quinta-feira, 7 de março de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Oponiões

 

Combate à dengue exige mais de governos e cidadãos

O Globo

Todos sabem o que precisa ser feito para evitar epidemia maior — atacar os focos do mosquito

O Brasil já registra neste início de ano 1,3 milhão de casos de dengue e 329 mortes (outras 767 estão em investigação). Ao menos nove unidades da Federação apresentam incidência de mais de 300 casos por 100 mil habitantes, situação que, de acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), configura uma epidemia. O cenário mais preocupante ocorre no Distrito Federal, com 4.276 infecções por 100 mil. Esses números expõem a incapacidade de governos e da própria sociedade de lidar com uma doença que, diferentemente da Covid-19, reaparece como uma velha conhecida.

Governo federal, estados, municípios e a população sabem — ou deveriam saber — o que fazer para evitá-la, uma vez que surtos e epidemias são recorrentes. É preciso combater os focos do mosquito transmissor, o Aedes aegypti (em 75% dos casos, ele está dentro das próprias residências), tapar caixas-d’água, recolher objetos que acumulam água parada, remover lixo, limpar os pratos dos vasos de plantas etc. Sabe-se tudo isso — mas nem todos fazem.

É verdade que agora, depois da explosão de casos, autoridades resolveram agir. Agentes de saúde têm visitado casas para orientar os moradores. Drones têm sido usados para inspecionar telhados em busca de depósitos de água parada ou caixas-d’água destampadas. Escolas têm se engajado na luta contra o mosquito, ensinando aos alunos formas de prevenir a doença. São iniciativas acertadas, mas deveriam ter sido tomadas antes. Se as ações tivessem começado no ano passado, talvez a situação hoje não fosse tão dramática.

O problema vinha se desenhando nos últimos anos. Ninguém pode alegar que foi pego de surpresa. O alarme soou há tempos. Em 2023, o país registrou 1,7 milhão de casos de dengue e 1.094 mortes — recorde desde que a doença ressurgiu nos anos 1980. O calorão e as chuvas constantes agravaram um quadro já ruim, criando as condições para a proliferação do mosquito.

O combate aos focos do Aedes se torna mais essencial porque, embora já exista uma vacina contra a dengue disponível no SUS (a Qdenga, da farmacêutica japonesa Takeda), ela não pode ser usada em larga escala. O fabricante só conseguirá entregar neste ano 6,5 milhões de doses, insuficientes para vacinar a população. O Ministério da Saúde demorou a incorporar a vacina ao SUS, rendendo-se à burocracia. O jeito foi restringir o público-alvo.

Nem essa vacinação restrita tem sido bem-sucedida. A procura tem sido baixa nos cerca de 500 municípios que receberam a vacina. Em estados onde a situação é mais crítica, apenas 16,7% das doses foram aplicadas. A situação levou o Ministério da Saúde a ampliar a faixa etária do público-alvo para 10 a 14 anos (antes eram apenas crianças de 10 e 11 anos).

Ainda que a vacinação estivesse indo bem, teria pouco impacto no quadro atual devido à escassez. Por isso não resta às autoridades de saúde outra alternativa a não ser ampliar as campanhas, as operações de limpeza e o combate aos focos do mosquito. Não se agiu quando era tempo, mas ainda é possível evitar números mais catastróficos, já que o pico da doença ainda está por vir. Basta que governos cumpram o seu papel e que os cidadãos dediquem ao menos dez minutos por semana para fazer o que tem de ser feito.

Queda na popularidade levanta pontos de alerta para Lula

O Globo

Reprovação ao presidente cresce naqueles segmentos e regiões a que ele tem dado menos atenção

Faltando sete meses para as eleições municipais, a aprovação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva está em queda: recuou de 54% para 51% desde dezembro, enquanto a desaprovação subiu de 43% para 46%, segundo pesquisa Quaest divulgada ontem. A tendência é registrada desde agosto, quando a aprovação chegou ao pico (60%), e a desaprovação era de 35%. De lá para cá, a popularidade de Lula, embora ainda expressiva, vem se deteriorando.

