- O Estado de S. Paulo
Eles simbolizam o governo Bolsonaro: a
política anticientífica, o arbítrio e a anarquia
A ema, o policial e o intendente são três
símbolos que talvez melhor caracterizem o governo Bolsonaro: a política
anticientífica, o arbítrio e a anarquia.
A ema foi sábia. Ao ver o presidente com a
caixinha de cloroquina, dele fugiu, mostrando ter melhor discernimento do que
boa parte dos brasileiros, que aderem a poções mágicas. Deve ter ela pensado:
será que perdeu o juízo? Perguntou-se, mesmo, pelo tipo de humano que ele
representa ao negar a ciência, pregar a morte e impor a desordem sanitária. No
reino dito animal, isso não seria possível, quanto mais não seja, porque sempre
procuram instintivamente a própria sobrevivência. Ora, se os humanos foram
agraciados com a razão, eles obtiveram o uso da liberdade de escolha para, em
princípio, melhor organizarem suas relações, progredindo no conhecimento.
Vacinas seriam um dos melhores exemplos disso.
Contudo uma porção dos humanos, continuava
ela a pensar, prefere empregar a liberdade de escolha para o mal e o ódio ao
próximo. Em vez da escolha pela vida, optam pela morte. A ema, em seu bom
senso, preferiu afastar-se, correndo, para ter maior segurança. Será que os
humanos brasileiros não deveriam fazer a mesma coisa? Em todo caso, impeachment
e eleições foram instrumentos criados constitucionalmente por eles para darem
conta de tais anormalidades.
O policial que ameaçou prender um cidadão por se negar a tirar de seu carro um adesivo antibolsonarista expôs o arbítrio da extrema direita em ação. Um indivíduo fardado se acredita dotado da missão de aplicar por ele mesmo a Lei de Segurança Nacional, como se fosse a encarnação de um tribunal, do Poder Judiciário e do Ministério Público. Quando isso chega a acontecer, é porque todos os limites estão sendo ultrapassados, o que significa dizer que doravante reinarão a desordem e políticas liberticidas. Qualquer pessoa passará a ficar temerosa de expor suas opiniões, expressar seus pensamentos e criticar o presidente e suas políticas. É o medo pairando sobre todos. Eis por que a ideologia bolsonarista tem como norte de suas ações o domínio das Polícias Militares, Civis e Federal. Elas passariam a ser uma força auxiliar do grupo encastelado no poder, aplicando seus próprios objetivos, na mais completa violação da lei e da Constituição.
A ema deve ainda ter se perguntado: será
que os outros humanos vão contemporizar com isso? Se o fizerem, serão
insensatos, correndo para o abismo.
Entretanto, a sábia ema ainda não tinha
visto tudo, o que a deixa ainda mais espantada, perplexa. O presidente escolheu
para ministro da Saúde um general com a missão de aplicar a cloroquina e outras
drogas inúteis, embaladas num tal de “tratamento precoce”. Pensou em seus
antecessores medievais que acreditavam em toda espécie de barbaridade médica.
Felizmente, naquele então, e mesmo hoje, os
animais não humanos não compartilhavam de tais superstições e fórmulas
absurdas. Isso se tornou ainda mais ininteligível pelo fato de os humanos terem
entrado na rota do progresso no que diz respeito à ciência e ao conhecimento,
com descobertas incríveis a partir de experiências criteriosas em empresas,
centros de pesquisa e universidades. Surgem, porém, agora os representantes do
atraso de antanho, lutando com todas suas forças contra a ciência e seus
avanços. Uma coisa é a superstição anterior à ciência, outra a posterior, que
pretende combatê-la. Até onde os brasileiros humanos suportarão tal forma de
inumanidade?
E como o horrível parece não ter fim, o
intendente nomeado para o Ministério da Saúde, ao contrário de seus
antecessores, que agiram dignamente, mostrou-se totalmente servil ao
presidente, acompanhando-o na política da morte e desonrando a farda que ainda
usa por ser general da ativa. Numa mostra típica de ausência de pensamento,
subordinando-se, proferiu uma frase memorável: “Um manda, outro obedece”. Escaparam-lhe
pensamentos básicos, como o da desobediência devida quando a ordem se afasta de
valores e princípios. Ordens arbitrárias não são, nem devem, ser seguidas.
Trata-se de uma conquista civilizatória, válida para a vida civil e a militar.
Oxigênio faltando em hospitais, pessoas morrendo sufocadas, e ainda lhes era
recomendado o uso da cloroquina! A ema achou melhor esconder sua cabeça.
Coroando todo o processo, o general seguiu
orientação presidencial para desrespeitar o regulamento militar ao comparecer a
uma manifestação política, o que é vedado. A consequência não poderia ser outra
senão a punição. Ora, sob pressão do presidente, o comandante do Exército optou
por nenhuma punição, apagando o corrido, fazendo do feito uma desfeita para sua
própria instituição. Escancarou a porta para a anarquia militar.
Os fundadores da República inscreveram na
Bandeira o lema positivista “ordem e progresso”. Comte entendia que nenhum
progresso, fruto da ciência, poderia realizar-se sem mudanças ordenadas, na
ausência do que prevaleceriam a desordem, a ruptura e a violência. No que devem
estar pensando os fundadores militares da República?
*Professor de filosofia na UFGRS
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