- O Globo
A esquerda precisa se reconstruir. Por ela e pelo Brasil. País de enormes desigualdades e no qual ideias conservadoras têm prosperado, o Brasil precisa de partidos que defendam políticas públicas de inclusão, espaço no Orçamento para os pobres, interesse de grupos excluídos, fim dos privilégios, atualização dos costumes. Mas quem é a esquerda brasileira? A que se autodenomina não parece ser.
A esquerda não pode ser a favor de doação de recursos públicos para o capital. Isso não faz sentido. Aqui, houve aumento das transferências para grandes empresas, inclusive estrangeiras, de 3% para 4,5% do PIB nos governos petistas, pelas contas do Banco Mundial. Pode ser muito mais. Houve várias formas de benefícios às grandes empresas, alguns deles indiretos. Os descontos nos impostos, ou o custo financeiro dos empréstimos subsidiados, deveriam ser um inimigo a combater.
Uma nova esquerda terá que enfrentar definitivamente o engano embutido na tese de que o Estado deve estimular os grupos empresariais para eles serem grandes e lucrativos porque, desta forma, a economia estará bem e haverá emprego. Isso foi tentado pela direita, no regime militar, mas não é estranho um governo conservador ter uma política de transferência para o capital. O que espanta é o governo que se definia como progressista ter implantado as mesmas propostas do regime militar que combateu. A recente política industrial de campeão nacional era idêntica à da ditadura, só que em vez de os beneficiários serem Bardela, Villares, eram JBS, BR Foods, Grupo X. Nos dois momentos históricos a proposta fracassou.
O Brasil é cheio de cartórios, interesses específicos, categorias que conseguiram ter vantagens em relação ao resto da população. Os partidos da esquerda brasileira sempre abraçaram esses grupos, defenderam seus interesses como sendo os do povo. Diante de qualquer comprovação da assimetria de tratamento entre cidadãos do mesmo país, a tese levantada é a do direito adquirido. Quando se tenta mostrar os privilégios na Previdência, a esquerda entra em negação e diz que o problema não existe. A defesa de interesses corporativos não pode ser parte de uma verdadeira agenda de esquerda.
Na época da luta contra a inflação ficou claro o desvio no qual os partidos da esquerda entraram. Um líder do PT me disse em 1994 a seguinte frase: “combater a inflação é um projeto da elite brasileira.” Diante da repercussão, ele negou ter dito. Como ele já morreu, não vou dizer seu nome, apesar de ter certeza de que escrevi o que ouvi. O importante é pensar na frase porque ela coincidia com o comportamento do partido na época do Plano Real. A alternativa que apresentava era a negociação de pacto de preços e salários entre empresários e trabalhadores. O pacto era um conluio, no qual os trabalhadores de maior renda e de sindicatos fortes recebiam reajustes salariais que eram repassados para os preços, e tudo isso realimentava a inflação, que atingia violentamente os mais pobres. A inflação alta concentrava renda, mas não havia em nenhum partido de esquerda uma consciência da natureza deletéria da escalada de preços.
Nas privatizações também ficou evidente que, mais do que o controle estatal das empresas, o que estava sendo defendido a pedras e chutes em manifestações de rua eram as vantagens dos funcionários das estatais.
A transferência de renda para os mais pobres através do Bolsa Família foi bem executada, depois de abandonada a ineficiente proposta do Fome Zero. O programa tem foco nos mais pobres e todas as avaliações mostram isso. Mas a política perdeu parte do seu valor quando foi apresentada como um benesse do governo de esquerda aos pobres. Ao ser usada como uma chantagem eleitoral, ela foi se parecendo cada vez mais com as práticas clientelistas que sempre manipularam o voto dos pobres.
O Brasil precisa de uma esquerda sólida e vinculada aos seus ideais de inclusão, diversidade e promoção da ascensão social. Por natureza, a esquerda deveria combater o patrimonialismo, porque esse velho mal brasileiro está na raiz das nossas iniquidades. Por destino, deveria ser progressista porque para conservar privilégios e status quo, já existem os conservadores.
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