Ela continua alta e estável no Nordeste, no estrato com renda familiar até 2 salários mínimos e na população com mais de 60 anos. Nos demais níveis de renda, regiões ou faixas etárias, porém, apresenta recuo. Lula ainda é aprovado pela maioria dos brasileiros, mas entra no segundo ano de governo com um desafio: recuperar sua imagem nos grupos sociais a que tem dado menos atenção.

Um dos principais é formado pelos jovens. Seis em cada dez o aprovavam em agosto. De lá para cá, essa parcela vem caindo. Hoje mais jovens o desaprovam (50%) do que o aprovam (46%). No recorte por regiões, a popularidade no Sul e Sudeste apresenta tendência semelhante. Nenhuma diferença entre aprovação e desaprovação é mais significativa que a observada no eleitorado evangélico. Seis em dez o desaprovam, enquanto 35% o aprovam. No início do mandato, aprovação e desaprovação a Lula entre evangélicos eram semelhantes.

Uma das percepções mais intrigantes captadas pela pesquisa diz respeito à economia. O país cresceu acima da expectativa no ano passado. A inflação cumpriu a meta, e o desemprego atingiu o menor nível da última década. A taxa de juros começou a baixar, e a renda se recuperou. Apesar de tudo isso, 38% consideram que a economia piorou nos últimos 12 meses, nível mais alto desde fevereiro de 2023 e sete pontos acima do registrado em dezembro. Apenas 26% viram melhora. Mesmo entre os eleitores de Lula, cresceu a parcela que enxerga piora na economia.

A popularidade de Lula, é fundamental enfatizar, continua alta. Mas a queda recente levanta pontos a que ele precisa prestar atenção. Lula foi eleito por uma ampla frente democrática. Uma vez no governo, tem se esmerado em repetir políticas que garantiram seu sucesso no passado, sem se dedicar ao que angustia a população no presente. Seu discurso é capaz de mobilizar a base mais fiel, mas, como revela a pesquisa, não de manter o apoio em segmentos que foram essenciais para sua eleição.

Com sua visão desenvolvimentista, ele tem dado prioridade às estatais, sem prestar atenção aos pequenos empreendedores das periferias. Tem dedicado mais tempo a aparições em fóruns internacionais e à guerra em Gaza que à violência das organizações criminosas ou à crise de segurança pública que aflige a população brasileira. Por fim, a agenda econômica virtuosa do Ministério da Fazenda não foi compreendida nem pelo próprio PT. Se não cuidar dessas questões, poderá ter de pagar preço ainda maior em popularidade.

Primárias continuam a indicar eleição sem favorito nos EUA

Valor Econômico

Após as primárias, a disputa presidencial continua exatamente onde estava: sem favorito e com um provável desfecho por margens mínimas de vantagem ao vencedor

A Superterça, maratona de eleições primárias para escolher os candidatos à Presidência dos Estados Unidos, nada definiu que não fosse previsível. O republicano Donald Trump (77 anos) irá à forra contra o democrata Joe Biden (81 anos) em novembro, em um pleito que coloca juntos os dois mais idosos concorrentes à Casa Branca na história do país. Os resultados confirmaram o que se esperava, mas a abertura dos números sugere que o momento favorável a Trump pode ser uma ilusão. Contra ele ainda pesa uma poderosa tradição. Quase nenhum incumbente perdeu a reeleição - as exceções foram George Bush pai, Jimmy Carter e o próprio Donald Trump.

Em seu estilo ruidoso, Trump celebrou a vitória em 15 dos 16 Estados - perdeu em Vermont -, afirmando ter esmagado sua rival, Nikki Haley, a quem chamou de cabeça oca, assim como tinha desqualificado com termos mais ofensivos seus rivais que ficaram pelo caminho, como o governador da Flórida, Ron DeSantis. Além desse trunfo, a Suprema Corte retirou um peso enorme das costas do candidato republicano - revogou a retirada de seu nome das urnas no Estado do Colorado, que considerou sua tentativa de sedição como motivo suficiente para bani-lo das eleições. Trump ainda terá de responder a quatro processos judiciais, mas o obstáculo imediato foi superado.

