- O Estado de S. Paulo
É hora de começar a distribuir culpas, penas, responsabilidades. Um acordão seria obsceno
Pode-se dizer que delação não é prova ou que faz parte do mesmo “golpe” que afastou Dilma Rousseff da Presidência. Pode-se dizer que os Odebrechts deitaram e rolaram como verdadeiros donos do Brasil e agora estão querendo livrar a cara, descarregando tudo nas costas dos políticos. Pode-se dizer o que for, mas não há como fazer de conta que nada acontece de extraordinário.
Com a divulgação das delações dos executivos da Odebrecht, o espanto se combinou com o mal-estar, tamanho foi o buraco que se abriu. Dinheiro sendo distribuído a rodo, a partir de extorsões feitas por pessoas empoleiradas no topo do poder e impulsionadas pela volúpia de empresas que escolheram correr o risco de dilapidar seu patrimônio ético e material.
De uma só penada, empresários poderosos, com enorme cinismo e hipocrisia, emporcalharam a vida política nacional, atando-a a crimes cometidos ao longo de anos, nas barbas de todos, sem perdoar ninguém, da direita à esquerda. Veio à tona o padrão de capitalismo que se forjou por aqui, alimentado por uma mixórdia de laços e anéis entre o público e o privado, indiferente à sorte da população. Chamaram de “campeãs nacionais” essa versão tupiniquim da exploração sem peias das gentes, do poder e das riquezas de um país.
A extensão dos fatos impressiona. Décadas de malfeitos, de invasão do público pelo privado, de degradação da função pública, de sonegação, de manipulação de obras e contratos para fins eleitorais, de enriquecimento à custa do povo. Não foram somente alguns políticos e grandes empresários. Montou-se um circuito diabólico de corruptos e corruptores, que se naturalizou e cresceu com a cumplicidade do sistema e de seus protagonistas, que fingiram não ver o veneno que impregnava a corrente sanguínea da Nação.
É hora de começar a distribuir culpas, penas e responsabilidades. Não se pode perder uma oportunidade destas para limpar parte importante da história da República brasileira. Seria obsceno um “acordão” que zerasse tudo para “salvar a política”. Empresários e políticos que desonraram sua atuação precisam ser enquadrados, com as distinções cabíveis, para que assumam o que houve de escabroso e se desculpem.
Muita pedra terá de ser carregada para se chegar ao fim do processo sem que se jogue fora a criança junto com a água suja do banho. Proteger a democracia, fazer com que prevaleçam seus valores e suas regras, renovando o que precisa ser renovado, enterrando os mortos que nos atormentam e isolando os demagogos, os ilusionistas.
As delações não foram o fim do mundo. Contaram histórias que se conheciam ou de que se ouvia falar. Puseram-nos em frente a um espelho no qual vimos algumas de nossas piores vergonhas. Na melhor das hipóteses, poderão ajudar a que termine um mundo.
Delações são relatos subjetivos de fatos. Quem delata fornece uma versão, uma “narrativa”. Age em interesse próprio. Pode distorcer situações, esquecer detalhes. Delatores mentem. As investigações servem para que se chegue ao máximo possível de verdade, evitando que se puna indevidamente.
É um nó a ser desatado. Sem isso não haverá como dosar penas, estabelecer o que é crime, dolo e má-fé, distinguir propina e doação eleitoral. Para isso será decisiva a inteligência tática e estratégica dos democratas, que ainda estão desarvorados e em busca de um eixo.
Qual será o tempo de reação dos democratas? Que tempo haverá para que se arrume a casa e se façam nela alguns pequenos reparos? Haverá tempo para que os cidadãos entendam o que está a ocorrer e se posicionem com firmeza? Precisamos levar em conta o timing dos processos, mas, paradoxalmente, não temos muito mais tempo a perder.
Nem tudo virá em sintonia com as expectativas dos cidadãos. A Justiça tem seu ritmo e seus procedimentos. Move-se com lentidão. Permanecerá soberana, mesmo que não possa imunizar-se contra eventuais pressões populares. A criação no STF de uma força-tarefa para acelerar os julgamentos da Lava Jato é um sinal de que há sensibilidade na Corte.
Também não se pode descartar a resiliência da classe política. Ela sabe agir corporativamente e se autoproteger, como qualquer corpo vivo. Pode-se torcer para que haja uma “renovação radical” na próxima composição do Congresso Nacional, mas é grande a probabilidade de que muita coisa se reproduza.
A emergência de uma nova elite política vem por etapas e mediante avanços difíceis. Sobretudo quando o sistema político está desajustado, quando a própria sociedade se vê às voltas com transições complicadas que comprometem seus nervos e suas estruturas, quando os partidos não são boas escolas de quadros. Aqui também, portanto, o tempo terá de ser bem considerado, até para não se fabricarem ilusões desnecessárias.
Os riscos inerentes ao processo em curso se alimentam de ilusões deste tipo. Há muita gente à espreita, de oportunistas a protofascistas, interessados em ganhar a massa decepcionada com os políticos e mordida pelos escândalos. Não são idênticos entre si, nem em termos políticos, nem em ideologia. Alguns têm mais substância, proposta e estilo, outros são provocadores baratos. Mas todos oferecem “ordem”, trabalho e “seriedade” ao povo.
Aos bons políticos dispostos a agir na esfera pública estatal caberá produzir uma articulação e apresentar suas postulações juntamente com uma visão do País que merecemos.
A solução do enigma não está no meio, mas num ponto futuro ainda não claramente delineado, para o encontro do qual os democratas deveriam estar trabalhando com afinco e realismo. Seja a opção por uma Constituinte, seja o caminho o das reformas pontuais no curto prazo, teremos de assistir à gestação de um pacto de novo tipo, que envolva a sociedade e todos aqueles com disposição para garimpar democraticamente o novo e recriar o modo de fazer política no País.
*Professor titular de teoria política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais da UNESP
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