domingo, 5 de maio de 2024

Dorrit Harazim - Soberba humana

O Globo

Depois da tragédia no Rio Grande do Sul, espera-se que o país comece a agir à luz da realidade

Se o teste definitivo de nosso conhecimento (individual e coletivo) está em nossa habilidade de transmitir o que sabemos, das duas uma: ou somos péssimos professores ou alunos impermeáveis. Mudança climática não é propriamente uma novidade — em seus convulsionados 4,5 bilhões de anos (indo para outros 5 bilhões até ser absorvida pelo Sol), a Terra aguentou solavancos ambientais de proporções bíblicas. Ainda assim, ela vai muito bem. O que vai mal são todas as formas de vida da biosfera, que começa 9,5km abaixo do nível do mar e vai até uma altura de 8km acima da superfície terrestre — aquilo que costumamos chamar de “mundo”. Este vai de mal a pior desde que nos apegamos ao conceito de “controle da natureza”, miragem concebida em arrogante suposição: que a natureza existe para conveniência do ser humano.

— Esquecemos como ser bons hóspedes, como pisar sobre o chão da Terra com a delicadeza comum às demais criaturas — resumiu, com melancolia pouco comum, a economista inglesa Barbara Ward, já citada neste espaço.

Acabou. O sistema climático em que crescemos e que proporcionou tudo o que entendemos como cultura e civilização está morto. Para David Wallace-Wells, autor do incontornável “A Terra inabitável — uma história do futuro”, já estamos vivendo no passado recente. Apenas aperfeiçoamos a previsão dos desastres, sem mudar radicalmente de rota. E promessas de governantes vão se dissolvendo no ar — nesse mesmo ar que tanto faltou aos náufragos do feroz dilúvio a varrer o Rio Grande do Sul.

De início, o noticiário da devastação no estado gaúcho condoeu e mobilizou o lado bom samaritano do brasileiro; depois, assombrou autoridades e estudiosos pela intensidade e extensão da tragédia; por fim, a ameaça de um colapso das comportas e de outros equipamentos de proteção de Porto Alegre (população de 1,3 milhão) disparou um alarme diferente até em quem estava a léguas do Rio Guaíba: a percepção clara de que ninguém está seguro em caso de “condições extremas” da natureza.

Orgulhosa capital de um dos estados da rica Região Sul do país, Porto Alegre se viu invadida pelas águas e afundada em incerteza quanto ao viver dali para a frente. De uma hora para outra, os muros da cidade, as comportas e rodovias elevadas se mostraram vulneráveis à inclemência das águas. Mercado público, rodoviária, sede do TRF-4, tudo invadido pelo rio tão querido dos gaúchos. E, quando acadêmicos em hidrologia, finalmente ouvidos, recomendaram às autoridades um plano de evacuação em diversos bairros da cidade, para a eventualidade de “condições extremas”, a realidade do risco se mostrou por inteiro. A orla fluvial do Rio Guaíba tem 72km de extensão, e na Região Metropolitana da capital vive quase 40% da população do estado. Ainda assim, sinal dos tempos ou de fim de mundo, difícil imaginar que algum governante trocasse um ingresso VIP para o show de Madonna por um assento no gabinete da crise climática. Assim é na biosfera que montamos, e não tende a melhorar. Com meio milhão de pessoas sem energia elétrica no Rio Grande do Sul, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, pelo menos discutiu “transição energética justa e inclusiva” com o Papa Francisco no Vaticano.

Resta o medo, essa que é a mais primal e potente dentre as emoções de todo ser humano.

— O medo tem cheiro, da mesma forma que o amor — garante Margaret Atwood.

O conhecemos desde o nascimento, na batalha pela primeira lufada de ar, e com ele convivemos em suas muitas variantes até a hora da despedida. Em sua forma mais natural, ele é a resposta racional e desejável para a percepção de um perigo iminente — seja para fugir ou enfrentar algo, ele convida à ação. O medo neurótico conduz à paralisia, profetiza a pior das possibilidades, segundo o receituário do Dr. Freud, espalha incerteza. Após a tragédia da semana passada, espera-se que o país comece a agir à luz da realidade. Não deve ser impossível encontrar uma rota alternativa a nossa soberba — até porque o único poder capaz disso é, justamente, o ser humano.

 

2 comentários:

Daniel disse...

Verdadeiro, excelente! E os bolsonaristas e ruralistas reduziram as áreas de preservação permanente na beira dos rios, e querem diminuir ainda mais!

ADEMAR AMANCIO disse...

Verdade,humildade a todos é o que desejo de coração,principalmente a mim.