Editoriais / Opiniões
Manifestações foram mais do mesmo e não
‘Dia D’
Valor Econômico
Atos políticos de ontem não parecem ter
muita força para acelerar a ascensão de Bolsonaro
O presidente Jair Bolsonaro nada fez para
as comemorações do bicentenário da Independência do Brasil que não fosse em
proveito próprio, eleitoral. Bolsonaro reduz a nação a sua pessoa e os
interesses nacionais aos de sua família e de sua facção radical
antidemocrática. Ontem, em Brasília, o presidente deixou de lado a data e saiu à
caça de votos, além de puxar um inacreditável coro autocongratulatório de
“imbrochável”. Em 200 anos de festejos alusivos à data nunca se viu nada igual.
O bicentenário serviu de paisagem para novas pregações eleitorais do
presidente, que continua atrás nas pesquisas e pode ser derrotado nas eleições
de outubro.
Institucionalmente, para os festejos não
moveram uma palha os ministérios da Educação e a rebaixada secretaria da
Cultura, sucessivamente ocupados por ideólogos incompetentes. Nada se poderia
esperar de uma pasta que teve um ministro que disse que os brasileiros eram
“canibais”, quando queria dizer que eram cleptomaníacos (o que não melhora as
coisas), e um secretário que imita o nazista Goebbels.
Bolsonaro convocou seus apoiadores, que o atenderam em manifestações pacíficas e concorridas, especialmente em Brasília, para, “pela última vez”, declarar um basta às ações do Supremo Tribunal Federal, em defesa da “liberdade”, na versão peculiar do presidente - ausência de limites para os que pensam como ele. Bolsonaro completou em entrevista à TV Brasil, no início do dia, seu ideário de sempre: contra a liberação das drogas, a legalização do aborto e a ideologia de gênero. Mais tarde, deu uma estocada indireta no STF, citou datas em que houve crises institucionais, disse que “a história pode se repetir”, mas com final feliz: “O bem sempre venceu o mal”. E, claro, atacou diversas vezes seu rival Lula e o PT.
O problema é que o presidente é uma crise
institucional ambulante. Na véspera do 7 de setembro, Bolsonaro contrariou o
dispositivo de segurança negociado entre o Supremo e o governo do Distrito
Federal e permitiu a entrada de caminhões na Esplanada dos Ministérios. No ano
passado seus partidários tentaram invadir o Supremo, estimulados pelas
agressões do presidente à instituição.
O presidente convidou para o palanque da
solenidade os empresários que passaram a ser investigados pelo STF por terem
defendido um golpe militar em conversas no WhatsApp. Bolsonaro, pelo que já
disse, não discorda deles. Na mesma data, em 2021, afirmou: “Se tudo tivesse
que depender de mim, não seria este o regime que estaríamos vivendo no Brasil”.
Se o presidente esperava que a
arregimentação eleitoral de ontem representasse um salto de qualidade para sua
tentativa de permanecer no poder, seja de que forma for, pode ter se frustrado.
As manifestações mostraram o esperado: o presidente tem capacidade de
mobilização importante, expresso também nas pesquisas com um eleitorado fiel,
ao redor de 30%. No entanto, o tom de ultimato das convocações contrastaram com
a atitude de Bolsonaro, mais comedido do que é em geral, ainda que desabusado
como sempre.
O cálculo político recomendou moderação,
porque nas muitas vezes que o presidente perdeu as estribeiras, ele não ganhou
mais eleitores, mas perdeu. Por outro lado, discursos moderadamente agressivos,
como os de ontem, se não desagradam a sua base fiel, que o apoia seja o que
quer que diga, tem baixo poder de persuasão sobre o eleitorado não
bolsonarista. Eles expõem o vazio de propostas e a falta de enfoques positivos.
Bolsonaro não tem muito mais a vender que ideologia, que é parte do jogo, mas
não todo o jogo, eleitoral.
Os bilhões de reais despejados em programas
de assistência e de redução dos preços dos combustíveis, eleitoreiros do começo
ao fim, podem empurrar Bolsonaro nas pesquisas, mas até agora isso tem
acontecido de forma lenta, em desacordo com o calendário, que anda rápido. As
manifestações de ontem não parecem ter muita força para acelerar sua ascensão.
