quinta-feira, 8 de setembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Manifestações foram mais do mesmo e não ‘Dia D’

Valor Econômico

Atos políticos de ontem não parecem ter muita força para acelerar a ascensão de Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro nada fez para as comemorações do bicentenário da Independência do Brasil que não fosse em proveito próprio, eleitoral. Bolsonaro reduz a nação a sua pessoa e os interesses nacionais aos de sua família e de sua facção radical antidemocrática. Ontem, em Brasília, o presidente deixou de lado a data e saiu à caça de votos, além de puxar um inacreditável coro autocongratulatório de “imbrochável”. Em 200 anos de festejos alusivos à data nunca se viu nada igual. O bicentenário serviu de paisagem para novas pregações eleitorais do presidente, que continua atrás nas pesquisas e pode ser derrotado nas eleições de outubro.

Institucionalmente, para os festejos não moveram uma palha os ministérios da Educação e a rebaixada secretaria da Cultura, sucessivamente ocupados por ideólogos incompetentes. Nada se poderia esperar de uma pasta que teve um ministro que disse que os brasileiros eram “canibais”, quando queria dizer que eram cleptomaníacos (o que não melhora as coisas), e um secretário que imita o nazista Goebbels.

Bolsonaro convocou seus apoiadores, que o atenderam em manifestações pacíficas e concorridas, especialmente em Brasília, para, “pela última vez”, declarar um basta às ações do Supremo Tribunal Federal, em defesa da “liberdade”, na versão peculiar do presidente - ausência de limites para os que pensam como ele. Bolsonaro completou em entrevista à TV Brasil, no início do dia, seu ideário de sempre: contra a liberação das drogas, a legalização do aborto e a ideologia de gênero. Mais tarde, deu uma estocada indireta no STF, citou datas em que houve crises institucionais, disse que “a história pode se repetir”, mas com final feliz: “O bem sempre venceu o mal”. E, claro, atacou diversas vezes seu rival Lula e o PT.

O problema é que o presidente é uma crise institucional ambulante. Na véspera do 7 de setembro, Bolsonaro contrariou o dispositivo de segurança negociado entre o Supremo e o governo do Distrito Federal e permitiu a entrada de caminhões na Esplanada dos Ministérios. No ano passado seus partidários tentaram invadir o Supremo, estimulados pelas agressões do presidente à instituição.

O presidente convidou para o palanque da solenidade os empresários que passaram a ser investigados pelo STF por terem defendido um golpe militar em conversas no WhatsApp. Bolsonaro, pelo que já disse, não discorda deles. Na mesma data, em 2021, afirmou: “Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que estaríamos vivendo no Brasil”.

Se o presidente esperava que a arregimentação eleitoral de ontem representasse um salto de qualidade para sua tentativa de permanecer no poder, seja de que forma for, pode ter se frustrado. As manifestações mostraram o esperado: o presidente tem capacidade de mobilização importante, expresso também nas pesquisas com um eleitorado fiel, ao redor de 30%. No entanto, o tom de ultimato das convocações contrastaram com a atitude de Bolsonaro, mais comedido do que é em geral, ainda que desabusado como sempre.

O cálculo político recomendou moderação, porque nas muitas vezes que o presidente perdeu as estribeiras, ele não ganhou mais eleitores, mas perdeu. Por outro lado, discursos moderadamente agressivos, como os de ontem, se não desagradam a sua base fiel, que o apoia seja o que quer que diga, tem baixo poder de persuasão sobre o eleitorado não bolsonarista. Eles expõem o vazio de propostas e a falta de enfoques positivos. Bolsonaro não tem muito mais a vender que ideologia, que é parte do jogo, mas não todo o jogo, eleitoral.

Os bilhões de reais despejados em programas de assistência e de redução dos preços dos combustíveis, eleitoreiros do começo ao fim, podem empurrar Bolsonaro nas pesquisas, mas até agora isso tem acontecido de forma lenta, em desacordo com o calendário, que anda rápido. As manifestações de ontem não parecem ter muita força para acelerar sua ascensão.