A candidatura dissidente de Haley, em um partido cada vez mais monocrático e radicalizado, testou o grau de apoio ao ex-presidente. O destino de sua campanha comprovou que Trump domina o partido e é imbatível em suas fileiras. Mas o apoio que obteve indicou vulnerabilidade do ex-presidente em uma eleição que provavelmente será decidida nas casas decimais. No conjunto da votação da Superterça, Haley obteve 22,6% dos votos, isto é, um em cada cinco dos que compareceram às primárias, em geral os membros mais ativos da legenda, preferem outro candidato.

O destino desse voto minoritário decisivo é uma incógnita. Haley, ao contrário de outros pré-candidatos espezinhados por Trump, que perderam e endossaram a sua candidatura, não declarou apoio a ele. Preferiu deixar a Trump a tarefa de convencer os recalcitrantes, muitos deles contrários à infame e inédita tentativa de tentar invalidar eleições democráticas com o uso da violência na invasão do Congresso em 6 de janeiro de 2021.

A análise do voto na Superterça por especialistas mostra que Trump parece ter mais força do que tem quando se esmiuçam as estatísticas de voto. Eles sugerem que se a força de Trump foi subestimada quando venceu as eleições em 2016, ela está sendo superestimada agora. A votação nas primárias revela que ele teve menos apoio em vários Estados do que as pesquisam previam. Em Michigan, importante “swing state” - cuja fidelidade é mutante e pode decidir eleições -, era esperado que sua margem de vantagem fosse de 57% de apoio, mas ela foi de 41,5% (Financial Times, ontem). Em menor proporção, a margem também foi menor em Iowa, New Hampshire e Carolina do Sul.

O presidente Joe Biden não entusiasma os democratas que, como os demais americanos, estão preocupados com sua capacidade de governar o mais poderoso país do planeta com 81 anos de idade. Essa preocupação, no entanto, pode não se reverter em um voto no opositor, apenas 4 anos mais jovem, embora possa desembocar em uma decisiva abstenção. Apesar de tudo, Biden praticamente está na margem de erro, sempre colado a Trump, cuja vantagem não ultrapassa 2 pontos percentuais, diferença que perdura há meses. Sua aprovação atual, em torno de 38%, baixa, é menor que a de Trump no mesmo estágio do mandato, de 42,3%, o que é preocupante, mas não decisivo. O consolidado das pesquisas do FiveThirtyEight aponta, porém, que 52,5% têm imagem desfavorável de Donald Trump, ante 43% que o apoiam. O score de Biden é um pouco pior: 55,3% e 40%.

A Superterça encerra na prática o ciclo das primárias. Os dois candidatos realizarão campanhas sem adversários internos, em um dos mais longos embates diretos das campanhas eleitorais americanas. Trump tem mais a temer do que Biden nesse longo período. Com quatro processos judiciais, tem pela frente um pesado período de propaganda negativa decorrente de seus percalços na Justiça. Ele foi condenado a pagar multas milionárias por manobras contábeis de balanços em suas empresas em Nova York e pode ser condenado por tentar abafar suas aventuras sexuais com a atriz pornô Stormy Daniels. Nada disso pode ser tão prejudicial quanto a ilegal posse de documentos sigilosos do Estado, a tentativa de influenciar os resultados das eleições na Geórgia e sua instigação à invasão do Capitólio em 6 de janeiro.

Biden tem a seu favor o bom estado da economia e do emprego, que não se traduziram em aumento de sua popularidade, mas que não contribuirão para reduzi-la ainda mais - as chances, ao contrário, são de melhoria.

Após a medição de forças internas partidárias da rodada maior de primárias, a disputa presidencial continua exatamente onde estava - sem favorito e com um provável desfecho por margens mínimas de vantagem ao vencedor.

