Houve uma época em que os gestos políticos orientavam a opinião pública e os cidadãos. Adversários eram adversários. Podiam conviver educadamente, mas se posicionavam como entidades distintas, donos de posições singulares, que não permitiam movimentos de convergência, a não ser quando estivessem em jogo o futuro da Pátria ou os interesses nacionais. Acordos e alianças se faziam, mas ideias e princípios não se negociavam.
Tudo isso parece hoje pertencer a uma época pretérita que não volta mais. O mundo mudou, a política virou de ponta-cabeça, deixou-se invadir de tal forma pelos negócios e pelo pragmatismo que terminou por perder sua força magnética, de organização de esperanças e utopias.
Houve avanços nesse processo. Algumas ilusões tiveram de ser abandonadas e os protagonistas da política foram convidados a ultrapassar a barreira da pureza, da "ética da convicção" extremada, em benefício da realpolitik, da conquista de eleitores e da conservação do poder - coisas que se diluíram numa sempre mais proclamada "ética da responsabilidade".
O Partido dos Trabalhadores (PT) foi, na época pretérita que não volta mais, o partido que mais longe levou a ética extremada da convicção. Revestiu-a de ideologia, de promessas reformadoras, de compromissos com a população pobre e abandonada. Fez disso uma plataforma que o projetou para o primeiríssimo plano da política nacional e o converteu no principal partido do País.
Vieram, porém, os governos Lula (2002-2010) e tudo se transformou. O pragmatismo cortou o partido de cima a baixo, ao mesmo tempo que o personalismo de Lula o cortou da esquerda à direita. O foco passou a ser muito mais o Estado do que a sociedade civil ou a opinião pública, e o partido se entregou ao controle de posições políticas fortes, convencido de que assim a mudança social aconteceria. Perdeu alguns anéis nessa operação, assistiu à debandada de parte de seus setores mais à esquerda e aceitou o protagonismo inconteste de sua liderança máxima, que se tornou o condutor único de todas as operações, da nomeação de ministros à escolha de candidatos às eleições.
Entretanto, houve uma pedra no caminho. Lula e o PT não conseguiram entrar em São Paulo, que se manteve - Estado e capital - sob controle do PSDB. O desafio paulista cresceu com a vitória de Dilma Rousseff. Afinal, como projetar a preponderância petista em Brasília sem a conquista do principal Estado do País, epicentro da vida econômica e social brasileira?
O pragmatismo foi, então, radicalizado. Para as eleições municipais de 2012, decidiu-se fixar uma candidatura que tivesse cheiro de tinta fresca, com a qual se pudesse contestar o predomínio tucano. E optou-se, mais uma vez, por dar uma guinada para o centro, de modo a neutralizar a força que o PSDB acumulou nesse segmento crucial.
Ainda que de modo meio torto, o PT que se subsumiu a Lula passou a mostrar maturidade, arquivou seus arroubos ideológicos, trocou a pureza pela "responsabilidade". Converteu-se em ator principal e fez com que todos passassem a considerá-lo com seriedade.
O problema é que o ingresso do PT na arena da grande política está se fazendo pela porta da pequena política, onde são feitos pactos com o diabo, ou com jurados inimigos de ontem, pragmaticamente.
Política sem acordos e coligações, sem barganhas e concessões, é como noite sem lua. Não avança nem produz resultados positivos. Mas há modos e modos de se fazer isso.
Ao aceitar os afagos de Paulo Maluf, na cerimônia em que o deputado aderiu à campanha de Fernando Haddad, o PT de Lula reiterou sua conversão ao jogo frio da política. Trocou a paixão pelo cálculo, pela contagem de apoios, minutos de propaganda e votos potenciais. Foi, porém, com sede total ao pote. Permitiu que o líder do PP explorasse ao máximo a aproximação. O gesto simbólico nos jardins de sua mansão foi a cereja no bolo.
Houve ganhos para ambos os lados. O PT incorporou 1"30"" à sua propaganda e passou a dispor, em tese, de acesso mais privilegiado aos redutos eleitorais malufistas, ainda que sem garantias. De quebra, desafinou o coro dos contentes, mostrando que agora são outros tempos, outras amizades, que não somente os tucanos podem comer na seara do centro e da direita.
Maluf, por sua vez, recebeu oxigênio adicional para seguir fazendo política, quem sabe agora com o benefício de não ser mais visto como o bicho-papão do autoritarismo e da corrupção. Também não teve garantia de nada, mas soube como extrair dividendos evidentes da operação. Ganhou uma exposição que, em outros tempos, seria inimaginável. Emplacou, ainda por cima, um aliado na Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades.
As perdas e os danos do acordo, porém, parecem a essa altura maiores do que os ganhos. O PT perdeu Luiza Erundina, ainda que ela, ao desistir da candidatura a vice, mas não da campanha, tenha oferecido ao partido uma aura de "dignidade política" que ajuda a contrabalançar as coisas. Perdeu também excelente oportunidade para traduzir em fatos o proclamado desejo de fazer uma campanha com o selo da renovação. Como convencer o eleitor de que algo "novo" desponta, quando o "velho" aparece com ele abraçado quase ao ponto de sufocar?
A democracia também perdeu, pois o pragmatismo político usurpou o lugar que nela devem ter o realismo, a coerência, os valores e os ideais, aumentando ainda mais o fosso que distancia as pessoas da política institucionalizada. Consolidou-se um modo de fazer campanha eleitoral. Nele, os políticos se abraçam, fazem festa, tramam e decidem. Num segundo momento, os eleitores votam. Ou nem isso.
O que resultará disso, no curto, no médio e no longo prazos, é questão inteiramente em aberto.
Professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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