Mas o que não ocorreu também foi relevante para os planos de Bolsonaro: a participação dos presidentes da Câmara e do Senado nas solenidades. Arthur Lira (PP), seu fiador na Câmara, foi fazer campanha em Alagoas. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse que irá participar hoje de uma solenidade “verdadeiramente cívica” no parlamento. Afastaram-se das manipulações eleitorais do presidente, algo que mais à frente pode se revelar como indiferença em relação a seu destino, se a perspectiva de permanecer no poder não surgir em breve para Bolsonaro.

TSE tem o dever de investigar violações em atos bolsonaristas

O Globo

Presidente confundiu papéis de candidato e chefe de Estado ao usar Bicentenário para fazer comícios

O teor e o tom das manifestações bolsonaristas em Brasília e no Rio de Janeiro não deixam dúvida: o presidente da República, Jair Bolsonaro, usou um espaço público que deveria ser dedicado a celebrar o Bicentenário da Independência do Brasil para fazer comícios em sua campanha à reeleição. Foi inequívoca a confusão dos papéis de chefe de Estado e de político em busca de votos.

É verdade que a campanha dele tomou certos cuidados. Depois de assistir ao desfile militar no palanque oficial em Brasília, Bolsonaro subiu num trio elétrico privado para — ao lado de um empresário investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da primeira-dama, do vice Hamilton Mourão, do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo, e de outras autoridades— pedir votos, falar mal dos adversários, atacar pesquisas que não lhe agradam e proferir um discurso de nítido conteúdo eleitoral. No Rio, também discursou de um palanque privado, depois de interromper o trânsito na orla da Zona Sul para uma “motociata” até Copacabana.

Mas os cuidados tomados pela campanha de Bolsonaro foram meramente cosméticos diante do que se viu e se ouviu. Ele estava acompanhado de candidatos ao governo, à Vice-Presidência e até de um candidato cassado ao Senado. O palco tradicional dos exercícios militares em homenagem à Independência foi transferido do Centro do Rio para Copacabana em razão do interesse da campanha.

A transmissão sonora deficiente no Rio não impediu que Bolsonaro fosse aclamado por uma multidão, como antes em Brasília. Quem saiu às ruas para assistir ao desfile de blindados e bandas militares, para apreciar a parada naval e as piruetas da Esquadrilha da Fumaça não viu uma celebração em homenagem aos 200 anos da Independência, mas foi engolfado por manifestações políticas, comícios em apoio à candidatura Bolsonaro, cujo objetivo evidente era fornecer imagens de impacto que pudessem ser usadas em sua campanha.

Não há sinal mais eloquente do conteúdo eleitoral das manifestações do que a ausência dos chefes de todos os demais Poderes na celebração em Brasília. Os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e do STF, Luiz Fux, não deram as caras. Ninguém que tivesse uma reputação institucional a defender compareceu. Apenas ministros, políticos e empresários ligados ao governo emprestaram seu apoio.

Juristas enxergaram nos atos e nas palavras de Bolsonaro abuso de poder, violação a leis eleitorais e à Constituição. Cabe agora ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e aos procuradores eleitorais investigar o financiamento, o planejamento e a realização dos comícios de ontem para decidir se leis foram violadas pelo candidato à reeleição e, com base nelas, estabelecer as punições devidas.

É um alento que não tenha havido violência como muitos temiam. Nem ataques a ministros do Supremo ou ameaças golpistas comparáveis às de 7 de Setembro do ano passado. Mas isso não serve de atenuante. O fato de Bolsonaro não ter sido reincidente nos absurdos do passado não significa que não possa ter cometido novas infrações.