Regulação é risco para serviço por aplicativo

Folha de S. Paulo

Lula age com afã sindicalista ao tratar de atividades inovadoras, cujo sucesso depende de flexibilidade nas contratações

O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem desde seu início o afã de regular o trabalho de transporte por aplicativos, no que infelizmente se mostra movido por uma visão sindicalista do século passado e pelo ímpeto polarizador dos anos recentes da política nacional.

Manifestações sobre o tema foram contaminadas por hostilidade despropositada contra as empresas do setor. No ano passado, o ministro Luiz Marinho, do Trabalho, disse que a Uber poderia ser substituída pelos Correios, se deixasse o país. Nesta semana, Lula prometeu "encher tanto o saco que o IFood vai ter de negociar".

O mandatário cometeu a diatribe durante cerimônia de lançamento do projeto de lei complementar enfim apresentado sobre o tema, resultado de discussões que transcorreram nos últimos meses sem chegar a um consenso —tanto que a atividade dos entregadores ficou fora do texto, limitado ao transporte de passageiros.

A negociação teve o mérito de tirar da mesa algumas das ideias mais problemáticas, em especial a contratação de motoristas pela CLT. Pela proposta, os profissionais serão reconhecidos como autônomos. Fixam-se também contribuição ao INSS, remuneração mínima e limitação da jornada.

Está-se diante de um serviço inovador, proporcionado por vertiginosos avanços da tecnologia e cujo sucesso depende da flexibilidade para contratações, horários e tarifas. A regulação, portanto, é desafiadora em todo o mundo.

No Brasil, o IBGE calculou haver 1,5 milhão de pessoas trabalhando por meio de aplicativos e plataformas digitais ao final de 2022, o correspondente a 1,7% da população ocupada no setor privado. Desse grupo, pouco mais da metade (52,2%) transportava passageiros, 39,5% eram entregadores e 13,2% prestavam outros serviços.

Apenas 35,7% deles contribuíam para a Previdência Social, o que de fato é motivo de preocupação. A mazela da informalidade, no entanto, é muito mais ampla no mercado de trabalho brasileiro.

No cálculo político, o contingente dos motoristas é frequentemente listado como uma das bases do bolsonarismo, o que tende a aguçar as resistências ao projeto governista no Congresso.

O debate precisa avançar com mais estudos e avaliações técnicas, sem açodamento nem bandeiras ideológicas. O processo de modernização da legislação trabalhista deve prosseguir de modo a proporcionar a formalização em condições realistas.

Cotas sociais, não raciais

Folha de S. Paulo

Heteroidentificação carece de objetividade; renda é o critério mais correto

Dois estudantes que se declararam pardos para concorrer a uma vaga na USP e passaram no processo seletivo tiveram suas matrículas negadas. A comissão de avaliação racial da universidade considerou que eles não apresentavam características fenotípicas compatíveis com a classificação.

A questão das matrículas foi parar na Justiça, e a polêmica se instalou. O reitor da USP, Carlos Carlotti Junior, promete "corrigir e aprimorar" o processo de seleção pelo sistema de cotas raciais.

É bem-vindo o empenho da USP para evitar injustiças, mas é fato que elas se repetirão —neste ano, a universidade recebeu 204 recursos de candidatos que tiveram a matrícula negada pela banca avaliadora.

O problema é que não há critérios objetivos e coerentes para diferenciar pardos de brancos, ou outras categorias baseadas em fenótipos só vagamente definidos.

Não é por outra razão que o IBGE e a própria legislação de cotas operam com o conceito de autodeclaração (cada um é o que diz ser).

Entretanto quando o STF, ao atender uma demanda do movimento negro, admitiu também a heteroidentificação, abriram-se as portas para o imbróglio.

Assim, a autodeclaração se tornou passível de revisão por comissões, cujos juízos não passam de somatória de impressões pessoais.

Tais comitês até podem funcionar como desestímulo àqueles que se declaram pardos só para usufruir das vantagens das cotas, mas não evitam injustiças.