Mas o que não ocorreu também foi relevante para os planos de Bolsonaro: a participação dos presidentes da Câmara e do Senado nas solenidades. Arthur Lira (PP), seu fiador na Câmara, foi fazer campanha em Alagoas. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse que irá participar hoje de uma solenidade “verdadeiramente cívica” no parlamento. Afastaram-se das manipulações eleitorais do presidente, algo que mais à frente pode se revelar como indiferença em relação a seu destino, se a perspectiva de permanecer no poder não surgir em breve para Bolsonaro.
TSE tem o dever de investigar violações em
atos bolsonaristas
O Globo
Presidente confundiu papéis de candidato e
chefe de Estado ao usar Bicentenário para fazer comícios
O teor e o tom das manifestações
bolsonaristas em Brasília e
no Rio de Janeiro não deixam dúvida: o presidente da República, Jair
Bolsonaro, usou um espaço público que deveria ser dedicado a
celebrar o Bicentenário da Independência do Brasil para fazer comícios em sua
campanha à reeleição. Foi inequívoca a confusão dos papéis de chefe de Estado e
de político em busca de votos.
É verdade que a campanha dele tomou certos
cuidados. Depois de assistir ao desfile militar no palanque oficial em
Brasília, Bolsonaro subiu num trio elétrico privado para — ao lado de um
empresário investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF),
da primeira-dama, do vice Hamilton Mourão, do presidente de Portugal, Marcelo
Rebelo, e de outras autoridades— pedir votos, falar mal dos adversários, atacar
pesquisas que não lhe agradam e proferir um discurso de nítido conteúdo
eleitoral. No Rio, também discursou de um palanque privado, depois de
interromper o trânsito na orla da Zona Sul para uma “motociata” até Copacabana.
Mas os cuidados tomados pela campanha de Bolsonaro foram meramente cosméticos diante do que se viu e se ouviu. Ele estava acompanhado de candidatos ao governo, à Vice-Presidência e até de um candidato cassado ao Senado. O palco tradicional dos exercícios militares em homenagem à Independência foi transferido do Centro do Rio para Copacabana em razão do interesse da campanha.
A transmissão sonora deficiente no Rio não
impediu que Bolsonaro fosse aclamado por uma multidão, como antes em Brasília.
Quem saiu às ruas para assistir ao desfile de blindados e bandas militares,
para apreciar a parada naval e as piruetas da Esquadrilha da Fumaça não viu uma
celebração em homenagem aos 200 anos da Independência, mas foi engolfado por
manifestações políticas, comícios em apoio à candidatura Bolsonaro, cujo
objetivo evidente era fornecer imagens de impacto que pudessem ser usadas em
sua campanha.
Não há sinal mais eloquente do conteúdo
eleitoral das manifestações do que a ausência dos chefes de todos os demais
Poderes na celebração em Brasília. Os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
do Senado, Rodrigo
Pacheco (PSD-MG), e do STF, Luiz Fux,
não deram as caras. Ninguém que tivesse uma reputação institucional a defender
compareceu. Apenas ministros, políticos e empresários ligados ao governo
emprestaram seu apoio.
Juristas enxergaram nos atos e nas palavras
de Bolsonaro abuso de poder, violação a leis eleitorais e à Constituição. Cabe
agora ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
e aos procuradores eleitorais investigar o financiamento, o planejamento e a
realização dos comícios de ontem para decidir se leis foram violadas pelo
candidato à reeleição e, com base nelas, estabelecer as punições devidas.
É um alento que não tenha havido violência
como muitos temiam. Nem ataques a ministros do Supremo ou ameaças golpistas
comparáveis às de 7 de Setembro do ano passado. Mas isso não serve de
atenuante. O fato de Bolsonaro não ter sido reincidente nos absurdos do passado
não significa que não possa ter cometido novas infrações.
