como o Everest, ou incorruptíveis como o ouro, compensam nossa impotência diante da morte e do esquecimento. Eventos ou contextos extraordinários — carnaval, guerra, tortura — reavivam identidades que não são inatas, mas internalizadas por nossas línguas e culturas.

No entanto sabemos que injustiças e erros são cometidos e descobertos — a menos que se acredite numa sociedade perfeita — em todo lugar. A subordinação da mulher, a crueldade da escravidão, o machismo feminicida, o preconceito estrutural com os velhos, os lucros promovidos pelo capital contra o trabalho, o tabu de escolher sexualidades, nacionalidades e etnias, de contrariar costumes e, por fim, a abjeta tortura praticada no regime militar revelaram o lado perverso do nosso “bom-mocismo”, graças ao historiador Carlos Fico e à jornalista Míriam Leitão.

Hoje, a tortura, além de vergonha e desonra, é uma abominação jurídica afim aos totalitarismos, mas ela tem uma sólida história. Na Contrarreforma (séculos XVI e XVII), torturar foi legal contra hereges. Fora do nosso lado, era válido extrair confissões pela tortura, que despe de humanidade sobretudo o torturador.

Vivemos dias peculiares. Uma Semana Santa embrulhada numa Quaresma e um carnaval de desfile; a brutal agressão de uma super Rússia contra um ex-aliado num mundo cuja tecnologia dificulta segredos. E a “novidade” de que tivemos tortura no regime militar ao lado de mais outra novidade: mais crise bolsonarista.

O problema dessas coisas fora de hora e lugar é como encaixá-las como parte de nosso passado. Um passado escravocrata reprimido que volta tão forte quanto o populismo e a corrupção. Esquecidos dos pelourinhos, redefinimos o carnaval e engendramos um sistema jurídico que solta corruptos e esquece inocentes.

O Brasil, como dizia Tom Jobim, não é para principiantes...

Experimentamos todos os regimes políticos! De catequistas católicos e da fidalguia colonial, passamos a Reino graças à fuga de Dom João VI para o Rio de Janeiro. O único monarca que fugiu de seu reino para colocar, como diz brilhantemente o historiador social Patrick Wilcken, todo “um império à deriva”.

Tal movimento criou uma autovisão insegura e ambígua daquilo que veio a ser o Brasil. Debaixo do Equador, tudo seria possível, como diz Chico Buarque de Holanda, repetindo seu pai historiador, Sérgio. Um espaço onde a virtude fica sempre entre o sim e o não. Existem leis regulando tudo menos um elo de amizade ou parentesco. Temos tudo, menos o esforço para honrar uma igualdade republicana que chegou aos trambolhões, se é que li com cuidado José Murilo de Carvalho.

No meu trabalho, falo em éticas dúplices (da casa e da rua) — do pessoal e do impessoal —cuja impiedade tem seu limite na tortura, no uso particular dos recursos públicos e num absolutismo que permanentemente ronda o cargo de presidente da República.

Com tantas experiências profundas, entre as quais a maciça escravidão negra africana foi a que mais consagrou um estilo de vida aristocrático, temos, até hoje, o dilema de honrar a igualdade e a democracia, personalizando nossos supostos inimigos. Quando a tortura reaparece, desmente que somos somente o belo e bondoso “país tropical, abençoado por Deus”, e há tenebroso vislumbre dos pelourinhos, relembrando nossa imensa dívida para com um regime democrático decente. Porque perfeito, nenhum há se ser, como Vico e Herder afirmavam.

 

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