Esse parece ser o caso dos candidatos da USP, que os julgou apenas por fotos e vídeo. Ambos estudaram em escola pública e vêm de famílias miscigenadas.

Da forma como o sistema está desenhado, essa é uma aporia irremediável. Quaisquer decisões tomadas por bancas estarão envoltas pelo manto da subjetividade.

A precariedade das categorias é uma das razões pelas quais esta Folha defende que o sistema de cotas nas universidades, que combina critérios sociais com raciais, funcione apenas pelos sociais, que são objetivos e mensuráveis.

A renda familiar tem expressão em números, não em ideias discutíveis sobre o que constitui raça. Em termos demográficos, favorecer os mais pobres já significa contemplar negros e pardos, dado que as privações econômicas são o mais saliente e o mais perverso dos efeitos do racismo.

Medo e delírio nos Estados Unidos

O Estado de S. Paulo

Eleições nos EUA serão muito mais sobre qual dos dois candidatos é mais inapto.

Como previsto, a rodada das primárias americanas conhecida como Superterça selou a reedição da disputa de 2020 entre Donald Trump e Joe Biden para a presidência. É difícil de acreditar, mas os eleitores de ambos os partidos escolheram o candidato com mais chances de perder para o seu adversário. Será uma disputa de rejeições.

Em uma pesquisa do Pew Research de 2023 sobre a percepção dos americanos a respeito da política nacional, 65% disseram se sentir frequentemente exauridos e 55%, enfurecidos. Só 10% expressaram sentimentos de esperança e 4% se disseram animados. Questionados sobre como descreveriam a política em uma palavra, as respostas variaram entre divisiva, corrupta, tumultuada ou ruim.

Em um aspecto, a falta de vigor da democracia americana é palpável, mensurável e até literal: a disputa entre Trump e Biden quebrará o recorde etário batido por Trump e Biden em 2020. Se Trump for reeleito, completará seu mandato com 81 anos. Se Biden for, terá 85. Ambos são impopulares. Em seus quatro anos na presidência, Trump nunca atingiu 50% de aprovação. Hoje, de acordo com uma pesquisa da Fox News, sua taxa de desaprovação, 57%, só é superada pela de Biden, 59%.

Previsivelmente, temas convencionais de disputas eleitorais, como a economia ou a política externa, ficarão em segundo plano, ou ao menos serão distorcidos e dilacerados pela disputa sobre qual dos candidatos é mais inapto para assumir o cargo mais relevante do mundo. Ambos acusarão um ao outro de representar uma ameaça existencial aos EUA tal como os americanos os conhecem.

A campanha de Biden multiplicará as imagens da invasão ao Capitólio do 6 de Janeiro e trará à tona incansavelmente os muitos processos criminais a que Trump responde na Justiça. Cerca de um terço dos eleitores republicanos diz que uma condenação desqualificaria Trump para o seu voto.

Muitos eleitores independentes são sensíveis aos alertas dos democratas. Eles estão genuinamente apreensivos com as agressões de Trump ao sistema democrático e veem Biden como um político razoável com tendências centristas. Mas também têm dúvidas se ele tem o vigor e as capacidades mentais para suportar o pugilismo de Trump, refrear os excessos dos esquerdistas radicais de seu partido e defender a República das ameaças internas e externas. E tanto seus temores quanto suas dúvidas são justificados. Três quartos dos americanos pensam que Biden é velho demais para um segundo mandato, e muitos estão sopesando a perspectiva da vice-presidente Kamala Harris, profundamente impopular e desacreditada, assumir a presidência.

Trump continuará a excitar nos eleitores republicanos um frenesi aterrorizante contra um Joe Biden “senil”, incapaz de proteger as fronteiras e conter a criminalidade, as mortes por overdose, a inflação, os delírios do identitarismo progressista e potências hostis como China, Rússia ou Irã. A “carnificina americana” a que Trump aludiu em seu discurso inaugural em 2017 serviu para intimidar os republicanos moderados quase como um chefe mafioso e conquistar vitórias sem precedentes com seus eleitores: três nomeações seguidas com um triunfo avassalador na última. O Partido Republicano é hoje o partido de Trump, e suas políticas orbitam em torno desse culto a uma personalidade imprevisível e irascível.