Perspectiva de recessão na Europa é
preocupação para todo o planeta
O Globo
Corte no fornecimento de gás russo aumenta
custo da energia, alimenta inflação e induz alta maior de juros
A interrupção do fornecimento de gás russo
pelo gasoduto Nord Stream, que liga o Mar Negro à Alemanha,
era uma consequência previsível do conflito que se estende na Ucrânia há
seis meses sem perspectiva de acabar. Fornecedora de 40% do gás consumido na
Europa Ocidental, a Rússia atinge em cheio
com a medida o aquecimento residencial, a indústria e a agricultura. Também
contribui para a disparada no preço da energia e para a alta da inflação. O
megawatt-hora, que antes da pandemia custava ao redor de € 60, já passou dos €
290.
Não é à toa que o tema no topo da agenda da
nova primeira-ministra britânica, Liz Truss, seja o congelamento de tarifas
para o consumidor final. Por toda a Europa, gás e petróleo mais caros
provocaram um choque inflacionário que tem sido enfrentado pelos bancos
centrais com alta dos juros e a perspectiva inevitável de uma recessão. Na
contagem regressiva para o fim do verão europeu, o humor recessivo já
contaminou os mercados. Má notícia para o mundo, pois as duas maiores
economias, Estados
Unidos e China, também enfrentam
dificuldades.
Diante de uma inflação em alta na Zona do
Euro (9,1% em agosto), o Banco Central Europeu (BCE) aumentou a taxa de juros
pela primeira vez em 11 anos. O efeito recessivo da combinação de energia cara
e juros em alta é incontornável. Analistas do banco JP Morgan Chase preveem
para este ano uma queda de 2% no PIB na Zona do Euro, com os PIBs francês e
alemão caindo 2,5%, e o italiano 3%.
Vários indicadores já traduzem o
desaquecimento europeu. O índice PMI, calculado pela agência Standard &
Poor’s para acompanhar a compra de insumos pela indústria e pelo setor de
serviços, caiu em agosto 0,9 ponto percentual e ficou pelo segundo mês abaixo
de 50, nível que separa o crescimento da retração econômica. A indústria está
com os mais elevados estoques dos últimos 25 anos. Para a S & P, neste
terceiro trimestre a economia europeia já entrou na zona do desaquecimento rumo
à recessão. É questão de tempo para a taxa de desemprego, hoje em 6,6%, começar
a subir.
A indústria de fertilizantes tem sido uma
das mais atingidas pelo uso geopolítico que a Rússia faz do fornecimento de
gás. Segundo a associação europeia do setor, 70% da sua produção sofre o
impacto da alta do gás, cujo efeito chegará ao campo, resultando em
encarecimento dos alimentos e ainda mais inflação.
Se nada acontecer na guerra na Ucrânia ou no Kremlin que faça a Rússia restabelecer o abastecimento de gás à Europa aos níveis normais, o aquecimento da população no próximo inverno dependerá do compromisso assumido em julho pela União Europeia de promover uma redução voluntária de 15% no consumo de gás até março de 2023. Pelo quadro que se desenha, o clima recessivo se estenderá para além do ano de 2022. A desaceleração afetará não apenas a Europa, mas também China e Estados Unidos. Um cenário nada favorável à economia brasileira.
Data apequenada
Folha de S. Paulo
Menos agressivo contra instituições,
Bolsonaro politiza festa da Independência
Ao usar as celebrações do bicentenário da
Independência como palanque da sua campanha à reeleição, Jair Bolsonaro (PL)
apequenou as festividades a ponto de transformá-las num espetáculo indigno.
Numa data que requeria reflexão sobre os
valores que unem a nação, os progressos alcançados em dois séculos e os
desafios à sua frente, o presidente optou por fazer provocações, proferir
grosserias e atacar adversários.
Pela manhã, falando à multidão que se
reuniu para ouvi-lo após o desfile oficial em Brasília, ele atingiu o
ponto mais baixo do dia ao fazer comentários machistas e se
vangloriar da própria virilidade depois de elogiar sua mulher.
À tarde, no alto de um carro de som na
praia de Copacabana, no Rio, chamou de
quadrilheiro o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), líder
da corrida presidencial, e disse que a esquerda precisa ser extirpada da vida
pública.
