sexta-feira, 21 de abril de 2023

Maria Cristina Fernandes - Da matança nas ruas à das escolas

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Como as redes sociais ajudaram na transformação de um país onde mendigos morriam para existir naquele em que é pela autoria de assassinatos que jovens almejam reconhecimento

A camiseta, anunciada no Mercado Livre, custa R$ 66,90. Na descrição das características do produto, consta que é “100% algodão”, “silk screen”, masculina, com gola redonda e manga curta. A camiseta preta, estampada de ódio em vermelho, já vendeu mais de 100 unidades. Ainda está disponível nos tamanhos P e GG e é enviada em até um dia útil depois do pagamento. Numa das dez fotos do anúncio, o autor de um massacre escolar nos Estados Unidos posa com uma camiseta igual.

O vendedor, do interior de São Paulo, tem o perfil mais qualificado do site pelo bom atendimento que presta e pela entrega dos produtos no prazo. Coloca-se à disposição para eventuais dúvidas. Toma a iniciativa de esclarecer a primeira delas: “Aviso à patrulha do politicamente correto, não incitamos, não fazemos apologia, somos contra qualquer tipo de violência, seja essa física ou verbal! Assim como somos contra bullying e a favor da livre manifestação de toda e qualquer forma de expressão, menos apontamentos e terceirização de culpa”.

O anúncio é apenas um dos indícios do culto, originado nos Estados Unidos e replicado no Brasil, à dupla que perpetrou o ataque na escola em que estudava no estado americano do Colorado. Outros se seguiram nos Estados Unidos com um número ainda maior de vítimas, mas é a dupla de Columbine que segue sendo reverenciada. O mercado atende aos fãs com jogos eletrônicos e sites com fotos, passagens dos diários que ambos mantiveram nos anos em que planejaram o ataque e vídeos caseiros da dupla que foram apreendidos, mas seguiram em circulação.

A efeméride de 20 de abril, não por coincidência, dia do nascimento de Adolf Hitler, cultuado pela dupla, foi identificada pela equipe montada pelo Ministério da Justiça reunindo a Polícia Federal e policiais civis de todos os estados como responsável pela inflação de ameaças nas redes. Em dez dias, foram registrados mais de 1,5 mil boletins de ocorrência e 965 intimações para adolescentes prestarem informações.

As operações foram mantidas em sigilo para não aumentar o clima de pânico entre pais e alunos depois da morte de uma professora e quatro crianças em atentados que ainda deixaram outras 11 crianças e 5 professoras feridas. Os ataques ocorreram em apenas duas semanas, em uma escola estadual em São Paulo, numa creche municipal em Blumenau, numa escola adventista em Manaus e numa escola municipal no Ceará.

Das grandes crises que mobilizaram o aparato de segurança do Estado desde a posse de Lula - a invasão dos Poderes em 8 de janeiro, o combate ao garimpo ilegal na reserva dos Yanomamis e os ataques do crime organizado no Rio Grande do Norte -, esta é a mais disruptiva. E também aquela que o Ministério da Justiça considera a mais difícil de ser debelada porque não tem uma única causa.

Entre o bullying e o culto ao neonazismo, crianças e adolescentes viveram uma pandemia em que não apenas foram confinadas em ambientes familiares muitas vezes dominados por tensões e tragédias, como foram empurradas para a internet e para as redes sociais.

Se o antissemitismo foi cultivado por séculos antes de eclodir com o nazismo, a cultura da intolerância ganhou tração com o algoritmo. No levantamento do Instituto Sou da Paz, entre mortos e feridos de 2002 a 2022, identificaram-se 93 casos, excluindo-se os anos de 2020 e 2021, quando as escolas, em grande parte, funcionaram remotamente. O ano de 2022, com o retorno das aulas presenciais, trouxe um quarto dos ataques com armas de fogo desse período. No momento em que as escolas poderiam funcionar no acolhimento das agressões vividas durante a pandemia, acabaram por se transformar nos lugares em que a violência encontrou vazão.

Junto com o ano de 2023 chegou a onda de ataques com armas brancas - quatro, em duas semanas. A matriz de sua violência tem sido associada ao 8/1 não apenas pelo entorno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva quanto pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. Se a intentona levou a um cerco crescente por maior regulação das redes sociais, o ataque nas escolas acabou por torná-lo inevitável. Em ato no Palácio do Planalto, Moraes se indagou por que a inteligência oficial não poderia ser usada para identificar e remover das plataformas as mensagens de ódio.

As plataformas resistem não apenas a investir em alternativas capazes de impor barreiras a um modelo de negócios que potencializa a audiência de conteúdos extremistas como até mesmo a exigir a simples identificação dos usuários. No embate provocado pelos ataques às escolas, porém, nenhuma foi tão longe quanto o Twitter, que desafiou o MJ antes de voltar atrás na disposição ao diálogo.