Perspectiva de recessão na Europa é preocupação para todo o planeta

O Globo

Corte no fornecimento de gás russo aumenta custo da energia, alimenta inflação e induz alta maior de juros

A interrupção do fornecimento de gás russo pelo gasoduto Nord Stream, que liga o Mar Negro à Alemanha, era uma consequência previsível do conflito que se estende na Ucrânia há seis meses sem perspectiva de acabar. Fornecedora de 40% do gás consumido na Europa Ocidental, a Rússia atinge em cheio com a medida o aquecimento residencial, a indústria e a agricultura. Também contribui para a disparada no preço da energia e para a alta da inflação. O megawatt-hora, que antes da pandemia custava ao redor de € 60, já passou dos € 290.

Não é à toa que o tema no topo da agenda da nova primeira-ministra britânica, Liz Truss, seja o congelamento de tarifas para o consumidor final. Por toda a Europa, gás e petróleo mais caros provocaram um choque inflacionário que tem sido enfrentado pelos bancos centrais com alta dos juros e a perspectiva inevitável de uma recessão. Na contagem regressiva para o fim do verão europeu, o humor recessivo já contaminou os mercados. Má notícia para o mundo, pois as duas maiores economias, Estados Unidos e China, também enfrentam dificuldades.

Diante de uma inflação em alta na Zona do Euro (9,1% em agosto), o Banco Central Europeu (BCE) aumentou a taxa de juros pela primeira vez em 11 anos. O efeito recessivo da combinação de energia cara e juros em alta é incontornável. Analistas do banco JP Morgan Chase preveem para este ano uma queda de 2% no PIB na Zona do Euro, com os PIBs francês e alemão caindo 2,5%, e o italiano 3%.

Vários indicadores já traduzem o desaquecimento europeu. O índice PMI, calculado pela agência Standard & Poor’s para acompanhar a compra de insumos pela indústria e pelo setor de serviços, caiu em agosto 0,9 ponto percentual e ficou pelo segundo mês abaixo de 50, nível que separa o crescimento da retração econômica. A indústria está com os mais elevados estoques dos últimos 25 anos. Para a S & P, neste terceiro trimestre a economia europeia já entrou na zona do desaquecimento rumo à recessão. É questão de tempo para a taxa de desemprego, hoje em 6,6%, começar a subir.

A indústria de fertilizantes tem sido uma das mais atingidas pelo uso geopolítico que a Rússia faz do fornecimento de gás. Segundo a associação europeia do setor, 70% da sua produção sofre o impacto da alta do gás, cujo efeito chegará ao campo, resultando em encarecimento dos alimentos e ainda mais inflação.

Se nada acontecer na guerra na Ucrânia ou no Kremlin que faça a Rússia restabelecer o abastecimento de gás à Europa aos níveis normais, o aquecimento da população no próximo inverno dependerá do compromisso assumido em julho pela União Europeia de promover uma redução voluntária de 15% no consumo de gás até março de 2023. Pelo quadro que se desenha, o clima recessivo se estenderá para além do ano de 2022. A desaceleração afetará não apenas a Europa, mas também China e Estados Unidos. Um cenário nada favorável à economia brasileira.

Data apequenada

Folha de S. Paulo

Menos agressivo contra instituições, Bolsonaro politiza festa da Independência

Ao usar as celebrações do bicentenário da Independência como palanque da sua campanha à reeleição, Jair Bolsonaro (PL) apequenou as festividades a ponto de transformá-las num espetáculo indigno.

Numa data que requeria reflexão sobre os valores que unem a nação, os progressos alcançados em dois séculos e os desafios à sua frente, o presidente optou por fazer provocações, proferir grosserias e atacar adversários.

Pela manhã, falando à multidão que se reuniu para ouvi-lo após o desfile oficial em Brasília, ele atingiu o ponto mais baixo do dia ao fazer comentários machistas e se vangloriar da própria virilidade depois de elogiar sua mulher.

À tarde, no alto de um carro de som na praia de Copacabana, no Rio, chamou de quadrilheiro o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), líder da corrida presidencial, e disse que a esquerda precisa ser extirpada da vida pública.

