O Globo
O cofre da humanidade existe há quase 15
anos. Construído pelo governo da Noruega em 2008 como banco global de sementes,
ele porta o nome oficial de Svalbard Global Seed Vault. Foi idealizado para
sobreviver a todo tipo de apocalipse — climático, sanitário, nuclear —, por
isso está prudentemente fincado 130 metros acima do nível do mar, na encosta de
uma montanha do arquipélago norueguês de Svalbard, no meio do Oceano Ártico.
Trata-se do lugar mais extremo, remoto e inóspito do Hemisfério Norte. Seus
2.700 residentes fixos e quase 300 ursos-polares às soltas encaram a cada ano
dois meses e meio de escuridão ininterrupta (chamada Noite Polar), seguida de
cinco meses de sol escancarado 24 horas ao dia. Coisa para vikings de raiz.
Segundo o jornalista Bruno Garattoni, um dos poucos brasileiros que se enfiaram naquelas paragens, é preciso atravessar um túnel de 120 metros escavado na montanha congelada e passar por cinco portas à prova de explosões para acessar o cofre/bunker. Ali estão as famosas 880 mil sementes de 5.403 espécies vegetais colhidas nos quatro cantos do planeta — entre elas, nosso arroz, feijão e milho enviados pela Embrapa. Trancado o ano todo — exceto para dias de inspeção ou recepção de material novo —, esse banco da vida não deve ser dilapidado antes da hora fatal. Até hoje, ocorreu uma única retirada, em 2015, quando a Síria devastada pela guerra sacou sementes de algumas espécies do Oriente Médio.
Diante da alarmante decadência política no
Brasil — galopante, reles e destrutiva —, cabe perguntar que tipo de sementes
da democracia temos em estoque para uso emergencial. Segundo a historiadora e
jornalista americana Anne Applebaum, Prêmio Pulitzer e autora de “O crepúsculo
da democracia: como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome
da política” (Record, 2021), “não existe um arco da História”. “Nada é
inevitável em se tratando de democracia ou ditadura”, escreve ela. “O que
acontece amanhã depende do que todos nós fazemos hoje.” Applebaum observa que
uma ordem mundial liberal nada tem de natural, uma vez que leis de nada servem
sem alguém para fazê-las cumprir. A menos que democracias se defendam juntas,
as forças da autocracia haverão de destruí-las.
A edição mais recente da revista The
Atlantic traz o ensaio “Os bad guys estão
ganhando”, em que ela avisa que as revoluções democráticas são contagiosas
também às avessas: quando derrotadas num país, torna-se mais fácil impedir que
brotem noutro. Cinco são os autocratas que lhe servem de fio condutor — o
venezuelano Nicolás Maduro, o presidente da Bielorrúsia, Alexander Lukashenko,
o russo Vladimir Putin, o chinês Xi Jinping e o turco Recep Erdogan. Para quem
lê o texto a partir de um “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, salta
aos olhos que falta alguém entre os retratados por Applebaum. Ou não. Ela pode
ter considerado Jair Bolsonaro medíocre e delirante em demasia para incluí-lo
entre os bad guys de
alguma envergadura.
Ficamos então nós, sozinhos, presididos por
um capitão incendiário que jura botar a cara no fogo por um ministro
defenestrado quatro dias depois. Na verdade, o único exercício diário do
personagem tem sido botar o Brasil no fogo da incivilidade educacional,
cultural, ambiental e institucional. Cabe registrar a expressão certeira
cunhada nesta semana pela ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia,
referindo-se à incessante destruição do país por dentro: “cupinização
institucional”.
Faltando 180 dias até o esperado 2 de
outubro do primeiro turno eleitoral, e 240 dias para a posse do presidente e
dos governadores eleitos, é hora de juntar o maior número de sementes
democráticas e protegê-las da avalanche de pragas. Antes que se multipliquem
ainda mais nos três Poderes. Melhor nem listar aqui uma sinistra plêiade de
egressos do atual governo, com folha corrida capaz de assombrar qualquer
cidadão normal. Se eleito(a)s, farão do Congresso Nacional um pântano ainda
mais amoral que a legislatura atual.
Daí a utilidade de evocar a iniciativa dos
noruegueses. Enquanto a Terra for o único lar que temos, e o céu nos servir de
generoso teto, vale colher e armazenar o que queremos preservar. Antes que
essas sementes sadias se tornem espécies em extinção.
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