sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O modelo de poder de condomínio - José de Souza Martins*

Valor Econômico

O esquema montado por Bolsonaro e sua família é o de um modelo de condomínio familiar. Usa a trama do parentesco como um único e peculiar sujeito político

O golpe de Estado, segundo os indícios, planejado por Bolsonaro e em julgamento no STF pode não ter sido mera tentativa. Um conjunto extenso de ocorrências, de comportamentos e de reiterações de conduta continuados após o fim do governo Bolsonaro sugere que o golpe foi dado e instituiu um regime político paralelo, alienado, disseminado e ativo.

Utilizando as próprias normas da lei, os Bolsonaros mostraram competência familística para atrair, aliciar e sujeitar gente como os bolsonaristas. Os que têm a mesma ambição de agregar e dominar. A espantosamente larga massa de políticos com vontade de poder. Os que, como eles, não têm nenhum talento para a democracia.

Não só eles são carentes de talento para o exercício das funções próprias da política, que são impessoais funções de Estado. Também os que deles se diferenciam mais por fatores de circunstância. São políticos de segunda classe.

De certo modo, o falso grupo de centro da política brasileira é apenas uma facção política residual, funcionalmente bolsonarista ou funcionalmente qualquer coisa por omissão. Querem o poder, mas não querem as responsabilidades políticas e morais do poder, para o que é preciso ter a competência que não possuem, como ocorre com os bolsonaristas, na bajulação carneiril ao autoritarismo.

O bolsonarismo acha que inventou o golpe de Estado preventivo contra a possibilidade e a necessidade democrática da alternância de poder. É uma corrente ideológica antidemocrática, mas inventiva. Joga com os ardis ocultos na forma meramente democrática do Estado brasileiro.

Para seus militantes, governar é conspirar contra a democracia. Bolsonaro, desde o primeiro dia do seu mandato, demonstrou ter tacitamente renunciado a ele, em favor do porta-voz do neoliberalismo econômico antissocial.

Nos quatro anos do mandato, o Brasil foi dominado por fantasmas da política, por assombrações, como ocorrera durante a ditadura militar, no mandato do general Emílio Garrastazu Médici. Escolhido a propósito, quando a Presidência da República foi ocupada de fato pelo chamado “sistema”, o grupo secreto de militares da extrema direita.

Dobravam as oposições com prisões, tortura, desaparecimentos e assassinatos. Não raro, civis assistiam a sessões de tortura, como se fossem espetáculos de civismo.

Bolsonaro montou um esquema de acesso ao poder e de manutenção do poder em suas mãos, que permitisse manipular as formalidades legais do sistema eleitoral contra o espírito da lei, este baseado no pressuposto de alternância do poder. Ele conseguiu criar um esquema em que oficiais-generais batem continência para um capitão, que neles manda.

Enquanto milhares de brasileiros morriam sufocados por falta de vacinas contra covid, ao lado do então presidente da República, que dera a ordem para cancelar as vacinas do Butantã, o general ministro da Saúde explicou por que fora cancelado o respectivo protocolo de compra: “É simples assim: um manda e o outro obedece”. Ambos rindo e sem a máscara protetiva. O ministro era portador do vírus, já havia contraído covid.

O esquema montado por Bolsonaro e sua família é o de um modelo de condomínio familiar de poder. Aos poucos, as queixas e reclamações da família, suas contradições e fragilidades mostram o que é. Usa a trama do parentesco como um único e peculiar sujeito político.

Atualiza e militariza o modelo de política do “coronelismo” brasileiro contra o qual se alçaram os tenentes das revoluções tenentistas dos anos 1920. Que desestruturaram o Estado brasileiro. Que se associaram a Getúlio Vargas na Revolução de Outubro de 1930. Ficaram mais ou menos no poder até 1º de abril de 1964, quando finalmente deram o golpe e derrubaram o governo constitucional.

Bolsonaro é o filho irrelevante da ditadura. Não participou dela e não teve nela nenhuma expressão. Há uma certa infantilidade em seu empenho de continuar a ditadura derrubada pelo movimento político das Diretas Já e pela Constituição democrática de 1988.

O retrógrado modelo condominial de poder de Bolsonaro depende muito de uma coalização de atrasos sociais. Como a subversão das religiões evangélicas para delas fazer muletas do governo invisível. É o que mostra a massa que age como se o país não tivesse um novo governo a partir de 1º de janeiro de 2023. As igrejas protestantes e evangélicas foram subjugadas pela manipulação anticristã.

Bolsonaro, com sua religiosidade familiar de imitação, de um só versículo e não da Bíblia inteira, conseguiu virar os protestantes e evangélicos do avesso. Não são igrejas do púlpito, mas igrejas do gazofilácio. Não as do livre exame, mas de igrejas da falta de liberdade no exame da palavra de Deus.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).

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