segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Marcos Nobre: A culatra do impeachment

• No momento, a culpa é toda de Eduardo Cunha

- Valor Econômico

Alguém precisa levar a culpa por toda a desgraça de 2015. Dilma Rousseff era a candidata natural. Mas as forças anti-Dilma demoraram demais para perceber que, quando se trata de impeachment, corrupção tem precedência sobre qualquer outro tipo de calamidade. Acreditaram que a mera rejeição generalizada seria suficiente para derrubar a presidente, como se as razões e motivações importassem pouco diante do sofrimento presente e futuro. Só que, desde o afastamento de Fernando Collor, parece ter decantado a convicção de que apenas indício de prática manifesta de corrupção justifica o impeachment.

No caso de Dilma, mesmo com a agonia diária, o tempo passava e nenhum indício surgia de que a presidente tivesse envolvida em prática de corrupção. Foi quando os movimentos pró-impeachment deslocaram suas energias para atacar Lula. Convenceram-se de que o ex-presidente seria pego na Operação Lava-Jato, o que equivale hoje a um atestado de culpa no cartório. Essa mudança de alvo principal ganhou ímpeto e força ao reverberar fundo em uma parte do eleitorado que quer ver Lula bem longe do jogo político. Foi quando surgiram os bonecos gigantes. Primeiro, o de Lula. Só depois, o de Dilma, como uma espécie de coadjuvante.

O cálculo das forças pró-impeachment se mostrou duplamente equivocado. Colocar a presidente em segundo plano apenas tirou o governo do foco exclusivo da pancadaria, dando-lhe certo alívio. E a Lava-Jato não atingiu Lula, o que enfraqueceu a nova linha de atuação. Isso deu chance de o governo se reorganizar, agora sob a direção do próprio Lula. Não bastasse esse duplo equívoco, as forças pró-impeachment foram estabelecer uma aliança tática justamente com o único personagem que preenchia os requisitos da opinião pública para sofrer um impeachment, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha.

Talvez seja o incômodo por essa aliança pregressa o que pode explicar que não tenha ainda aparecido nenhum boneco gigante de Eduardo Cunha. Seja como for, as forças anti-Dilma acabaram por se convencer de que teriam de mudar o foco de seus ataques se quisessem manter alguma liderança no processo. Entretanto, ao eleger Eduardo Cunha como alvo principal, toda a energia antes mobilizada para o impeachment se voltou para o afastamento do presidente da Câmara. Mais que isso, as ações contra Cunha não reúnem apenas forças anti-Dilma, mas toda a sorte de movimentos, aqueles de apoio ao governo, inclusive.

No momento, a culpa é toda de Eduardo Cunha. A queda inevitável do presidente da Câmara dos Deputados tem sua colaboração a dar na "ponte para o futuro" construída por Lula. A continuidade de Cunha no cargo por mais alguns meses terá o efeito de ganhar tempo para a nova velha orientação de política econômica que prevalecerá. E isso tem ainda outro efeito colateral importante. Ao se tornar o representante de todas as mazelas de 2015, ao assumir no lugar de Dilma o papel de Geni nacional, Eduardo Cunha também tirou a pressão insuportável que tinha se abatido sobre Joaquim Levy. Porque o intervalo da troca de Lula por Eduardo Cunha como foco principal da insatisfação correspondeu a um período de quase duas semanas em que não estava claro quem iria ser o culpado da vez. Foi nesse momento que surgiu o nome de Levy como candidato a carregar nas costas a desgraça de todo um ano de misérias.

Não seria a mera substituição de Joaquim Levy que faria o vento voltar a enfunar as velas da economia. Mas a ideia é se preparar para esse momento, para além do limite do suportável, que deve ser atingido nos próximos meses. Da mesma maneira como se generalizou a consciência do desastre e o grande temor pelo futuro, também se firma pouco a pouco no quadro de expectativas dos grandes agentes econômicos a ideia de que a situação irá melhorar a partir do fim de 2016. Depois do gigantesco tombo no biênio que iria do final de 2014 ao final de 2016, finalmente chegaria o momento da retomada. Mesmo que tímida, mesmo que lentamente percebida, qualquer melhora terá seu efeito multiplicado pelo contraste com o trauma anterior de falência e catástrofe.

O horizonte está tão rebaixado que o programa imaginado inicialmente por Levy poderá ser finalmente posto em prática. Quer dizer, um plano Levy com desconto. O mesmo desconto que o próprio Levy já concedeu ao longo de 2015, ao perceber (tardiamente) que estava colocando em risco sua sobrevivência no cargo. O plano inicial, anunciado em fins de 2014, prescrevia um forte ajuste seguido de uma recuperação no médio prazo, em algo como seis ou oito meses. Não importa muito se o plano Levy é ou não tecnicamente correto ou socialmente suportável. O fato é que se mostrou politicamente inviável. Ao mesmo tempo, é a implementação parcial desse plano ao longo de 2015 o que pode permitir sua efetiva implementação em 2016. Os ajustes fiscal, político e de expectativas precisaram de quase dez meses para produzir a recessão econômica, política e mental que viabilizou o plano.

Levy demorou, mas percebeu que não era intocável por ser supostamente o "representante do mercado" no governo. Sem conseguir estabelecer alianças duradouras e sustentáveis dentro do sistema político, não há mercado que segure alguém no ministério da Fazenda. Levy percebeu que levar bola nas costas e ser desautorizado e atropelado em suas decisões fundamentais é parte do dia a dia do cargo. Assumiu um protagonismo que qualquer ministro da Fazenda que preza a posição evita, aceitou com gosto o epíteto de "mãos de tesoura", por exemplo. Agora mostra ter entendido as regras.

Embora dependa dos votos para sobreviver, o sistema político parece não ver hoje outra alternativa do que apostar que a nova velha política econômica será socialmente suportável, pelo menos o tempo suficiente para ver uma melhora da situação. Só a política é capaz de tamanha ironia: foi o tiro saído pela culatra do impeachment o que permitiu a reviravolta que colocou o governo de volta no jogo.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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