Quanto ao Supremo Tribunal Federal, o tom foi mais ameno do que o adotado nas manifestações de 7 de Setembro do ano passado, quando ofendeu ministros e ameaçou descumprir suas decisões.

Entretanto nos eventos houve faixas com mensagens golpistas de apoiadores e estímulo às vaias ao tribunal nos dois comícios. Ao lado do mandatário nos dois palanques estava um empresário investigado por ordem do STF.

Em Brasília e no Rio, Bolsonaro prometeu enquadrar os que jogam fora das balizas fixadas pela Constituição se for reeleito, mas em nenhum momento explicou o que exatamente faria ou nomeou os alvos da bravata.

Os presidentes do Supremo, da Câmara dos Deputados e do Senado não estavam lá para ouvir. Os três deixaram de lado o protocolo e ficaram longe do palanque brasiliense, expressando silenciosamente seu desagrado com a politização do evento oficial.

Se o objetivo de Bolsonaro era exibir força política e coletar imagens grandiosas para a propaganda eleitoral, ele decerto foi alcançado. Os limites da sua estratégia ficaram evidentes, porém, no tom e no conteúdo dos seus discursos.

Ele caracterizou a disputa eleitoral como uma batalha do bem contra o mal e preencheu suas falas com diversos acenos aos segmentos mais fiéis do seu eleitorado, porém não dirigiu nenhuma palavra aos eleitores que precisa conquistar para reduzir a distância que o separa de Lula.

Não houve também nenhuma menção às urnas eletrônicas, que até outro dia eram objeto de uma campanha de descrédito agressiva movida pelo presidente. Quase estacionado nas pesquisas, a poucas semanas do primeiro turno da votação, as opções de Bolsonaro parecem estar se esgotando.

A líder e o inverno

Folha de S. Paulo

Nova primeira-ministra do Reino Unido, Liz Truss, assume em cenário adverso

A lista de problemas com os quais Liz Truss, a nova primeira-ministra britânica, terá de lidar a partir de agora não é pequena nem simples.

O mais premente é o preço da energia. As contas de eletricidade e gás dos britânicos devem subir 80%, por causa, principalmente, da guerra na Ucrânia. A partir do próximo mês, quando os aquecedores serão ligados, algumas famílias menos abonadas terão de escolher entre calor e comida.

Somam-se a essa dificuldade uma rara inflação em dois dígitos e uma recessão econômica iminente.

Ademais, Truss assume a cadeira de forma evidentemente legítima, mas sem ter recebido a chancela da maioria dos britânicos nas urnas.

Ela substitui Boris Johnson, que renunciou ao posto. Foi escolhida por meio de um processo interno do Partido Conservador, no qual tiveram voz e voto apenas parlamentares da legenda, na primeira fase, e seus filiados, na etapa final —um colégio de cerca de 170 mil pessoas, enquanto a população do Reino Unido é de 67 milhões.

Assumir em situações adversas não é necessariamente sinônimo de insucesso político. Não foram poucos os líderes que se consagraram em parte por terem sido capazes de contornar dificuldades.

Um deles foi a também primeira-ministra Margaret Thatcher, na qual Truss se inspira e cujo modelo econômico liberal pretende reeditar. Fala-se em cortar impostos para estimular o crescimento e facilitar investimentos na produção de energia, incluindo a nuclear.

A grande dúvida é se essa fórmula de Estado menor, que raramente produz resultados imediatos, funcionará num contexto em que mais pessoas precisam da ajuda do Estado e têm pressa. O inverno, afinal, está chegando.

A nova governante indicou que não quer transformar subsídios na principal política de enfrentamento da crise, mas já se noticia que haverá dinheiro público para baratear o consumo de energia.

No front externo, Truss, que é a terceira mulher a assumir o governo britânico (todas conservadoras), diz que se manterá firme na ajuda à Ucrânia e não dá indícios de que procurará um relacionamento menos conturbado com os ex-sócios europeus.

