Felipe Gutierrez – Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - No período de distensão latino-americana, o livro "Transições do Regime Autoritário", escrito pelo cientista político Philippe Schmitter com Guillermo O'Donnel, foi bastante lido por políticos que tiveram papéis relevantes nas novas democracias da região.
A tese era que o movimento teria sucesso se fosse feito um pacto no qual membros das ditaduras se sentissem incluídos. Deu certo.
Hoje, os países da região têm democracias consolidadas, mas elas –e as do resto do mundo– enfrentam dilemas de uma dificuldade de representatividade e, principalmente, suas implicações.
O americano, que foi professor em Stanford e é emérito do Instituto Universitário Europeu, esteve no Brasil para dar palestras a outros cientistas políticos.
• Folha - O sr. empregou a palavra "dissed", que é um tipo de rap de ridicularização, para falar sobre a democracia. O que quer dizer com isso?
Philippe Schmitter - Tirei mesmo do rap. Nem sei se é palavra dicionarizada.
A ideia é que, em períodos de mudanças na divisão de trabalho, os novos conceitos torpedeiam os antigos e, nesse processo, as pessoas perdem a noção de pertencimento a um grupo estabelecido.
Hoje, ninguém ousaria falar no papel do proletariado. Isso aparta pessoas de círculos sociais e identidades que antes tinham. Elas se sentem isoladas e manipuladas. É uma combinação de isolamento com ressentimento.
• Quais as implicações disso?
Ressentidos não votam, e há um declínio na presença em eleições que permeia todas as democracias. Há também um avanço populista e um colapso dos partidos tradicionais centristas.
A consequência mais documentada é a desconfiança das instituições políticas.
Isso é independente da corrupção –a corrupção faz parte da equação em alguns países, mas em outros, como o Chile, pouco corrupto, os sintomas são os mesmos.
• No Brasil, partidos pequenos venceram em cidades importantes. Isso é um sintoma?
Outra característica deste momento da democracia é o surgimento de partidos de margens. O Brasil, no entanto, sempre teve muitos partidos em função –ou disfunção– do federalismo.
• Mas eles só compunham governos, agora assumiram.
Não surpreende. É a mesma coisa que acontece na França ou na Itália. Às vezes é à esquerda, como o Podemos.
• O sr. escreveu sobre uma volatilidade de eleitores. Isso muda os governos, também?
Se eleitores são mais voláteis, governos também o serão. O "turnover" [alternância de poder], Deus do Céu! A média na Europa era de oito a dez anos. Hoje, a rotação é muito mais frequente.
• Há algum problema inerente ao "turnover" alto?
Na teoria, não. Historicamente, é pouco usual. O ponto é ver se as políticas terão continuidade. Isso vai depender de saber se os partidos vão lutar pelo centro do espectro político. Depois da Segunda Guerra, esquerda e a direita centristas dominaram eleições e a rotatividade não teve consequências.
• No Brasil se fala sobre um aventureiro chegar ao poder. A chance de isso acontecer é maior neste momento?
Sim. Esses partidos de margens ganharam força e os de centro precisam se preocupar com a perda de eleitores. Estão menos centrípetos e mais centrífugos ao tentar ter apelo.
Algo mais sobre eleições. Vocês, jornalistas, tendem a culpar os políticos pela abstenção, pela força dos populistas e pela desconfiança das pessoas nas instituições.
É o contrário. O problema real são os cidadãos. Os políticos se esforçam para se comunicar com os eleitores e têm fracassado.
Para dialogar, é preciso fazer isso por meio de categorias, e geralmente isso significava grupos de trabalhadores, de bairros, associações empresariais etc.
Essas organizações perderam sua capacidade de ser um espaço de identificação e solidariedade interna.
Hoje há um número muito grande de circunstâncias e não há maneira de falar com elas todas. A sociedade civil é que está em declínio.
• Permita-me discordar. Em 2013, tivemos manifestações que, ainda que não fossem de uma categoria, eram de pessoas que compartilhavam ideais ou projetos. E isso aconteceu novamente durante"¦
O impeachment de Dilma, eu sei. Passeatas são um produto da sensação de anomia. As pessoas estão ressentidas.
O problema é que essas megamanifestações não deixam organização com a qual se possa lidar ou negociar, que são elementos importantes das democracias liberais –elas têm poder para influenciar o comportamento dos membros, por exemplo, na decisão de entrar em greve.
Eu dava aulas no Egito pouco antes da revolução. É o exemplo dos protestos gigantescos que a internet potencializa. Quando acabou, as pessoas não deixaram traço. Elas foram importantíssimas e derrubaram o Mubarak, mas depois sumiram e foi fácil para os militares tomar o poder novamente.
• Qual a orientação aos políticos agora?
Historicamente, a resposta seria reformar os partidos. Acho que eles estão mortos, no entanto. São um instrumento de representação ineficaz. Há uma pulverização de candidatos em mais partidos ou então os políticos fingem que não são de partido nenhum –Donald Trump é o exemplo perfeito.
O populismo agarra os indivíduos: as pessoas não sentem solidariedade dentro de grupos, mas se identificam com uma pessoa. O populismo é justamente centrado em uma pessoa que diz ser capaz de resolver os problemas.
Partidos podem persistir por serem importantes para eleições ou para formar um parlamento, mas não vão ter a importância que tiveram.
• Há alternativas a eles?
Uma é a ideia de dar ênfase à participação dos cidadãos. Um dos casos mais estudados é [do orçamento participativo criado inicialmente em] Porto Alegre. A ideia é a de democracia participativa.
A outra direção é a oposta: fortalecer as instituições guardiãs. Distribuir poder a órgãos deliberadamente não democráticos, gerenciados por tecnocratas. Nessa direção, aumentam o número de agências regulatórias e o papel das cortes. A ideia é que o futuro da democracia está na despolitização. Isso tem apelo.
• O que o senhor prevê é que as eleições serão "pro forma"...
Não prevejo nada. Apresentei os dois modelos e, para ser sincero, não gosto de nenhum. Sou um democrata.
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