quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Felipe Salto * - Não chores, Argentina!

O Estado de S. Paulo

O problema econômico do nosso vizinho vai requerer um bom caldeirão de feijão e uma panela generosa de arroz. Voltar ao básico

Os vícios e as virtudes do peronismo não explicam plenamente a crise econômica da Argentina. Não custa lembrar que o ex-presidente Maurício Macri, um não peronista, fracassou no desafio de restabelecer as bases econômico-fiscais e as condições de solvência no balanço das contas externas. O problema está nos pecados originais dos anos 1990 e 2000. Milei precisará dar um cavalo de pau nas suas convicções se quiser ter sucesso.

O corralito, espécie de sequestro das contas correntes e das poupanças, similar ao que se fez no Plano Collor, por aqui, e a Lei da Conversibilidade não foram acompanhados de uma política fiscal sólida. No Plano Real, fizemos o dever de casa completo, mesmo demorando a adotar as metas de resultado primário. Assim, escapamos da sina de erodir a confiança na moeda.

No caso do Brasil, as poucas reservas internacionais detidas pelo Banco Central foram usadas adequadamente, até que se conseguiu estabelecer um regime fiscal, aos trancos e barrancos; e ele vingou. A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 101/2000) coroou esse processo.

Na Argentina, não se trata de abandonar a legítima preocupação com o desenvolvimento, a igualdade social e a elaboração de políticas públicas em geral. A renda per capita dos hermanos é maior do que a brasileira, vale dizer.

Uma olhada no World Economic Outlook, do Fundo Monetário Internacional (FMI), mostra que a renda per capita, por lá, representa uma vez e meia a dos brasileiros. Em paridade do poder de compra (métrica para comparar países), os argentinos têm um PIB per capita de US$ 22,4 mil, enquanto nós apresentamos US$ 16 mil em 2022.

Arrumando bem o balanço externo e o fiscal, há boas chances de uma retomada na Argentina. Economia é um sistema de vasos comunicantes, em que o equilíbrio nas transações com o resto do mundo está diretamente associado à saúde das contas públicas.

Quando faltam dólares, o preço dessa moeda de reserva internacional sobe e, mais grave, aposta-se ainda mais na subida, reduzindo a pó a moeda nacional e turbinando a inflação. Se o governo tem déficit e precisa financiá-lo, mas não consegue captar o suficiente com títulos públicos, internamente (já que todos preferem o dólar), acaba demandando dólares.

Dessa forma, para baixar o nível de todos os vasos, ao mesmo tempo, é preciso um choque exógeno, como se diz no economês. Um programa de equilíbrio fiscal poderia associar-se a um novo empréstimo no FMI com a finalidade de criar esse ambiente de normalidade.

O presidente eleito no domingo passado defende teses ditas “libertárias”: passar a chave no Banco Central da República Argentina e atirá-la pela janela; dolarizar a economia; fechar ministérios e por aí vai. O problema econômico do nosso vizinho vai requerer um bom caldeirão de feijão e uma panela generosa de arroz. Voltar ao básico.

As maluquices propostas por Javier Milei na campanha levariam a um quadro ainda mais grave que o atual. Renunciar à própria moeda sem ter dólares para guarnecer o consumo e o investimento? E, depois, como cuidar do próprio quintal sem manejar o custo da moeda, o juro? Depender de um emissor estrangeiro?

O corralito e a Lei da Conversibilidade não foram acompanhados de um programa fiscal sólido. Pior, alimentaram a ideia-força de que o peso argentino jamais faria frente ao dólar. Essa ideia explica a taxa de câmbio de quase quatro vezes a cotação oficial. Não há reservas internacionais e o balanço de pagamentos vai mal. Por outro lado, o desajuste fiscal está longe de ser insolúvel; daí poderia vir um sinal concreto.

A eleição de Javier Milei para presidir a Argentina, parceiro econômico sulino central para o Brasil, é preocupante, porque não se vê, até o momento, um plano econômico à altura desses desafios. Se não abandonar, rapidamente, as sandices que defendeu no palanque, vai torrar o precioso tempo de que dispõe. Será preciso, sim, endereçar um novo acordo com o

FMI e estabelecer as bases de um programa de ajuste fiscal digno desse nome. Uma regra fiscal clara combinada com medidas de ajuste exequíveis.

A bolada do FMI poderá representar apenas um paracetamol para diminuir a febre ou o início de um programa de recuperação da credibilidade. Isso é fundamental para o país voltar a exibir a atratividade necessária para o investimento estrangeiro, restaurando as funções básicas de qualquer moeda: meio de troca, reserva de valor e unidade de conta.

O descontrole inflacionário e a consequente carestia não são condições imutáveis. A solução para a crise econômica daquele país passará, novamente, pela busca de dólares combinada com um esforço fiscal efetivo, menos brutal do que pareceria necessário à primeira vista. O importante é dar um sinal concreto em termos de medidas de controle do gasto público e aumento da arrecadação tributária.

É torcer para um rompante de lucidez. Afinal, um país que produziu Jorge Bergoglio, o melhor papa já eleito pelo conclave, com espírito público e sensibilidade social elevados, não pode perder a esperança e a fé.

*Economista-chefe e sócio da Warren Investimentos, foi secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo

 

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