Numa nota de curiosidade, ela nasceu numa família de esquerda. Quando criança, era levada pela mãe a manifestações contra Thatcher. Mudou de lado após passar pela Universidade de Oxford. A mãe a perdoou, mas o pai, não.

Bolsonaro envergonha o País no Bicentenário

O Estado de S. Paulo

Bolsonaro fez de tudo, exceto homenagear o Bicentenário. Aproveitou uma festa cívica para fazer descarada campanha eleitoral, usando recursos públicos e abusando de obscenidades

Era para ser um dia de grande festa cívica. O País comemorava o Bicentenário da Independência. Mas o presidente da República preferiu fazer campanha eleitoral, em uma lamentável confusão de âmbitos, com utilização político-partidária de recursos públicos e profusão de obscenidades. Jair Bolsonaro imprimiu ao 7 de Setembro o exato caráter de seu governo: uma administração que divide, envergonha e dá de ombros à lei e à moralidade.

Ontem, Jair Bolsonaro fez de tudo, exceto homenagear o Bicentenário. Não tem a mínima ideia do que significa ser chefe de Estado. No evento em Brasília, em dado momento, escanteou o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, para colocar a seu lado, em posição de destaque, Luciano Hang, bolsonarista de alta estirpe. Sem nenhum pudor, imperou o escárnio com a história do País.

Em vez de festa da Independência, o País assistiu ontem a atos de campanha de reeleição no mais genuíno estilo bolsonarista. Jair Bolsonaro não propôs nada nem se comprometeu com algum programa de governo. Fez grosseria pública, chegando a comparar sua mulher, Michelle, com a do ex-presidente Lula. Eis o nível daquele que diz defender a família brasileira. Entende-se bem por que é tão alta sua taxa de rejeição entre as mulheres. Jair Bolsonaro simplesmente provoca asco. Para que não houvesse dúvida do seu caráter, ainda puxou um indecoroso coro a respeito de sua alardeada virilidade. Em respeito ao leitor, não reproduziremos aqui o que disse o presidente, mas é o caso de perguntar: há limites para este senhor?

Tal é a sua desfaçatez que, no meio de obscenidades, Jair Bolsonaro ainda ousou recorrer ao discurso da “luta do bem contra o mal”, na manipuladora disjuntiva que só serve a quem não tem nada a apresentar ao País. Jair Bolsonaro encarna o bem? Ora, o verdadeiro bem não é mal-educado, não causa vergonha ao País e, nunca é demais lembrar, não manipula milhões em dinheiro vivo na compra de imóveis. O candidato que deseja se apresentar ao eleitor como o grande herói do combate à corrupção até agora não explicou a origem do dinheiro usado nos negócios imobiliários da família nem esclareceu as suspeitas de rachadinha que envolvem quase todo o clã Bolsonaro e seus agregados.

O mais triste do dia de ontem é que Jair Bolsonaro fez tudo isso e, a rigor, nada representou nenhuma novidade. Ele fez exatamente o que vem fazendo desde os tempos do Exército, quando ameaçava colocar bombas em quartéis e desrespeitava a farda e a hierarquia militares. Tanto é assim que, em um evento cívico da mais alta importância – a comemoração dos 200 anos da Independência do Brasil –, nem os presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, tampouco o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, estiveram presentes. Eles certamente anteviram o papelão de Bolsonaro e não quiseram passar constrangimento. Evitaram endossar as atitudes e as falas de um presidente da República que dá insistentes mostras de que nada entendeu sobre o cargo que ocupa e suas responsabilidades.

É preciso advertir, no entanto, que ontem o presidente Bolsonaro não apenas desrespeitou a dignidade do cargo e a natureza da festa cívica – o que por si só é lamentável. Não foi um deslize de quem é indiferente à civilidade e aos bons modos. Jair Bolsonaro infringiu a lei, seja porque se valeu da estrutura pública de um evento cívico para fazer campanha eleitoral, seja porque tentou de todas as formas usar o prestígio das Forças Armadas em proveito político-partidário.