Contudo, todas as vezes em que se engajou em eleições gerais desde 2016, Trump acumulou reveses para o seu partido: 2018, 2020, nas eleições para o Senado da Georgia em 2021 e 2022.

Vença quem vencer, enfrentará severas dificuldades de governabilidade com um Congresso disfuncional e polarizado. Velhas pautas bipartidárias estão sendo pilhadas por ambos os lados como munição de uma guerra cultural que arrasta consigo mesma as mais consensuais políticas de Estado.

Se no ano passado os americanos se sentiam frustrados, irritados e assustados com a política do país, neste ano as suas escolhas devem intensificar esses sentimentos. E tudo indica que eles só se agravarão na guerra de trincheiras que se desenha para os próximos quatro anos.

Tribunais raciais são irremediáveis

O Estado de S. Paulo

Não importa o método que a USP adote para preencher as cotas raciais, pois o sistema é intrinsecamente arbitrário, fruto dos insanáveis vícios de origem dessa ação afirmativa

O reitor da Universidade de São Paulo (USP), Carlos Carlotti Junior, reduziu o problema das absurdas “comissões de hetero identificação” a mera questão de método. Após dois candidatos autodeclarados pardos terem suas matrículas barradas pelas tais comissões, Carlotti Junior deu a entender que grave nãoéa existência desses verdadeiros tribunais raciais. O único erro, em sua visão, seria o atual modelo adotado pela USP para determinar o destino de jovens postulantes ao ingresso na melhor universidade do País por meio do sistema de cotas raciais. O esteio dessa escolha arbitrária – o olhar subjetivo sobre os atributos físicos dos candidatos – permanece intocado.

Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o reitor afirmou que a universidade arcará com os custos de deslocamento para que candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI) possam comparecer pessoalmente diante das bancas de avaliação fenotípica, eliminando, desse modo, a pré-avaliação feita por meio de videoconferência. “É mais barato arcar com o custo das viagens do que deixar qualquer dúvida no ar e expor a instituição”, disse Carlotti Junior.

Segundo essa lógica, o grande problema seria o risco à percepção dos juízes de melanina provocado pela mediação tecnológica da imagem dos candidatos. Decerto o meio digital provoca alterações de registro visual de objetos e pessoas pelo olhar humano. Mas não é disso que se trata. A questão d efundo noca sodas tais“c omissões de hetero iden ti ficação”é que elas não encontram amparo em lei alguma nem muito menos na Constituição. Trata-se, portanto, de evidente arbítrio, quando não uma normalização da discriminação racial a pretexto de fazer justiça social.

A recalcitrância não é só do reitor. Em artigo publicado no Jornal da USP, Ana Lúcia Duarte Lanna, próreitora de Inclusão e Pertencimento, e Aluísio Augusto Cotrim Segurado, pró-reitor de Graduação, afirmaram estar “convencidos que as comissões de hetero identificação e as políticas afirmativas, lados de uma mesma moeda, têm garantido o processo de inclusão social e de construção de uma universidade pública mais diversa e socialmente plural”.

As boas intenções mal escondem os vícios de origem que resultaram nos tribunais raciais. As cotas por raça embutem um nível de arbítrio incompatível com qualquer norma constitucional, como ilustrou perfeitamente o caso do tribunal racial da USP.Ne mé preciso invocar os artigos sobre a igualda dede todos perante alei. Basta revisitar o artigo 208, inciso V, no qual se lê que o dever do Estado coma educação será efetivado mediante a garanti ade“acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um (grifo nosso)”. O tamanho do nariz ou a grossura do lábio – critérios supostamente objetivos usados pelos árbitros raciais das universidades – nada tem a ver com a capacidade dos candidatos.

