domingo, 9 de janeiro de 2011

Rei morto, rei posto:: José de Souza Martins

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO/ALIÁS

Na cessação do mandato, o que resta a um ex-presidente é a memória do povo, mas poucos se tornam memoráveis

Essa história de “rei morto, rei posto”, ditado presente na boca de Lula nas semanas finais de seu governo, esconde um bocado de coisas. Raramente prestamos atenção ao dia seguinte do ex-governante após o rito de passagem em que um presidente entrega o poder a outro e se despe dos atributos de instituição, como pessoa que personifica o poder e a nação. O dia seguinte inaugura na biografia dos ex-governantes a híbrida condição de “ex”. Ele já não é a instituição da Presidência da República, mas continua sendo: teve acesso a segredos de Estado, a informações privilegiadas que não estão ao alcance dos mortais comuns, vê coisas que os outros não enxergam. Não terá condições de se livrar da roupagem de símbolo. Não poderá andar nas ruas sem ser notado. Nem sequer poderá comer um proletário pastel de feira sem o risco de virar notícia. O que na vida da pessoa comum é mera transgressão alimentar, na de um ex-presidente é comida politicamente incorreta. O que na rua é comida de esquerda, na vida dos ex-poderosos é comida de direita.

A passagem de presidente a ex-presidente se dá em questão de minutos. É metamorfose visível nas reportagens de transmissão de poder. Na posse de Dilma, foi possível ver a súbita mudança de interesse e orientação dos acólitos do poder. Literalmente, viram as costas para o ex, deixam de sorrir-lhe, não lhe estendem a mão. É uma forma simbólica de despojamento da coroa, do cetro e do manto. Simbólica e mal-educada.

Um ex-presidente tem que fazer esforços para voltar a ser o que era. E nunca o conseguirá plenamente. Em entrevista à revista Piauí, Fernando Henrique Cardoso referiu-se a isso: ter que fazer o próprio check-in nos aeroportos, carregar as próprias malas, procurar ele mesmo o táxi, enfrentar filas. No curtíssimo espaço de um mandato, muita coisa muda; de dois mandatos, muda muito mais. É preciso reaprender a movimentar-se. Quem depender de emprego para sobreviver terá que aprender muito mais. Lula, se tivesse que voltar para a fábrica, teria que aprender uma nova profissão, pois a sua, a de torneiro mecânico, praticamente não existe mais, substituída por computadores.

Getúlio personificou um modelo híbrido de ex-presidente, combinando o recolhimento com o retorno posterior à política. Destituído da Presidência, recolheu-se ao exílio em sua fazenda de São Borja. Seu refúgio se tornou lugar de romaria dos políticos, o caso mais emblemático de que o ex, de certo modo, continua sendo. Voltaria ao poder em 1950. Sua opção pelo suicídio, em 1954, foi mais do que expressão de um beco sem saída de circunstância. Em seu diário, relativo ao primeiro longo mandato de presidente, suas anotações falam do poder como um lugar de solidão e desamparo. A solidão do Palácio do Catete, no entanto, era sua companheira, amiga e refúgio. A proximidade do fim do mandato tornou insuportável a ideia de um novo exílio, de uma separação definitiva, do fim da solidão, de ter que voltar ao assédio de muitos e enfrentar-lhes a hipocrisia.

Já no fim do governo FHC, perguntei a Ruth Cardoso se o casal tinha planos de passar um tempo fora do Brasil. Com seu fino humor, ela me respondeu que não. Ao contrário, pretendia retornar ao Brasil. Um lugar fora do Brasil era o Palácio da Alvorada.

Ex-presidentes correm o risco de se tornar prisioneiros do passado. O general Garrastazu Médici, após o poder, voltou para sua terra, o Rio Grande do Sul. Ficava no portão de casa puxando conversa com os passantes para falar sobre as excelências de seu governo, como este País nunca antes tivera. As pessoas, que mal o conheciam ou nem o conheciam, achavam que estava delirando. Um indício de que a descontextualização do ex-governante envolve o risco de que ele seja lançado no que se pode chamar de lugar nenhum e se torne irreconhecível. Isso mostra que seu retorno ao mundo do homem comum é praticamente impossível.

Na cessação do mandato que engendra o ex-presidente, o único que lhe resta é a memória do povo. Mas nem todos se tornam memoráveis. De todos os homens que passaram pela Presidência da República apenas três receberam o galardão, por diferentes motivos e de diferentes modos. Getúlio, JK e FHC. A memória de Getúlio é imperecível, gravada numa definição do tempo histórico: o “tempo de Getúlio”; JK, porque se confunde com sua obra, especialmente Brasília; e Fernando Henrique descobre seus méritos de governante nos aplausos espontâneos que recebe nos lugares a que vai e por onde passa.

Algo parecido deve acontecer com Lula. A multidão que foi à Praça dos Três Poderes para a posse foi para aplaudi-lo e não para aplaudir Dilma. Foi para resgatar Lula do poder que o fizera refém, trazê-lo de volta para o povo. Depoimentos e manifestações de populares mostram isso claramente: o boteco, o grupo de futebol, os restaurantes de comida gordurosa, tudo afetuosamente a sua espera. Lugares e pessoas que não mudaram à espera do homem que já não pode ser o mesmo.

José de Souza Martins, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor de A aparição do demônio na fábrica (Editora 34)

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