sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Almir Pazzianotto Pinto - Medida provisória, remédio autoritário

Correio Braziliense

A MP — filha bastarda do decreto-lei, fartamente utilizado durante o Estado Novo e o Regime Militar — foi gerada no seio da Assembleia Nacional Constituinte em nome da governabilidade

Diz a sabedoria do homem do interior que, com o passar dos anos, o animal se habitua à cangalha. O velho adágio se aplica à medida provisória, recurso antidemocrático extremo, permitido pela Constituição para casos de relevância e urgência, ou de urgência relevante, pelo indisfarçável caráter autoritário de que se reveste. É triste, mas, com o passar dos anos, vamos nos habituando ao arbítrio das medidas provisórias.

Nunca é demais relembrar que são três os Poderes da União, independentes e harmônicos entre si: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, conforme prescreve o Art. 2º da Lei Fundamental. Poderes independentes e harmônicos. Vale dizer que um não se subordina ao outro e, entre eles, é essencial que exerçam as respectivas competências em ambiente de respeito e harmonia, obedientes a pesos e contrapesos constitucionais.

A medida provisória — filha bastarda do decreto-lei, fartamente utilizado durante o Estado Novo e o Regime Militar — foi gerada no seio da Assembleia Nacional Constituinte em nome da governabilidade. A expressão significa, segundo o Dicionário Houaiss, "situação em que as instituições funcionam bem, existe tranquilidade política e suficiente estabilidade financeira para que o governo possa governar".

Desde a promulgação da Constituição de 1988, o emprego de medidas provisórias, por sucessivos presidentes da República, tem se constituído em fator de desestabilização da tranquilidade política e meio de interferência do Poder Executivo nas atribuições do Poder Legislativo.

Ainda agora, segundo a imprensa, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, torna público que se encontra em elaboração medida provisória destinada a confrontar o Poder Legislativo. O objetivo consiste na revogação de dispositivos da lei aprovada em 14 de dezembro, determinando a desoneração da folha de pagamento em 17 setores da economia. Independentemente do mérito das questões ventiladas, não se pode deixar de discutir, sob o ângulo constitucional, o cabimento de medida provisória destinada a revogar, com uma canetada, artigos de legislação recente, previamente discutidos por todos os setores da sociedade.

Na hipótese, nada remota, de se aceitar que o Poder Executivo goza da prerrogativa de legislar contra lei há poucos dias aprovada, vetada, e cujo veto foi derrubado por quem podia fazê-lo, conforme prescreve a Constituição, estaremos diante do caos legislativo, uma vez que medida de caráter pessoal e autoritária se contrapõe ao direito de rejeição do veto "pela maioria absoluta dos deputados e senadores" (Art. 66, § 4º).

Confirmada a edição da medida provisória, a nação se encontrará diante de caso típico de crime de responsabilidade, a teor do que dispõe o Art. 85 da Lei Superior. Com efeito, são crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra o livre exercício do Poder Legislativo e o cumprimento das leis, conforme determinam os incisos II e VII.

O uso abusivo de medidas provisórias, dotadas de eficácia imediata, pode colocar em perigo a sobrevivência do Estado de Direito Democrático. É imprescindível reação imediata e enérgica do Congresso Nacional na defesa da sua independência, e como instrumento de restabelecimento do tratamento harmonioso entre os Três Poderes.

Ao longo do primeiro ano de governo, no exercício do terceiro mandato popular, o presidente Lula deve revelar que aprendeu a administrar o país sem violar os limites constitucionais. O veto à derrubada do veto, mediante emprego arbitrário de medida provisória, é algo que não se coaduna com o propalado espírito democrático do presidente da República. A desoneração da folha de pagamento de setores vitais do combalido parque industrial, como confecção e vestuário, calçados, construção civil, fabricação de veículos e carroçarias, atende a necessidades inadiáveis, sob pena de quebra e desemprego generalizados.

Há décadas, o parque industrial reclama por medidas no sentido do alívio de carga tributária, cujo peso o torna vulnerável à concorrência predatória de países desenvolvidos e ricos, sobretudo do Oriente. O Poder Legislativo escutou a voz da sociedade. O presidente da República ouviu o ministro da Fazenda, cuja única preocupação é aumentar a arrecadação, para satisfazer excessivas despesas governamentais. Usada moderadamente, com critério e cautela, a medida provisória pode ser remédio. Em excesso, transformar-se-á em veneno.

*Almir Pazzianotto Pinto, advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho

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