O ingresso no ensino público superior tem de ser baseado exclusivamente no mérito intelectual dos candidatos. Contudo, ninguém de boafé haverá de negar que existe uma abissal disparidade entre as condições de disputa por uma vaga nas universidades públicas entre os alunos oriundos da rede pública e os que provêm da rede particular. Esse desequilíbrio, porém, é determinado pela condição socioeconômica dos alunos. Os mais pobres dependem de uma rede de ensino sabidamente de pior qualidade. É tão simples quanto isso.

A sociedade precisa olhar para o futuro. Se e quando uma reforma de cima a baixo do sistema público de educação básica for alçada à grande prioridade nacional, a discussão em torno da necessidade de cotas – e dos meios para implementá-las – para ingresso no ensino superior será ociosa. Hoje, poucas e louváveis são as vozes que pregam nesse deserto, enquanto outros preferem seguir apostando na divisão racial dos brasileiros como ativo político-ideológico.

OMC confirma sua estagnação

O Estado de S. Paulo

Entidade segue longe de consenso sobre temas relevantes num mundo em transformação

A Organização Mundial do Comércio (OMC) encerrou sem acordos sua reunião ministerial de Abu Dabi, nos Emirados Árabes Unidos, nas primeiras horas de 2 de março. Os 164 países que a integram não alcançaram consenso em temas relevantes, como agricultura, pesca e facilitação de investimentos. A ausência de qualquer movimento dos Estados Unidos em favor da reconstrução do mecanismo de solução de controvérsias, sem efetividade há sete anos, arrematou o fracasso do encontro. Restou o preocupante quadro de paralisia da organização – tanto para aplicar novas disciplinas como para julgar práticas ilegais ou abusivas no comércio internacional.

Para não dizer que nada saiu do encontro de Abu Dabi, houve consenso sobre a prorrogação por mais dois anos da isenção de tarifas de importação sobre o comércio eletrônico de dados. De resto, o desprezo dos Estados Unidos, cujo principal negociador se retirou antes do fim da reunião, e o veto da Índia a todos os acordos possíveis impediram o saldo esperado. A delegação de Nova Délhi obstruiu até mesmo a inclusão, no aparato jurídico da OMC, de um acerto fechado previamente por 122 países sobre facilitação de investimentos, que previa redução de burocracia e maior transparência por governos e empresas.

A delegação da Índia chegou a Abu Dabi com o firme propósito de ver consagrada sua proposta de legalizar os subsídios aos seus estoques agrícolas – e de, em caso de decepção, vetar todos os demais acordos. A estratégia não poderia ser mais espúria. Agiram corretamente o Brasil e outros exportadores de alimentos ao recusarem a chantagem, que ocultava uma escaramuça. Como denunciou a Tailândia, a Índia exporta parte de seus estoques, que deveriam atender exclusivamente o mercado doméstico – uma clara infração às regras vigentes.

Não é de hoje que a Índia demole consensos na área agrícola, em claro confronto às posições brasileiras. Na Rodada Doha, contribuiu para o fracasso do acordo sobre redução de tarifas e de subsídios domésticos aos bens do agronegócio. Desta vez, fez ainda o desfavor de vetar a proposta da China de aperfeiçoamento das disciplinas do acordo de pesca, de 2022. As divergências entre Brasil, Índia e China atestam seus interesses conflitantes na OMC e a chance remota de haver alinhamento no Brics.

Fato é que a 13.ª reunião ministerial da OMC apenas confirmou a estagnação da entidade que se verifica desde a ruína da Rodada Doha, em 2001. Tornou-se mais difícil construir consensos sobre temas negligenciados ao longo dos 30 anos da organização, como o comércio agrícola, e disciplinar novos setores, como o de alta tecnologia. A organização não prosperou nem mesmo como tribunal de práticas ilegais ou abusivas. Seu mecanismo de solução de controvérsias está paralisado desde 2017 pelos EUA, que impediram a evolução dessa discussão em Abu Dabi.

Trata-se de uma péssima notícia num mundo em transformação acelerada, desafiado por tensões geopolíticas e conflitos com repercussão no comércio internacional. Ao respirar por aparelhos, a OMC mal consegue preservar o arcabouço jurídico do comércio internacional. Sem ela, no entanto, seria bem pior.