Quanto ao Supremo Tribunal Federal, o tom
foi mais ameno do que o adotado nas manifestações de 7 de Setembro do ano
passado, quando ofendeu ministros e ameaçou descumprir suas decisões.
Entretanto nos eventos houve faixas com
mensagens golpistas de apoiadores e estímulo às vaias ao
tribunal nos dois comícios. Ao lado do mandatário nos dois palanques estava um
empresário investigado por ordem do STF.
Em Brasília e no Rio, Bolsonaro prometeu
enquadrar os que jogam fora das balizas fixadas pela Constituição se for
reeleito, mas em nenhum momento explicou o que exatamente faria ou nomeou os
alvos da bravata.
Os presidentes do Supremo, da Câmara dos
Deputados e do Senado não estavam lá para ouvir. Os três deixaram de lado o
protocolo e ficaram longe do palanque brasiliense, expressando silenciosamente
seu desagrado com a politização do evento oficial.
Se o objetivo de Bolsonaro era exibir força
política e coletar imagens grandiosas para a propaganda eleitoral, ele decerto
foi alcançado. Os limites da sua estratégia ficaram evidentes, porém, no tom e
no conteúdo dos seus discursos.
Ele caracterizou a disputa eleitoral como
uma batalha do bem contra o mal e preencheu suas falas com diversos acenos aos
segmentos mais fiéis do seu eleitorado, porém não dirigiu nenhuma palavra aos
eleitores que precisa conquistar para reduzir a distância que o separa de Lula.
Não houve também nenhuma menção às urnas
eletrônicas, que até outro dia eram objeto de uma campanha de descrédito
agressiva movida pelo presidente. Quase estacionado nas pesquisas, a poucas
semanas do primeiro turno da votação, as opções de Bolsonaro parecem estar se
esgotando.
A líder e o inverno
Folha de S. Paulo
Nova primeira-ministra do Reino Unido, Liz
Truss, assume em cenário adverso
A lista de problemas com os quais Liz
Truss, a nova primeira-ministra britânica, terá de lidar a partir de
agora não é pequena nem simples.
O mais premente é o preço da energia. As
contas de eletricidade e gás dos britânicos devem subir 80%, por causa,
principalmente, da guerra na Ucrânia. A partir do próximo mês, quando os
aquecedores serão ligados, algumas famílias menos abonadas terão de escolher
entre calor e comida.
Somam-se a essa dificuldade uma rara
inflação em dois dígitos e uma recessão econômica iminente.
Ademais, Truss assume a cadeira de forma
evidentemente legítima, mas sem ter recebido a chancela da maioria dos
britânicos nas urnas.
Ela substitui Boris Johnson, que renunciou
ao posto. Foi escolhida por meio de um processo interno do Partido Conservador,
no qual tiveram voz e voto apenas parlamentares da legenda, na primeira fase, e
seus filiados, na etapa final —um colégio de cerca de 170 mil pessoas, enquanto
a população do Reino Unido é de 67 milhões.
Assumir em situações adversas não é
necessariamente sinônimo de insucesso político. Não foram poucos os líderes que
se consagraram em parte por terem sido capazes de contornar dificuldades.
Um deles foi a também primeira-ministra
Margaret Thatcher, na qual Truss se inspira e cujo modelo econômico liberal
pretende reeditar. Fala-se em cortar impostos para estimular o crescimento e
facilitar investimentos na produção de energia, incluindo a nuclear.
A grande dúvida é se essa fórmula de Estado
menor, que raramente produz resultados imediatos, funcionará num contexto em
que mais pessoas precisam da ajuda do Estado e têm pressa. O inverno, afinal,
está chegando.
A nova governante indicou que não quer
transformar subsídios na principal política de enfrentamento da crise, mas já
se noticia que haverá dinheiro
público para baratear o consumo de energia.
No front externo, Truss, que é a terceira
mulher a assumir o governo britânico (todas conservadoras), diz que se manterá
firme na ajuda à Ucrânia e não dá indícios de que procurará um relacionamento
menos conturbado com os ex-sócios europeus.
