sexta-feira, 21 de abril de 2023

José Eduardo Faria* - As PECs e a erosão constitucional

Folha de S. Paulo

Uso desmedido de emendas corrói estrutura, coerência e legitimidade da Carta

Aprovada no final de 2021, a Proposta de Emenda Constitucional dos Precatórios modificou a metodologia de cálculo do limite do teto de gastos, permitindo maiores dispêndios no Orçamento de 2022. Menos de um ano depois, a aprovação da PEC da Transição, após as eleições presidenciais de outubro, voltou a modificar os dispositivos sobre gastos, desta vez para acomodar mais despesas, sob a justificativa de estimular programas sociais. Ela também determinou a criação de um novo marco fiscal até agosto de 2023, e o governo já deixou claro que recorrerá a uma PEC para introduzi-lo.

Se caminhar nessa linha, serão três alterações constitucionais discordantes sobre um mesmo tema num período muito curto de tempo. Por isso, a dúvida é saber se a aprovação de tantas PECs não acabará introduzindo na Constituição normas que tendem a desfigurá-la. Como entre a promulgação da Carta e dezembro de 2022 já foram aprovadas 128 emendas constitucionais, essa indagação ganha ainda mais relevância.

Na medida em que a vida social e econômica é dinâmica por sua natureza, em princípio toda Constituição deve estar aberta a uma revisão ou sujeita a receber emendas. Revisões constitucionais também são necessárias para impedir que a vontade política de uma geração se imponha de modo descabido sobre as seguintes. Quando permanece imutável, a Constituição acaba ultrapassada pelos fatos, tornando-se ineficaz. Contudo, se alterada excessivamente e na mesma velocidade em que esses fatos ocorrem, perde força como marco normativo.

Por isso, só o uso responsável e prudente das emendas permite que a Carta mantenha eficácia ao longo do tempo, preservando as estruturas do regime político, os direitos individuais, as liberdades fundamentais, as regras eleitorais e os marcos normativos das finanças públicas. Ao assegurar uma combinação entre estabilidade e flexibilidade, emendas são um fator de estabilização institucional.

Essa é a razão para que os requisitos para a aprovação de uma PEC sejam mais complexos do que as regras para mudanças na legislação infraconstitucional. É uma forma de proteger a Constituição contra alterações decorrentes de razões conjunturais. São esses requisitos que permitem ao texto constitucional preservar sua força normativa, ao mesmo tempo em que se adapta às mudanças sociais.

O problema é que os congressistas nem sempre seguem rigorosamente os procedimentos previstos para a aprovação de uma emenda. Em razão de seus interesses eleitorais, muitas vezes desprezam o próprio regimento interno da Câmara e do Senado, como ocorreu com a aprovação da PEC 1/22, que abriu caminho para o populismo fiscal a menos de três meses das eleições. Sua aprovação foi articulada pelo Palácio do Planalto e pelo centrão com o objetivo de reverter o desempenho de Jair Bolsonaro nas pesquisas.

Na prática, as PECs formuladas mais por razões conjunturais do que estruturais não são propriamente emendas. Não passam de uma sucessão de novos artigos de um texto constitucional que vai sendo reescrito conforme as conveniências dos eventuais ocupantes do Executivo e do Legislativo. Em belo artigo, Rogério Arantes e Cláudio Couto mostraram que, de todas as emendas aprovadas nos primeiros oito anos de vigência da Constituição, só 31,2% tratavam de regras sobre o funcionamento das instituições. As demais 68,8% tratavam de políticas públicas, que mudam de governo para governo.

Quando uma Constituição é alterada continuamente, a hipermutabilidade de suas normas corrói sua estrutura, sua coerência e sua legitimidade, o que abre caminho para insegurança jurídica e instabilidade econômica. O risco de novas PECs é acelerar ainda mais a perda da autoridade normativa da Constituição.

Se do ponto de vista formal o texto constitucional ainda sobrevive, por dentro vem sendo erodido há tempos por emendas formuladas sem um padrão temático e voltadas às questões conjunturais.

*Professor titular e decano da Faculdade de Direito da USP, é chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito

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