segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Lygia Maria - Amor e política

Folha de S. Paulo

Racionalizar o afeto a partir de relações de poder é problema quando vira norma, subjugando indivíduos

Há quem diga que o amor é um ato político. Pelo visto, não há mais aspecto da existência humana que escape à politização. A racionalização do afeto a partir de relações de poder vai desde o capitalismo que transforma relacionamentos em produtos, passando pelo patriarcado que controla mulheres através do romantismo até o racismo estrutural manifestado em uniões inter-raciais.

Sobre esse último, tem crescido a busca pela relação afrocentrada —casal formado por parceiros negros.

Ora, amor é questão pessoal e cada um escolhe os critérios que quiser para embarcar nessa empreitada que é dividir a vida com outro ser humano. Pelos relatos dos adeptos, a união afrocentrada é valiosa em diversos aspectos, como a autoestima, a identidade e a empatia em relação às dores causadas pelo racismo.

O problema surge quando parâmetros políticos são colocados como norma, subjugando o indivíduo. Acusações de "palmitagem" são exemplo. O termo pejorativo surge para classificar o comportamento de homens negros que, ao ascender socialmente, se relacionam com brancas. Com o tempo, até mesmo mulheres negras passaram a receber a pecha.

Acirrar conflitos raciais é um aspecto nefasto do identitarismo, usado para criticar pautas legítimas e necessárias do movimento negro.

Em 2020, Gilberto Gil e seus filhos foram acusados nas redes sociais de embranquecer a família, por se relacionarem e terem filhos com pessoas brancas. É a ideia distorcida, e racista, de que "miscigenação é genocídio". Nada diferente do que se pensava na Alemanha de Hitler ou na África do Sul sob apartheid.

Como uma romântica inveterada, admito, não compreendo o fenômeno de politizar o amor. Mas, se é para fazê-lo, melhor se basear na luta travada pelo casal americano Richard e Mildred Loving (ela negra) contra o estado de Virgínia. Em 1967, o caso chegou à Suprema Corte do país, que decidiu pela inconstitucionalidade de leis que proibiam o casamento inter-racial. Vence o amor, vence a política.

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Fazer do amor um ato político é uma dessas insanidades dos cretinos que se repetem no nosso teatro político e social.

Deitar falação sobre o amor, sobre qualquer tipo ou forma de amor, para causar dicotomia, segregação ou autosegregação e causar produção de ódio chega a ser racismo quando contextualizado sobre relações entre grupos étnicos.

E depois essa gente se apresenta como melhores que Bolsonaro!

Mas o amor mesmo, o amor como cultura, claro que o amor é um fato político! Todo resultado cultural e social é um fato político. O desamor também é, e mais ainda o ódio.

Mais da metade dos atos e dos fatos políticos são lamentáveis e ocorrem por falta de maior lucidez cultural, que leva ao doutrinarismo e ao ideologismo. Utilizar o amor para causar divisão etnica é mais um ato lamentável que praticam como política.

Infelizmente no mundo inteiro e mais ainda nos países que continuaram pobres o iluminismo não venceu e agora até está sofrendo ataques das pusilânimes forças obscurantistas.

Contra os valores de liberdade, autonomia e individuação vemos guerras sendo abertas, como na Ucrânia, no Corredor Palestino e na América do Sul. E vemos milhares de guerrinhas acontecendo, e uma delas é esse buling sobre pessoas para suprimir suas escolhas e escolherem por elas até parceiros sexuais, amigos e namorados.

Para desqualificar e inviabilizar avanços políticos e sociais construídos pela cultura pensada para unir e libertar usam tudo, até o amor.

Enquanto isto, as meninas iranianas que tiram os véus e libertam seus cabelos para protestar contra a opressão estão sendo assassinadas e os movimentos que se dizem progressistas e que são o contrário por serem fundamentalistas escolhem deliberadamente ficar calados sobre estes abusos porque seus líderes políticos são aliados da homofobia e da misoginia do regime autoritário e obscurantista do Irã.