Numa nota de curiosidade, ela nasceu numa família de esquerda. Quando criança, era levada pela mãe a manifestações contra Thatcher. Mudou de lado após passar pela Universidade de Oxford. A mãe a perdoou, mas o pai, não.
Bolsonaro envergonha o País no Bicentenário
O Estado de S. Paulo
Bolsonaro fez de tudo, exceto homenagear o Bicentenário. Aproveitou uma festa cívica para fazer descarada campanha eleitoral, usando recursos públicos e abusando de obscenidades
Era para ser um dia de grande festa cívica.
O País comemorava o Bicentenário da Independência. Mas o presidente da
República preferiu fazer campanha eleitoral, em uma lamentável confusão de
âmbitos, com utilização político-partidária de recursos públicos e profusão de
obscenidades. Jair Bolsonaro imprimiu ao 7 de Setembro o exato caráter de seu
governo: uma administração que divide, envergonha e dá de ombros à lei e à
moralidade.
Ontem, Jair Bolsonaro fez de tudo, exceto
homenagear o Bicentenário. Não tem a mínima ideia do que significa ser chefe de
Estado. No evento em Brasília, em dado momento, escanteou o presidente de
Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, para colocar a seu lado, em posição de
destaque, Luciano Hang, bolsonarista de alta estirpe. Sem nenhum pudor, imperou
o escárnio com a história do País.
Em vez de festa da Independência, o País
assistiu ontem a atos de campanha de reeleição no mais genuíno estilo
bolsonarista. Jair Bolsonaro não propôs nada nem se comprometeu com algum
programa de governo. Fez grosseria pública, chegando a comparar sua mulher,
Michelle, com a do ex-presidente Lula. Eis o nível daquele que diz defender a
família brasileira. Entende-se bem por que é tão alta sua taxa de rejeição
entre as mulheres. Jair Bolsonaro simplesmente provoca asco. Para que não
houvesse dúvida do seu caráter, ainda puxou um indecoroso coro a respeito de
sua alardeada virilidade. Em respeito ao leitor, não reproduziremos aqui o que
disse o presidente, mas é o caso de perguntar: há limites para este senhor?
Tal é a sua desfaçatez que, no meio de
obscenidades, Jair Bolsonaro ainda ousou recorrer ao discurso da “luta do bem
contra o mal”, na manipuladora disjuntiva que só serve a quem não tem nada a
apresentar ao País. Jair Bolsonaro encarna o bem? Ora, o verdadeiro bem não é
mal-educado, não causa vergonha ao País e, nunca é demais lembrar, não manipula
milhões em dinheiro vivo na compra de imóveis. O candidato que deseja se
apresentar ao eleitor como o grande herói do combate à corrupção até agora não
explicou a origem do dinheiro usado nos negócios imobiliários da família nem
esclareceu as suspeitas de rachadinha que envolvem quase todo o clã Bolsonaro e
seus agregados.
O mais triste do dia de ontem é que Jair
Bolsonaro fez tudo isso e, a rigor, nada representou nenhuma novidade. Ele fez
exatamente o que vem fazendo desde os tempos do Exército, quando ameaçava
colocar bombas em quartéis e desrespeitava a farda e a hierarquia militares.
Tanto é assim que, em um evento cívico da mais alta importância – a comemoração
dos 200 anos da Independência do Brasil –, nem os presidentes da Câmara e do
Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, tampouco o presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, estiveram presentes. Eles certamente
anteviram o papelão de Bolsonaro e não quiseram passar constrangimento.
Evitaram endossar as atitudes e as falas de um presidente da República que dá
insistentes mostras de que nada entendeu sobre o cargo que ocupa e suas
responsabilidades.
É preciso advertir, no entanto, que ontem o
presidente Bolsonaro não apenas desrespeitou a dignidade do cargo e a natureza
da festa cívica – o que por si só é lamentável. Não foi um deslize de quem é
indiferente à civilidade e aos bons modos. Jair Bolsonaro infringiu a lei, seja
porque se valeu da estrutura pública de um evento cívico para fazer campanha
eleitoral, seja porque tentou de todas as formas usar o prestígio das Forças
Armadas em proveito político-partidário.
