O Globo / O Estado de S. Paulo
Um adulto de 25 anos — e mesmo alguns de 30
ou mais — não tem memória de como eram as eleições no Brasil antes da urna
eletrônica. Nosso histórico de fraudes é vasto. Não era raro, na Primeira
República, presidentes eleitos com margens de ditadura árabe, para lá dos 90%
dos votos. O velho Rui Barbosa, sempre o outsider concorrendo fora do esquema
dos coronéis, que o diga. Mesmo na Nova República não havia eleição sem
história de fraude. Não é este, porém, o debate que o presidente Jair Bolsonaro
está levantando quando ataca as maquininhas do TSE. Ele está, em verdade,
recauchutando de forma mambembe o antigo preconceito contra tecnologia digital.
Um preconceito pelo qual a sociedade já passou e que dispensou. É como se o
computador fosse uma caixa mágica e misteriosa. Melhor mesmo confiar no papel,
que é seguro.
Não é um problema novo, tampouco misterioso. Qualquer consultoria de primeira linha passou a primeira década deste século, talvez os primeiros anos da década seguinte, ajudando empresas a enfrentar justamente essa dúvida. Quando preciso manter uma trilha em papel dos documentos que produzo — com assinaturas, com carimbos, só para ter certeza de que tudo estará lá quando for preciso? Mas já faz uns dez anos que a pergunta se tornou obsoleta.
A própria ideia de voto impresso atrelado à
urna eletrônica foi imensamente debatida nos anos 2010 e chegou a alcançar o
primeiro governo da ex-presidente Dilma Rousseff. Não é à toa que o período
bate com a época em que empresas estavam tendo essa discussão. De lá para cá,
as discussões são outras. São para acelerar o que chamamos de transformação
digital.
O papel enquanto documento ficou para trás.
O digital também documenta. Em certas condições, melhor.
O exemplo mais claro, que todos
compreendemos rapidamente, é o dinheiro. Nosso dinheiro está se digitalizando
de todas as formas. Cada vez usamos menos notas, cada vez mais pagamos com
cartões, transferências — e a rápida adoção do Pix só mostra como a sociedade
se habituou à ideia de o dinheiro ser digital. Não é só. Cada vez menos as
pessoas sentem necessidade de ter o extrato em papel da conta-corrente, do
cartão. Cada vez menos se pede o recibo impresso do pagamento. Chega ao celular
na hora. Está sempre ali, no app financeiro. E, a partir do ano que vem, com Open
Banking, talvez baste um app só para toda a nossa vida no que envolve dinheiro.
Mas não custa entreter a ideia do voto
impresso pela urna. O primeiro problema são as impressoras, que necessariamente
seriam como aquelas das maquininhas de cartão. Outra tecnologia tornaria
financeiramente inviável. Primeira questão: são particularmente sensíveis à
umidade. Vivemos num país tropical. As chuvas começam em outubro — época das
eleições. Em ambiente muito úmido, tendem a embaralhar. Ao embaralhar, o
mesário terá de ser chamado para botar em ordem. Ao fazê-lo, verá o voto mais
recente e, assim, quebrará seu sigilo.
Parece um problema simples; não é.
Esses boletos também são fáceis de
reproduzir. Ou seja, o antigo esquema brasileiro da troca de cédulas legítimas
por falsas voltará em alguns bolsões mais inseguros do país. Se o resultado da
urna eletrônica não bater com a contagem de papel, qual vale? Se um partido
pedir recontagem dos votos de uma sessão, e o papel tiver sido danificado — é
muito sensível a calor intenso, galpões brasileiros são quentes, e desmancha
com água —, como se resolve? Numa eleição apertada como a de 2014, mexe em 1%
dos votos, vira o resultado.
O voto impresso é a solução errada para um problema que nunca ninguém imaginou que existisse. Porque não existe. Queremos o Bush versus Gore brasileiro?
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