Não há dúvida – e assim registram as pesquisas de opinião que Jair Bolsonaro tanto desacredita – que uma parcela significativa da população o apoia. Em diversas cidades, muita gente foi às ruas manifestar sua adesão ao bolsonarismo. O fato, no entanto, é que, seja qual for o tamanho do apoio popular, nada autoriza a infração da lei. Jair Bolsonaro não pode valer-se do cargo e do dinheiro do contribuinte para fazer campanha eleitoral. Em respeito ao regime democrático e às liberdades políticas, há limites civilizatórios e legais. A escandalosa violação das leis eleitorais promovida por Bolsonaro demanda uma punição exemplar.

Privilégios são a antítese da República

O Estado de S. Paulo

Para os trabalhadores do setor privado, férias duram 30 dias. O STF acertou ao barrar férias de 60 dias para advogados da União. Falta estender o entendimento a todo o serviço público

O Supremo Tribunal Federal (STF) fez bem ao firmar a tese segundo a qual “os advogados da União não possuem direito a férias de 60 (sessenta) dias, nos termos da legislação constitucional e infraconstitucional vigentes”. A decisão, por unanimidade, tem repercussão geral, ou seja, deve ser seguida em casos semelhantes por todos os tribunais do País.

Como guardião da Constituição, o STF fará ainda melhor no dia que estender esse entendimento a todas as categorias profissionais do serviço público, nos Três Poderes, sem distinções. Afinal, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, viga mestra do regime republicano, não se coaduna em hipótese alguma com a existência de castas nem privilégios de qualquer natureza, seja para indivíduos, seja para grupos. Como bem sabem os trabalhadores do setor privado, e os de outras categorias menos apadroadas do setor público, o período de descanso anual remunerado dura 30 dias, no máximo.

A decisão foi tomada no julgamento de um recurso extraordinário impetrado pela Associação Nacional dos Advogados da União (Anauni) contra um acórdão do Tribunal Regional Federal da 4.a Região (TRF-4), que julgara não haver inconstitucionalidade no dispositivo da Lei n.º 9.527/1997 que limita as férias anuais dos advogados da União a 30 dias. A Anauni sustentava que uma lei de 1953, que os equiparou aos membros do Ministério Público, teria sido recepcionada pela nova ordem constitucional de 1988. Os ministros do STF julgaram que não, de modo que para os advogados da União vale o mesmo período de 30 dias de férias que vale para os procuradores federais e procuradores da Fazenda Nacional, haja vista que todos são integrantes da mesma Advocacia-Geral da União (AGU).

À luz do melhor interesse público, de fato, os advogados da União não deveriam ser equiparados aos promotores e procuradores de Justiça. Ao contrário. O Ministério Público, assim como a magistratura ou quaisquer outras categorias do serviço público, é que deveria ser submetido às mesmas regras às quais se submete a esmagadora maioria dos trabalhadores brasileiros, por uma elementar questão de isonomia.

Mas, ao longo de muitas décadas, consolidou-se no Brasil um ethos distorcido sobre a natureza do serviço público. É de justiça reconhecer que há muitos servidores vocacionados e genuinamente imbuídos de espírito público atuando em todo o País. Não faltam exemplos de bons serviços prestados à população nas mais diversas áreas da administração pública por profissionais devotados a seus ofícios. Porém, também há servidores, em especial os que compõem a elite do funcionalismo público, que enxergam seus privilégios – que, obviamente, não qualificam como tais – como recompensa por seus méritos individuais que garantiram a aprovação em concursos muitíssimo disputados. Entre essa elite de servidores, destacam-se os membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e da própria AGU.