O apelo da liberdade de expressão é usado tanto pela base bolsonarista como por parlamentares governistas contra a regulação das redes. Argumenta-se que a atuação do MJ faculta ao Executivo de plantão a discricionariedade da punição das redes sociais. As mortes, porém, podem levar o Congresso a sair da letargia e votar, ainda em abril, restrições e punições mais efetivas no projeto de lei das “fake news”.

Para pressionar o Congresso, o MJ resolveu editar uma portaria que permite a instauração de processo administrativo para apurar a responsabilidade das plataformas na propagação de conteúdos que incentivem ataques contra o ambiente escolar ou que façam apologia a esses crimes. Escudou-se na Lei de Defesa do Consumidor para livrar-se da acusação de que uma portaria não se sobrepõe a uma lei.

Esta lei é o Marco Civil da Internet, de 2014. Seu artigo, em nome da liberdade de expressão, condiciona a responsabilização de redes sociais por danos de conteúdo gerado por terceiros ao descumprimento de ordem judicial. A este artigo atribui-se parte da leniência das redes sociais na moderação de conteúdo.

A portaria ainda prevê que as plataformas sejam orientadas a impedir a criação de novos perfis a partir de endereços virtuais em que já tenha sido detectada a disseminação de conteúdo extremista. A resistência do Twitter, que alegou a inexistência de previsão legal para a portaria, só aumentou a disposição do STF de levar a julgamento a constitucionalidade do artigo 19 do marco civil. Os ministros estão determinados a pautar o tema - ou pelo menos assim se anunciam para pressionar o Congresso.

Quando Columbine apareceu no mapa-múndi, as redes sociais ainda engatinhavam nos EUA em plataformas restritas. Não por acaso, como contou Dave Cullen em “Columbine” (Darkside, 2019), foi em seu diário que um dos assassinos registrou: “Nos vingaremos [da sociedade] e então poderemos existir num lugar atemporal, num lugar cheio de alegria e de felicidade”.

A epidemia de assassinatos em escolas que tem invadido o Brasil demonstra a atualidade desse comportamento de matar para existir perante uma comunidade da qual se sentem alijados. São crimes anunciados e, muitas vezes, reproduzidos nas redes.

Este é um fenômeno que não existia no Brasil no início quando Lula chegou pela primeira vez ao poder. O paradigma da crueldade juvenil àquela época foi estabelecido por quatro jovens, que tinham entre 17 e 19 anos, quando atearam fogo e mataram o pataxó Galdino dos Santos num abrigo de ônibus em Brasília.

Pretendiam ser esquecidos pelo crime quando fugiram, mas a placa do carro em que estavam foi anotada. Eles foram presos, julgados e condenados, mas cumpriram metade da pena prevista. Vinte e seis anos depois, retomaram sua vida em liberdade.

O país voltou a ser sacudido em 2004, quando o país era governado por Lula, São Paulo, por Geraldo Alckmin, e a capital, por Marta Suplicy. Na madrugada de 19 de agosto daquele ano, dez pessoas que dormiam enroladas em cobertores no centro de São Paulo foram golpeadas na cabeça. Quatro morreram na hora e duas, no hospital. Três dias depois, um novo ataque contra cinco moradores de rua, também na capital paulista, matou um.

Em pesquisa sobre o tema, o antropólogo Daniel De Lucca registrou o esforço de moradores de rua da região em identificar os corpos e evitar a indigência. De um deles ouviu que, pelo menos na hora de morrer, dada a atenção despertada pela violência, eles poderiam ser tratados como gente com enterro em caixão de madeira. Deparava-se com a inserção social pela morte.

Em artigo para a coletânea “Novas faces da vida nas ruas” (Edufscar, 2016), organizada por Taniele Rui, Mariana Martinez e Gabriel Feltran, De Lucca recupera a pedregosa investigação que levou um ano e dois meses para pedir a prisão preventiva de cinco policiais militares e um segurança clandestino que teriam sido motivados ao crime por queima de arquivo. Até uma testemunha do crime foi morta durante a investigação. O caso até hoje perambula sem decisão definitiva no Judiciário.

O desfecho das mortes nas escolas não poderia ser mais distinto. Os três adolescentes foram presos em flagrante e o jovem de 25 anos que matou as crianças na creche de Blumenau se dirigiu até a delegacia para se entregar.

Mendigos nunca deixaram de ser mortos num país que renova a licença da coabitação do crime organizado com a multidão de indigentes que vagueia pelas grandes cidades. Criança assassinada em escola também não chega a ser novidade no país da bala perdida. O que parece diferenciar a conjuntura é que, além da violência gerada pelos extremos da degradação social, o país importou crimes de ódio potencializados pelas redes sociais.

Entre os assassinatos de moradores de rua e aqueles de crianças nas escolas está uma fração das mudanças pelas quais o Brasil passou. Das vítimas cuja existência foi reconhecida pela morte à leva de jovens que almeja reconhecimento pelo assassinato de semelhantes, as redes sociais aumentaram o alcance do macabro espetáculo da polarização.

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