quarta-feira, 5 de julho de 2023

Nicolau da Rocha Cavalcanti* - A opinião

O Estado de S. Paulo

Quantas gerações de leitores não tiveram sua preocupação com a coisa pública despertada pela leitura diária dos editoriais?

Recentemente, Wilson Gomes, professor titular de Teoria da Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), questionou a publicação dos editoriais nos dias de hoje. “Considerando como os novos leitores julgam a cobertura pelos editoriais, que não têm valor factual, não seria mais vantajoso para o jornalismo acabar com o editorial?”

Jornalismo não é um fato da natureza. É construção humana, fenômeno histórico, com muitas possibilidades de configuração. A pergunta é, portanto, válida. Faz sentido que um jornal continue publicando, hoje em dia, sua opinião?

Certamente, se os editoriais fossem uma opinião arbitrária, similar ao polegar do imperador nas arenas romanas, eles não teriam muita utilidade. Mas os editoriais dos grandes jornais nunca quiseram ser isso. Nunca pretenderam ser apenas voto opinativo, sem fundamentação.

Aqui está o primeiro aspecto a destacar. O editorial não é mera expressão da opinião dos donos do jornal, como também não exprime o ponto de vista pessoal do diretor de Opinião ou dos editorialistas. Um editorial que expressasse a opinião de uma pessoa física, seja ela quem for, não teria relevância pública. Não seria, a rigor, um editorial. Por isso, editoriais não levam assinatura.

O diferencial do editorial está em sua institucionalidade. Trata-se de um juízo construído a partir de valores e critérios institucionais, previamente fixados. Um editorial tem estrutura similar a uma sentença judicial. Contém a exposição de determinados fatos e a aplicação da lei sobre esses fatos. No caso do jornal, a lei são seus princípios editoriais.

Os editoriais oferecem um bem escasso nos dias de hoje: reflexão institucional, elaborada a partir de critérios públicos. Essa é a razão pela qual os editoriais do Estadão sempre foram extensos. Eles nunca pretenderam ser mera opinião, mera parte dispositiva da sentença. Eles são – pretendem ser sempre – argumentação e diálogo. Mais do que ditar aos leitores o que pensar, o objetivo é apresentar uma trajetória reflexiva, um modo de olhar a realidade com razões públicas.

A opinião do jornal não reduz a credibilidade da reportagem. São esferas diversas. De toda forma, uma vez que expõem fatos, os editoriais têm também valor factual. Se há algum equívoco nos fatos, deve haver pronta retificação.

Mas os editoriais dão um passo além. Apresentam uma compreensão específica dos fatos – tarefa que não compete à reportagem –, mostrando ao leitor que não basta ter acesso à notícia. O melhor uso do jornalismo demanda reflexão. E é justamente a essa reflexão pessoal que o editorial convida. Nada disso é uma teoria. Quantas gerações de leitores não tiveram sua preocupação com a coisa pública despertada pela leitura diária dos editoriais do Estadão?

Aqui, entramos noutro tema. O valor do editorial não depende do grau de concordância dos leitores com a opinião nele contida. Não é uma dinâmica de simpatia e antipatia. Mais do que obter aplausos pela conclusão, o fundamental é expor o processo argumentativo, para depois apresentar, com firmeza e coragem, sem medo de ir contracorrente, seu veredicto.

É um enorme bem para o debate público dispor da opinião de instituições que vivenciaram períodos sociais e políticos muito distintos aos atuais. O tempo adquire outro peso. O poder estatal é visto noutra perspectiva. Tudo ganha uma saudável relativização. O marco temporal contemporâneo é despido de seu pretenso caráter absoluto. Excluir do debate público a voz das instituições deixaria tudo achatado no presente.

Se um jornal abdicasse de publicar editoriais, sua área de notícias seria prejudicada. A editoria de Opinião permite que a redação atue no seu âmbito, estritamente factual. É muito bom para a credibilidade da notícia que o leitor saiba que há uma área específica de opinião. Essa separação permite ao jornalismo cumprir sua missão. Ele nunca foi mera produção de fatos. Sempre foi também produção de sentido, sob as óticas individual (com os artigos e colunas) e institucional (com os editoriais). O prestígio dos grandes jornais sempre esteve vinculado, entre outros aspectos, à capacidade de oferecer uma compreensão crítica da sociedade.

A editoria de Opinião confere identidade e transparência institucionais. O caráter de um jornal é diariamente exposto em seus editoriais. Lá está, para a avaliação de todos, sua visão de sociedade e de país, sua compreensão de mundo e de jornalismo, sua aptidão em analisar os fatos além do valor de face, sua capacidade de articular sentido entre eles.

Em vez de acabar com os editoriais, o debate público ganharia muito se mais instituições e organizações sociais publicassem habitualmente sua análise dos fatos, articulada a partir de sua específica compreensão de mundo. Ao longo dos anos, esse exercício constante de reflexão institucional geraria não apenas um plural e espetacular acervo, mas contribuiria para desenvolver uma cultura de diálogo, em que a opinião não é mero palpite, não é mera ilha, mas um olhar inquieto e compartilhado sobre a realidade.

*Advogado

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