Ascensão de Trump no mundo polarizado

Correio Braziliense

Do ponto de vista do Brasil, o sucesso de Trump alimenta a neodireita que se cristalizou a partir de 2018

A vitória acachapante de Donald Trump nas primárias republicanas realizadas nesta superterça foi a pá de cal nos planos da concorrente do ex-presidente, Nikki Haley, de seguir adiante na corrida para a Casa Branca. Nesta quarta-feira, a ex-governadora da Carolina do Sul e ex-embaixadora na ONU desistiu da candidatura. Assim, abre-se definitivamente o caminho para Trump ser confirmado como o candidato republicano para as eleições presidenciais de novembro. Ao anunciar que estava fora da disputa presidencial, Haley manifestou que, por ora, não pretende apoiar o mais votado entre os delegados republicanos. “Nunca apenas siga a multidão, sempre decida por si mesmo”, disse a ex-governadora, citando uma frase de outra mulher conservadora, a ex-primeira ministra britânica Margareth Thatcher.

Após vencer as prévias em 14 dos 15 estados norte-americanos na Superterça, Trump, fiel ao seu estilo, voltou as baterias contra o rival democrata. E não economizou nos ataques. Criticou fortemente a postura do presidente Joe Biden no conflito na Ucrânia e em Gaza. Declarou apoio explícito à ação militar de Israel, com uma frase controversa: “Acabe com o problema”. Trump disse que, se estivesse no comando da Casa Branca, o ataque terrorista do Hamas jamais teria ocorrido. E finalizou: “Joe Biden é o pior presidente da História do nosso país”.

O atual ocupante da Casa Branca, também vencedor da Superterça do lado democrata, preferiu dar declarações por escrito em resposta aos ataques do adversário. E externou uma preocupação expressiva nos Estados Unidos, compartilhada em diversas partes do mundo. “[Os americanos] estão diante de uma escolha clara: se querem seguir avançando ou se permitirão a Donald Trump que nos arraste para o caos, a divisão, e a escuridão que marcou seu mandato”, escreveu Biden.

A ascensão de Donald Trump carrega vários significados. Significa, em primeiro lugar, que o fenômeno eleitoral de 2016, resultado de um carisma fora de série nas redes sociais e um desprezo pelo establishment norte-americano, se tornou uma força política definitiva na mais antiga democracia do Ocidente. O ex-presidente demonstrou, diversas vezes, o apreço pelos regimes autocráticos da Rússia e da Hungria. É acusado de incitar a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2020, embora a Justiça, até o momento, não tenha visto impedimento para o ex-presidente republicano concorrer a um segundo mandato na Casa Branca. Apesar desses óbices, segue forte na preferência do eleitor norte-americano.

Um eventual retorno de Trump à presidência dos Estados Unidos tende a exacerbar tensões e aprofundar a polarização no complexo momento das relações internacionais. O republicano deve retomar a antiga tradição isolacionista dos norte-americana, deixando em segundo plano as ações de organismos multilaterais como a Organização das Nações Unidas e até alianças militares, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Essa postura pode complicar ainda mais a situação em regiões sensíveis, como o leste europeu, ou o Oriente Médio. Cite-se, ainda, o negacionismo explícito do republicano à emergência climática, apesar de todas as evidências científicas.

Do ponto de vista do Brasil, o sucesso de Trump alimenta a neodireita que se cristalizou a partir de 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro. Trata-se de sinal preocupante, pois é conhecido o o apreço de parcela dos bolsonaristas por práticas autocráticas, quando não a nostalgia do regime de exceção que prevaleceu sob o jugo dos militares. O ressurgimento da onda trumpista certamente servirá de aditivo para a oposição se contrapor de maneira mais veemente à plataforma progressista de Luiz Inácio Lula da Silva.

Os próximos meses prometem ser de fortes emoções. Trump está chegando. E vem com apetite.

 

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