Não há dúvida – e assim registram as
pesquisas de opinião que Jair Bolsonaro tanto desacredita – que uma parcela
significativa da população o apoia. Em diversas cidades, muita gente foi às
ruas manifestar sua adesão ao bolsonarismo. O fato, no entanto, é que, seja
qual for o tamanho do apoio popular, nada autoriza a infração da lei. Jair
Bolsonaro não pode valer-se do cargo e do dinheiro do contribuinte para fazer
campanha eleitoral. Em respeito ao regime democrático e às liberdades
políticas, há limites civilizatórios e legais. A escandalosa violação das leis
eleitorais promovida por Bolsonaro demanda uma punição exemplar.
Privilégios são a antítese da República
O Estado de S. Paulo
Para os trabalhadores do setor privado, férias duram 30 dias. O STF acertou ao barrar férias de 60 dias para advogados da União. Falta estender o entendimento a todo o serviço público
O Supremo Tribunal Federal (STF) fez bem ao
firmar a tese segundo a qual “os advogados da União não possuem direito a
férias de 60 (sessenta) dias, nos termos da legislação constitucional e
infraconstitucional vigentes”. A decisão, por unanimidade, tem repercussão
geral, ou seja, deve ser seguida em casos semelhantes por todos os tribunais do
País.
Como guardião da Constituição, o STF fará
ainda melhor no dia que estender esse entendimento a todas as categorias
profissionais do serviço público, nos Três Poderes, sem distinções. Afinal, a
igualdade de todos os cidadãos perante a lei, viga mestra do regime
republicano, não se coaduna em hipótese alguma com a existência de castas nem
privilégios de qualquer natureza, seja para indivíduos, seja para grupos. Como
bem sabem os trabalhadores do setor privado, e os de outras categorias menos
apadroadas do setor público, o período de descanso anual remunerado dura 30
dias, no máximo.
A decisão foi tomada no julgamento de um
recurso extraordinário impetrado pela Associação Nacional dos Advogados da
União (Anauni) contra um acórdão do Tribunal Regional Federal da 4.a Região
(TRF-4), que julgara não haver inconstitucionalidade no dispositivo da Lei n.º
9.527/1997 que limita as férias anuais dos advogados da União a 30 dias. A
Anauni sustentava que uma lei de 1953, que os equiparou aos membros do
Ministério Público, teria sido recepcionada pela nova ordem constitucional de
1988. Os ministros do STF julgaram que não, de modo que para os advogados da
União vale o mesmo período de 30 dias de férias que vale para os procuradores
federais e procuradores da Fazenda Nacional, haja vista que todos são
integrantes da mesma Advocacia-Geral da União (AGU).
À luz do melhor interesse público, de fato,
os advogados da União não deveriam ser equiparados aos promotores e
procuradores de Justiça. Ao contrário. O Ministério Público, assim como a
magistratura ou quaisquer outras categorias do serviço público, é que deveria
ser submetido às mesmas regras às quais se submete a esmagadora maioria dos
trabalhadores brasileiros, por uma elementar questão de isonomia.
Mas, ao longo de muitas décadas,
consolidou-se no Brasil um ethos distorcido sobre a natureza do
serviço público. É de justiça reconhecer que há muitos servidores vocacionados
e genuinamente imbuídos de espírito público atuando em todo o País. Não faltam
exemplos de bons serviços prestados à população nas mais diversas áreas da
administração pública por profissionais devotados a seus ofícios. Porém, também
há servidores, em especial os que compõem a elite do funcionalismo público, que
enxergam seus privilégios – que, obviamente, não qualificam como tais – como
recompensa por seus méritos individuais que garantiram a aprovação em concursos
muitíssimo disputados. Entre essa elite de servidores, destacam-se os membros
do Poder Judiciário, do Ministério Público e da própria AGU.
