quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Cotidiano enigmático | Murillo de Aragão

- Blog do Noblat

Devemos acreditar que a sabedoria popular tem raízes profundas na filosofia. As expressões “nem tudo que balança cai” e “nem tudo que reluz é ouro”, por exemplo, podem nos ajudar a enfrentar os enigmas do cotidiano.

Segundo o escritor inglês Alain de Botton, Sócrates achava que não era possível viver sem raciocinar de maneira sistemática sobre os objetivos a serem alcançados. O exemplo que ele utilizava era o dos oleiros e sapateiros, cuja habilidade para esculpir vasos e moldar sapatos não decorreria apenas de sua intuição.

Nietzsche preconizava que o sucesso pressupunha superar o fracasso com muito trabalho. Daí estar presente em sua obra a metáfora alpina sobre sair do plano e subir a montanha para chegar à realização. O que tem a ver com o ditado “nem tudo que balança cai”.

Temos a tendência de opinar sobre questões complexas com base apenas na percepção, no sentimento de pele que o tema possa causar. Em Nietzsche, diz Botton, encontramos a certeza de que muitos sofrem porque não conseguem, de “forma espontânea”, conhecer a fundo os ingredientes da satisfação. A “forma espontânea”, algumas vezes confundida com a intuição, seria a percepção aflorando para explicar aquilo que não sabemos, nem estudamos.

É grande o número dos que não saem de sua zona de conforto – a mediocridade – para evitar o sofrimento, e assim desistem da realização. Encontram conforto nas percepções expressas para explicar o que não sabem por preguiça de adensar suas reflexões.

A expressão popular “nem tudo que reluz é ouro” está associada a esse fenômeno. Ao desprezá-la, intuímos sobre o que não sabemos e caímos em outra armadilha: a vertente do “não é possível” – “Não é possível que fulano, sendo político, não seja ladrão; “Não é possível que a riqueza de sicrano não tenha sido construída sem alguma trapaça”, ouve-se dizer.

A vida é mais complexa do que o bate-pronto das percepções. Segundo Earl Miller, neurocientista do MIT, citado por Daniel J. Levitin, “o cérebro só absorve o mundo em pequenos pedaços”. Outro catedrático, Gloria Mark, da Universidade da Califórnia, em Irvine, diz que “dez minutos e meio em um projeto não é tempo suficiente para pensar profundamente em coisa alguma”.

Os mais antigos diziam que devemos dormir nos problemas antes de decidir. E isso tem base científica. O sono, de acordo com Matthew Walker (Berkeley) e Robert Stickgold (Harvard), traz três fases importantes: a unificação das informações acumuladas no dia; a assimilação das informações; e a abstração das mesmas. O sono promove a solução de problemas abstratos por meio de inferências.

A intuição salva, principalmente em momentos de perigo. Mas se isso bastasse o mundo seria dominado pelos animais, mais fortes e ágeis que os humanos. Assim, o bate-pronto das percepções não deve presidir o entendimento de problemas graves.

A reflexão que tento provocar refere-se à nossa realidade. Forças extraordinárias estão mudando o estado das coisas no Brasil. Para o bem e para o mal. A percepção a construir deve partir de uma análise reflexiva sobre o momento, as instituições, as leis e sobre o país que queremos.

É preciso levar em conta alguns pontos essenciais, tais como o império da lei, o estado de direito, o princípio do contraditório, a presunção da inocência. Devemos sobretudo considerar que no passado milhares e milhares de pessoas foram torturadas e morreram em defesa dos princípios que aqui menciono. Na dúvida, devemos olhar para a Constituição. Se não nos agrada, vamos à luta para mudá-la.
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Murillo de Aragãoé cientista político

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