O Globo
Nossas ditaduras estavam num degrau mais
ameno da barbárie vizinha. Jair Bolsonaro liderou o rompimento disso
Há dois tipos de golpe de Estado em nossa
cultura latino-americana. O português e o espanhol. António Salazar chegou ao
poder em Lisboa por
meio de um pacto sem sangue. Francisco Franco sangrou espanhóis aos milhões
para chegar ao poder em Madri. Nós,
lusos, buscamos o acordo. Os espanhóis puxam o sabre. Foi assim na Inquisição
Católica, na colonização das Américas. É assim com golpes. O bolsonarismo
ignorou nosso traço cultural e planejou um golpe sangrento. Um golpe espanhol
na terra do Brasil.
Não é que não sejamos violentos. Somos. Mas a violência, nós a escondemos nos porões da tortura, nas senzalas, no interior da mata. O rosto que mostramos em público pode ser um disfarce, mas é também pudor de esconder a barbárie.
Quando o marechal Deodoro da Fonseca deu
ordem de prisão ao primeiro-ministro Visconde de Ouro Preto, em 1889, não teve
coragem de fazê-lo pessoalmente. Quando os generais Tasso Fragoso e Mena
Barreto deram voz de prisão ao presidente Washington Luiz, em 1930, estavam
armados. Washington recusou a deposição, encheu-se da autoridade presidencial.
Os militares poderiam tê-lo rendido, chamado soldados. Poderiam ter dado um
tiro. Não. Chamaram o Cardeal Leme para dissuadir o presidente e evitar sangue.
O general Eurico Gaspar
Dutra pediu a Getúlio
Vargas que assinasse uma carta de renúncia. Getúlio leu a
situação política, escreveu o nome no papel e foi para São Borja. Aquilo era um
golpe de Estado. Todos esses. Golpes militares tipicamente brasileiros. Mesmo
quando um integralista destemperado como o general Olímpio Mourão Filho pôs os
tanques na rua, em 1964, os generais mais gabaritados que ele negociavam a
acomodação. E João Goulart foi-se
para Montevidéu.
Somos uma República das Bananas. É a
definição que ouvi, certa vez, do cientista político Octavio Amorim Neto. Se
militares vez por outra decidem se meter na normalidade da vida política da
nação, isso define uma República das Bananas. É o que é — 1889, 1891, 1930,
1937, 1945, 1964 e 1968. Sete golpes militares de sucesso. Oito se
considerarmos o contragolpe do marechal Lott, em 1954. Foi para garantir a
posse do presidente eleito, mas tirou um presidente provisório para colocar
outro. Em cada um desses momentos, ao menos um general decidiu rasgar a
Constituição e tomar para si uma decisão que cabia ao povo.
Mas presidentes não embarcaram em automóveis
para chegar mortos no outro lado, como no México. Palácios
presidenciais não foram bombardeados, como no Chile. Mesmo com toda a
violência dos porões, e não foi pouca, nossas ditaduras estavam num degrau mais
ameno da barbárie vizinha. Jair Bolsonaro liderou o rompimento disso. Planejou
um golpe em que o presidente eleito seria envenenado, seu vice aniquilado, o
presidente do Tribunal Superior Eleitoral sequestrado e fuzilado. Até o
marechal Floriano Peixoto se envergonharia.
O Exército brasileiro precisa se envergonhar
desses bárbaros em cujos uniformes pregaram uma quarta estrela. É importante
compreendermos que dar golpes militares é coisa brasileira, sim. Desse jeito,
com lista de assassinatos, é um golpe espanhol, não é português. Não é um golpe
brasileiro. É coisa pior. É rasgar por completo a fantasia e assumir-se em
público como indiferente à vida humana, à liberdade humana.
Esses generais são homens menores que os
golpistas do passado. São homens minúsculos. Merecem nosso nojo, nossa repulsa,
não menos.
Luiz Inácio Lula da Silva talvez não seja o
presidente ideal para um liberal como eu — mas foi eleito. Comandou um governo
corrupto? Sim. Mas foi eleito. Como Jair Messias Bolsonaro foi eleito em 2018.
Como Donald Trump foi
eleito em 2016 e neste ano. Nenhum é o presidente dos sonhos de um liberal
puro-sangue, mas liberais, liberais de verdade, são liberais democratas. E o
princípio é este: quem é eleito toma posse. Quando realizamos pleitos seguindo
os mesmos métodos, com a mesma tecnologia, fazemos uma aposta conjunta na
democracia liberal.
Ela segue alguns princípios. A maioria não
impõe seu desejo, as minorias são sempre respeitadas. Calibramos as regras do
jogo para que todos, não importa o CEP em que nasçam, tenham direito às mesmas
oportunidades. Todos são iguais perante a lei — ninguém é especial. Numa
democracia liberal, civis mandam, militares obedecem. E, ao fim de um pleito,
quem perde a eleição liga e congratula o vencedor. Não é mero ritual. É marco
civilizatório. É o marco civilizatório. O movimento liderado por Jair Bolsonaro
se opõe a todos estes princípios. É iliberal. E bárbaro.
Um comentário:
Acertou em cheio!
Postar um comentário