O Globo
A implosão do déficit zero no Orçamento de
2024 pelo próprio presidente Lula —
ao dizer num café da manhã com jornalistas que a meta dificilmente será
cumprida — não escancarou apenas o debate dentro do governo sobre qual deve ser
o tamanho do aperto fiscal. Trouxe à tona também uma série de outras variáveis
e personagens que andavam ofuscados pela narrativa que Fernando
Haddad emplacou tanto no Congresso como no mercado financeiro — ainda
que todos soubessem que se tratava de meta praticamente impossível de cumprir.
A atitude de Lula pôs Haddad num corner de que ele até agora não conseguiu sair e colocou alguns de seus principais auxiliares num indisfarçável estado de barata-voa. O desarranjo foi tão grande que, agora, já não há mais certeza do que seria uma projeção razoável para o déficit, nem de como modificá-la sem desmoralizar ainda mais o ministro da Fazenda.
Nos últimos dias, até mesmo gestores dos
programas prioritários que o presidente quis preservar com sua fala se diziam
solidários a Haddad e lamentavam a forma como tudo ocorreu. No Congresso, os
líderes da base de Lula foram orientados a tomar os microfones e ocupar todos
os espaços possíveis para repetir ad nauseam que este governo tem, sim,
responsabilidade fiscal.
Acontece que, das palavras aos fatos, vai uma
certa distância, e no meio há variáveis que dificultam ainda mais uma solução
sem traumas. Antes mesmo da confusão, já estava suficientemente complicado
fazer uma projeção acurada de despesas e receitas.
Apesar da aprovação de leis que aumentam a
arrecadação — como a que favorece a União nos julgamentos do Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) —, é certo que as novas regras serão
alvo de ações judiciais que poderão protelar por tempo indefinido a entrada do
dinheiro.
Para ter uma ideia da incerteza, só sobre as
multas do Carf as projeções de receita de cinco grandes gestoras de
investimento variam de R$ 15 bilhões (BTG e Santander) a
R$ 30 bilhões (Itaú, Truxt e Warren). Nenhuma, porém, chega perto dos R$ 97,8
bilhões que o governo estimou na proposta enviada ao Congresso. A discrepância
se repete em todas as outras rubricas, tornando a estimativa de receitas de
2024 quase um exercício de adivinhação.
A coisa não fica mais fácil quando se trata
das despesas.
O arcabouço fiscal estabelece que, se a meta
for descumprida, e o rombo for maior que o previsto, são acionados gatilhos que
vão contingenciando recursos e cortando gastos. Só que o próprio Lula fez um
veto à Lei do Arcabouço Fiscal que preserva de todo e qualquer corte o Programa
de Aceleração do Crescimento, o PAC.
Se essa alteração for mantida, não haverá
muito mais a contingenciar além das emendas parlamentares. E, se ela cair, o
governo poderá ter de cortar na carne, porque senadores e deputados também já
fizeram um pacto para que todas as emendas — e não uma parte, como hoje — sejam
impositivas, de pagamento obrigatório. Assim o Executivo não poderá mais
cortá-las.
Não é preciso ser adivinho para saber que o
Congresso não abrirá mão desses recursos de jeito nenhum, ainda mais em ano de
eleições municipais.
Nesta semana mesmo, uma liderança envolvida
nas articulações para resolver o impasse da meta me disse que o governo pode
colocar o déficit que quiser — 0,25%, 0,50% ou 0,75%, não importa —, e o
Congresso aprova. O que os parlamentares não aceitarão é o Palácio do Planalto
querer manter a fachada de responsabilidade fiscal à custa das emendas.
Estamos falando de um presidente que passou a
campanha eleitoral batendo no orçamento secreto e chamando Arthur Lira (PP-AL)
de “imperador do Japão”, mas ao assumir apoiou sua reeleição para o comando da
Câmara. E que, para destravar a aprovação de leis que aumentam a arrecadação,
acaba de liberar o comando e os cofres bilionários da Caixa para o mesmo Lira e
para o Centrão.
No papo com jornalistas em que detonou o
déficit zero, Lula reclamou que o mercado muitas vezes “é ganancioso demais e
fica cobrando uma meta que ele sabe que não vai ser cumprida”. Ele pode até ter
razão. Mas, pelo jeito, para o presidente, algumas ganâncias são mais fáceis de
engolir do que outras.
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