Essa excrescência, que certa vez a economista Ana Carla Abrão, com argúcia, batizou de “privilégios adquiridos” em artigo publicado por este jornal, precisa acabar. Ou bem somos uma República ou uns seguirão sendo “mais iguais” do que outros perante a lei. A manutenção desses privilégios, materializados em toda sorte de “penduricalhos” para determinadas categorias funcionais, não é explicável pela legislação que os autoriza, mas pela capacidade de organização e pelo poder de barganha que certas corporações do serviço público são capazes de exercer sobre o Congresso e outras instâncias decisórias. Esse lobby chega ao paroxismo em anos eleitorais, quando não raro é exercido como verdadeira chantagem.

Ademais, há uma implicação econômica na concessão de férias de 60 dias a determinados servidores públicos. Haja criatividade para desfrutar de dois meses de ócio. É bastante comum, portanto, que os agraciados pelo privilégio acumulem longos períodos de férias não gozadas durante a carreira, o que se reverte em indenizações que podem chegar a milhões de reais ao tempo da aposentadoria – que, é bom lembrar, já é extremamente generosa para esses servidores quando comparada aos benefícios que são pagos pelo INSS aos reles mortais.

Desmonte de políticas para mulheres

O Estado de S. Paulo

Programa citado por Bolsonaro como exemplo de ação positiva de seu governo para as mulheres está à míngua

O debate presidencial da Band proporcionou um raro protagonismo para a pauta feminina e ofereceu aos eleitores a oportunidade de avaliar a distância entre o que os candidatos prometem quando estão em campanha e o que efetivamente fazem quando assumem o mandato. Um bom exemplo é a Casa da Mulher Brasileira, política pública criada no governo Dilma Rousseff que reúne, em um único lugar, toda a estrutura necessária para interromper um ciclo de violência doméstica. Com a presença de assistentes sociais, psicólogos, defensores públicos, promotores, juízes e guardas municipais, o programa garante a emissão imediata de medidas protetivas para o enfrentamento de um problema crônico da sociedade. Sua existência se mostra indispensável em um país que registrou, em 2021, ao menos uma chamada por minuto para o 190 com denúncias de agressões domésticas, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Sob Jair Bolsonaro, a Casa da Mulher Brasileira, como muitas outras políticas públicas, foi submetida ao desmonte. Dos R$ 129 milhões reservados ao programa desde 2019, apenas R$ 15,3 milhões foram executados, ou 12% do total. Como mostrou o Estadão, apenas R$ 7,6 milhões foram empenhados neste ano, valor insuficiente para uma unidade de capital, de acordo com o próprio Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Diante do destrutivo histórico de atuação da administração federal, as informações não surpreendem. O que espanta, neste caso, é o desespero de Bolsonaro, que mencionou o programa como exemplo de sua preocupação com a temática feminina a despeito de todas as evidências da absoluta falta de prioridade que seu governo deu a qualquer assunto de interesse das mulheres.

Exceto pelo período eleitoral, há que reconhecer a sinceridade de Bolsonaro quando trata da pauta feminina – ao menos nestes momentos ele abandona a dissonância cognitiva e age de acordo com suas mais profundas crenças. Um exemplo que é a própria expressão da mesquinharia misógina foi o veto ao programa de combate à pobreza menstrual, que previa a distribuição gratuita de absorventes para meninas de baixa renda em escolas públicas, presidiárias e mulheres em situação de rua. É impressionante que um presidente disposto a reservar R$ 19,4 bilhões para emendas de relator em 2023 não tenha tido pudor de alegar respeito às regras fiscais e contrariedade ao interesse público ao rejeitar uma proposta com custo anual de R$ 84,5 milhões, menos de 0,5% do valor do orçamento secreto. Tão estarrecedor quanto a atitude de Bolsonaro foi o fato de que os parlamentares tenham levado cinco meses para derrubar esse veto e que isso só tenha ocorrido diante da pressão da opinião pública. Tudo isso reforça a necessidade de os eleitores – e, sobretudo, as eleitoras – escolherem muito bem quem vai representar seus interesses não apenas no Executivo, mas também no Legislativo. No Congresso, a eloquente crueza de Bolsonaro, muitas vezes, pode ser substituída por uma constrangedora e silenciosa omissão.

 

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