Essa excrescência, que certa vez a
economista Ana Carla Abrão, com argúcia, batizou de “privilégios adquiridos” em
artigo publicado por este jornal, precisa acabar. Ou bem somos uma República ou
uns seguirão sendo “mais iguais” do que outros perante a lei. A manutenção
desses privilégios, materializados em toda sorte de “penduricalhos” para
determinadas categorias funcionais, não é explicável pela legislação que os autoriza,
mas pela capacidade de organização e pelo poder de barganha que certas
corporações do serviço público são capazes de exercer sobre o Congresso e
outras instâncias decisórias. Esse lobby chega ao paroxismo em anos eleitorais,
quando não raro é exercido como verdadeira chantagem.
Ademais, há uma implicação econômica na
concessão de férias de 60 dias a determinados servidores públicos. Haja
criatividade para desfrutar de dois meses de ócio. É bastante comum, portanto,
que os agraciados pelo privilégio acumulem longos períodos de férias não
gozadas durante a carreira, o que se reverte em indenizações que podem chegar a
milhões de reais ao tempo da aposentadoria – que, é bom lembrar, já é
extremamente generosa para esses servidores quando comparada aos benefícios que
são pagos pelo INSS aos reles mortais.
Desmonte de políticas para mulheres
O Estado de S. Paulo
Programa citado por Bolsonaro como exemplo de ação positiva de seu governo para as mulheres está à míngua
O debate presidencial da Band proporcionou
um raro protagonismo para a pauta feminina e ofereceu aos eleitores a
oportunidade de avaliar a distância entre o que os candidatos prometem quando
estão em campanha e o que efetivamente fazem quando assumem o mandato. Um bom
exemplo é a Casa da Mulher Brasileira, política pública criada no governo Dilma
Rousseff que reúne, em um único lugar, toda a estrutura necessária para
interromper um ciclo de violência doméstica. Com a presença de assistentes
sociais, psicólogos, defensores públicos, promotores, juízes e guardas
municipais, o programa garante a emissão imediata de medidas protetivas para o
enfrentamento de um problema crônico da sociedade. Sua existência se mostra
indispensável em um país que registrou, em 2021, ao menos uma chamada por
minuto para o 190 com denúncias de agressões domésticas, segundo dados do Anuário
Brasileiro de Segurança Pública.
Sob Jair Bolsonaro, a Casa da Mulher
Brasileira, como muitas outras políticas públicas, foi submetida ao desmonte.
Dos R$ 129 milhões reservados ao programa desde 2019, apenas R$ 15,3 milhões
foram executados, ou 12% do total. Como mostrou o Estadão, apenas R$ 7,6
milhões foram empenhados neste ano, valor insuficiente para uma unidade de
capital, de acordo com o próprio Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos. Diante do destrutivo histórico de atuação da administração
federal, as informações não surpreendem. O que espanta, neste caso, é o
desespero de Bolsonaro, que mencionou o programa como exemplo de sua
preocupação com a temática feminina a despeito de todas as evidências da
absoluta falta de prioridade que seu governo deu a qualquer assunto de
interesse das mulheres.
Exceto pelo período eleitoral, há que
reconhecer a sinceridade de Bolsonaro quando trata da pauta feminina – ao menos
nestes momentos ele abandona a dissonância cognitiva e age de acordo com suas
mais profundas crenças. Um exemplo que é a própria expressão da mesquinharia
misógina foi o veto ao programa de combate à pobreza menstrual, que previa a
distribuição gratuita de absorventes para meninas de baixa renda em escolas
públicas, presidiárias e mulheres em situação de rua. É impressionante que um
presidente disposto a reservar R$ 19,4 bilhões para emendas de relator em 2023
não tenha tido pudor de alegar respeito às regras fiscais e contrariedade ao
interesse público ao rejeitar uma proposta com custo anual de R$ 84,5 milhões,
menos de 0,5% do valor do orçamento secreto. Tão estarrecedor quanto a atitude
de Bolsonaro foi o fato de que os parlamentares tenham levado cinco meses para
derrubar esse veto e que isso só tenha ocorrido diante da pressão da opinião
pública. Tudo isso reforça a necessidade de os eleitores – e, sobretudo, as
eleitoras – escolherem muito bem quem vai representar seus interesses não
apenas no Executivo, mas também no Legislativo. No Congresso, a eloquente
crueza de Bolsonaro, muitas vezes, pode ser substituída por uma constrangedora
e silenciosa omissão.
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