segunda-feira, 26 de junho de 2023

Paulo Fábio Dantas Neto* - Nevoeiro de guerra fria a partir de uma guerra quente e suja

Este é um breve artigo genuinamente interrogativo. As perguntas não são originais, podendo ocorrer a qualquer bom senso minimamente informado, nem um recurso retórico. São imposição de uma ignorância pessoal média, mas incômoda, que me impele a compartilhar várias dúvidas com os leitores.

Refiro-me à situação que se configurou na Rússia neste fim de semana, com uma rebelião, rapidamente interrompida por acordo, de um poderoso grupo mercenário contra o Estado que o financia e a virtuais implicações do episódio, não só sobre a guerra da Ucrânia, como sobre guerra e paz no resto do mundo, sobre instituições, governos democráticos, autocracias e sobre a segurança da vida humana diante de ameaças globais que podem ser aliviadas, ou agravadas, pela conjuntura que esse evento esboça. 

Ciente de que não detenho informação e maturação analítica bastantes para tratar assertivamente do tema, recorri não só ao formato interrogativo, como a conversas e leituras improvisadas e em boa hora propiciadas por amigos da Roda Democrática e da Universidade, que são mais informados sobre o assunto do que eu, sendo alguns, inclusive, formadores de opinião. Mesmo após essas breves leituras e conversas, o tema continua sob brumas para mim. Eis as questões que pude formular:

1. Após o acordo de ontem (24.06) - que deteve a marcha dos rebelados em direção à capital russa, mas manteve o Grupo Wagner intacto - como ficarão os vínculos entre seu chefe, Yevgeny Prigozhin e Moscou? Esses laços serão rompidos, mantidos ou renegociados? 

2. Na hipótese de que sejam rompidos, como ficaria a política da Rússia em outras regiões do mundo, mormente na África, onde, como pude entender (posso ter entendido mal), o grupo Wagner tem sido fundamental para o que chamam "desocidentalização" da Rússia? Rompendo esses vínculos, ou os reduzindo drasticamente, o regime russo abrirá mão desses objetivos geopolíticos e estenderá uma suposta rendição sua ao Ocidente, para além da guerra da Ucrânia?

3. Ainda que uma rendição russa ocorra, a desativação operacional do Grupo Wagner depende apenas da Rússia, ou esse grupo tem autonomia para manter seus contratos de guerra e de negócios com ditadores mundo afora e até para celebrar outros, com ditadores e/ou agentes econômicos?

4. Na hipótese de que não se rompam os vínculos entre Prigozhin e Moscou e ainda que sejam renegociados, qual o risco de conflitos armados já existentes fora da Ucrânia recrudescerem?

5. Quais as alternativas a Putin, do ponto de vista do estado russo, que, desde o fim da URSS, padece de uma fragilidade institucional que se pode avaliar como um "amorfismo" útil à ação de aventureiros e predadores de vários tipos? Está no horizonte uma solução do tipo da que afastou Khrushchev da liderança soviética, em 1964, após ascensão espetacular na década anterior?

Abro parênteses para contextualizar essa pergunta: a ascensão do personagem citado deu-se no bojo da desestalinização interna da URSS e de uma agenda de "feitos" de repercussão internacional, incluindo vantagem inicial sobre os EUA na corrida espacial. Mas encontrou limite após o desfecho da crise dos mísseis em Cuba, em 1962, visto, no contexto da guerra fria, como desfavorável à URSS, sendo, por consequência, um fator de desprestígio de Khrushchev junto à cúpula do partido e do estado soviéticos.

Assim, complemento a pergunta: haveria, na atual autocracia russa, a possibilidade de sair das sombras um ator em algo parecido com um Leonid Brejnev, o longevo substituto do líder caído em desgraça?

6. Quais as chances de Putin tirar partido de uma situação que responda negativamente à indagação anterior? Poderá pressionar os agentes do Estado, aproveitando-se do possível fato de que o enfraquecimento, ora aparente, do seu poder pessoal represente o risco, para o estado russo, de perecer junto com ele? A mesma situação que enfraquece Putin não exige do sistema russo respostas rápidas e "exemplares"? Quem, além de Putin, poderia dá-las e vendê-las, como necessárias, ao povo? Para impô-las internamente, a autocracia russa despir-se-ia de máscaras, abrindo mão da sua fisionomia eleitoral?

7. Por fim, se de fato o contexto de caos na Rússia oferecer a saída que Zelensky espera para ganhar a guerra para si, a Ucrânia e a Otan, até que ponto isso oferece - também de fato - um caminho promissor para o ocidente, as democracias e para a redução de risco nuclear e/ou de devastação química ou biológica? Em que medida isso depende ou independe das respostas aos itens anteriores?

Paro por aqui, para ser genuinamente interrogativo, como prometi. Encerro com uma reflexão: para evitar pacifismo romântico e inócuo, devemos, sim, como desejosos de paz, celebrar eventos que encurtem a guerra através da derrota ou recuo do invasor russo; e também - guerra da Ucrânia à parte – evitar aquele tipo de pensamento desejoso que quer matar, mentalmente, mensageiros de eventuais más notícias que esse episódio com o Grupo Wagner possa trazer ao nosso mundo comum.

*Cientista político e professor da UFBa

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