- Falei & Disse
A diferença é compreendida quando a família se senta à mesa, nos horários das refeições, quando tem mesa posta.
Ao ter que comprar um quilo de feijão por
R$ 14,00 ou uma bandeja de ovos por R$ 22,00, o preço atual cobrado nos supermercados,
minha mãe diria que a “carestia está muito alta” e que a comida dos pobres está
custando os olhos da
cara.
Custar os olhos da cara, um dito popular, é
referência à cegueira dos poetas da Grécia antiga, que tinham seus olhos
danificados pelos reis gregos, por inveja. Ou seja, custar os alimentos os
olhos da cara é tornar inacessível a alimentação básica do brasileiro,
assim como os poetas gregos da antiguidade, que não tinham como enxergar sem os
seus olhos.
Já não é possível esconder a carestia, uma
palavra quase esquecida desde a adoção do Plano Real, em 1994. Já se vão
27anos.
É quase impossível se viver hoje com um
salário mínimo em qualquer região do país. Em todos os lugares os preços
tomaram um rumo totalmente sem controle e até mesmo sem lógica. O óleo de soja
subiu 104%; o feijão, 81,4%; o arroz, 75,3%; e a batata inglesa, 67,3%. Já o
gás de cozinha subiu quase 22% no acumulado do ano, enquanto a gasolina teve
alta de 34,8% só nos primeiros meses de 2021. (Periferia em Movimento)
Os preços dos produtos que integram a cesta
básica do brasileiro ficaram mais caros. Segundo a última pesquisa feita pelo
IBGE, o preço das carnes em geral subiu 35% no país, nos 12 meses até abril.
Em 2020, a inflação oficial medida pelo
Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) ficou em 4,5%, enquanto o preço dos
alimentos acumulou alta de 15,5%.
Qual cidadão, leigo nos assuntos da economia, entende como se processam os cálculos sobre a relação entre os indicadores publicados e os preços praticados na vida real do brasileiro?
Também não entende porque o Brasil produz
grande quantidade de grãos para exportação, quando sua população passa fome.
A diferença é compreendida quando a família se
senta à mesa, nos horários das refeições, quando tem mesa posta.
Quem primeiro compreende e sofre com essa
situação são as mulheres, geralmente mães e donas de casa com a tarefa diária
de gerenciar os recursos reservados a alimentação da família, e dividir o que
tem para comer de modo a ter algo para colocar nos pratos dos filhos.
Viver com um salário mínimo para uma
família com dois filhos deveria ser um exercício para os dirigentes políticos
deste país. Alugar um espaço para morar na periferia por R$ 300, pagar um
botijão de gás a R$ 90, pagar energia elétrica, transporte e despesas com
alimentação, materiais de higiene e outros. Como consegue a família, ainda,
comprar roupas, sapatos e satisfazer outras necessidades básicas dos filhos?
Os movimentos de mulheres têm
uma longa história na luta contra a carestia no Brasil. Foi no dia 27 de agosto
de 1978 que mais de 20 mil mulheres moradoras das periferias de São
Paulo ocuparam a Praça da Sé, na capital, para protestar contra a
carestia.
Ana Dias era uma das articuladoras do Movimento Contra a Carestia, que em
algumas áreas era também chamado de Movimento
Contra o Alto Custo de Vida, que surgiu quando a situação da época
se assemelhava ao que estamos vivendo atualmente. O ano era 1978, em plena
ditadura, e o Brasil vivia o milagre
econômico, que tinha como meta “fazer crescer o bolo para
depois repartir”. No entanto, o que se registrou foi o crescimento da
concentração de renda, evidenciando a ampliação da desigualdade social.
Em 1979, Ana Dias teve seu marido, Santo
Dias, membro da Pastoral Operária, morto num movimento pacífico de greve
dos trabalhadores metalúrgicos.
Já havia sido assinada a Lei de Anistia, um
grande passo para o fim da ditadura militar. Mas os militares ainda continuaram
no poder até 1982.
A pandemia tem contribuído para que a
situação das famílias de um modo geral se agrave, mas o que ocorre hoje no país
é resultado de um modelo socioeconômico que já não garante o mínimo de
equidade, agravada pelo desmonte das políticas públicas implantadas sob a
guarda da Constituição Cidadã de 1988.
Segundo alguns estudiosos, “o
surto de carestia é apenas uma das faces do problema; o mais grave é a volta da
fome e do fenômeno da insegurança alimentar cotidiana, que afeta mais de 120
milhões de brasileiros – mais da metade da população. Um crime premeditado pela
ganância capitalista contra o povo num país que produz milhões de toneladas de
safras de grãos e possui rebanho suficiente para garantir com fartura a
alimentação de todos os brasileiros”.
A impressão que se tem é que quanto mais o
capitalismo avançou no mundo, foi deixando um rastro de pobreza e desigualdade
que se aprofunda na proporção da “riqueza” que gera. Não só pela mais valia que
subtrai da força trabalhadora, mas pela forma desastrada como se alastrou pelos
continentes, corrompendo mentes, destruindo o meio ambiente, os rios, as
florestas, eliminando os animais.
Vivemos num país em que, acompanhando s
situação de pobreza e fome, se desenvolve sentimentos de alta competitividade,
egoísmo, ganância, inveja, machismo e resignação, medo, humilhação. Também
temos um governo que não cuida das pessoas e põe a Constituição sob ameaça a
cada palavra.
A solidariedade chega e até é apresentada à
mídia, mas por mais alto que seja o sentimento de solidariedade, é impossível
suprir necessidade de 52 milhões de pessoas que vivem em situação de pobreza,
sendo 13,7 milhões em pobreza extrema, aquela que leva famílias inteiras a
viver nas ruas protegidas por caixas de papelão, ou escondidas em regiões como
o semiárido brasileiro, áreas de antigos quilombos ou indígenas, e nas beiras dos
rios, em palafitas.
Nas áreas urbanas do país
sobrevivem 84,4% da população na mais complexa adversidade e precariedade dos
serviços públicos. Falta de saneamento, segurança pública praticamente
inexistente, serviços de água em luz em sua maioria irregulares, tendo alguns
itens como gás de cozinha, televisão e internet controlados por milícias, como
é o caso de algumas capitais.
Atualmente, a fome é a questão maior, mas a
pobreza não é só por falta de alimentos. A pobreza é caracterizada também pela
precariedade dos serviços públicos, pelo impacto gerado por educação de baixa
qualidade e pela falta de oportunidades para o desenvolvimento psicossocial das
pessoas, sobretudo em idade jovem.
As pessoas em estado de pobreza se sentem
inseguras, impotentes e inferiores. Tomam a si a culpa por uma situação de vida
que se perpetua através de gerações.
Em artigo sobre A Perversidade do Sistema
Capitalista, O Que Fazer… Pertti Simula, psicanalista, aponta que é preciso,
entre outras questões, “desenvolver uma estrutura social em que todos
participem cada vez mais na discussão e tomada de decisões sobre assuntos
importantes para promover a responsabilidade coletiva e a solidariedade. Assim
as ações destrutivas são prevenidas e impedidas pela responsabilidade coletiva.
A participação aumenta a responsabilidade coletiva, a solidariedade e
igualdade”.
É chegada a hora de uma reflexão ousada e
uma grande escuta. Este modelo econômico não serve mais. Suas mazelas têm
agravado a vida no planeta Terra e tem maltratado a vida dos brasileiros.
Hoje, mais de 473 mil vidas perdidas para o
vírus e pelo descaso para com aquisição de vacinas.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga.
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