O Estado de S. Paulo
O problema econômico do nosso vizinho vai requerer um bom caldeirão de feijão e uma panela generosa de arroz. Voltar ao básico
Os vícios e as virtudes do peronismo não
explicam plenamente a crise econômica da Argentina. Não custa lembrar que o
ex-presidente Maurício Macri, um não peronista, fracassou no desafio de
restabelecer as bases econômico-fiscais e as condições de solvência no balanço
das contas externas. O problema está nos pecados originais dos anos 1990 e
2000. Milei precisará dar um cavalo de pau nas suas convicções se quiser ter
sucesso.
O corralito, espécie de sequestro das contas correntes e das poupanças, similar ao que se fez no Plano Collor, por aqui, e a Lei da Conversibilidade não foram acompanhados de uma política fiscal sólida. No Plano Real, fizemos o dever de casa completo, mesmo demorando a adotar as metas de resultado primário. Assim, escapamos da sina de erodir a confiança na moeda.
No caso do Brasil, as poucas reservas
internacionais detidas pelo Banco Central foram usadas adequadamente, até que
se conseguiu estabelecer um regime fiscal, aos trancos e barrancos; e ele
vingou. A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 101/2000) coroou
esse processo.
Na Argentina, não se trata de abandonar a
legítima preocupação com o desenvolvimento, a igualdade social e a elaboração
de políticas públicas em geral. A renda per capita dos hermanos é maior do que
a brasileira, vale dizer.
Uma olhada no World Economic Outlook, do
Fundo Monetário Internacional (FMI), mostra que a renda per capita, por lá,
representa uma vez e meia a dos brasileiros. Em paridade do poder de compra
(métrica para comparar países), os argentinos têm um PIB per capita de US$ 22,4
mil, enquanto nós apresentamos US$ 16 mil em 2022.
Arrumando bem o balanço externo e o fiscal,
há boas chances de uma retomada na Argentina. Economia é um sistema de vasos
comunicantes, em que o equilíbrio nas transações com o resto do mundo está
diretamente associado à saúde das contas públicas.
Quando faltam dólares, o preço dessa moeda de
reserva internacional sobe e, mais grave, aposta-se ainda mais na subida,
reduzindo a pó a moeda nacional e turbinando a inflação. Se o governo tem
déficit e precisa financiá-lo, mas não consegue captar o suficiente com títulos
públicos, internamente (já que todos preferem o dólar), acaba demandando
dólares.
Dessa forma, para baixar o nível de todos os
vasos, ao mesmo tempo, é preciso um choque exógeno, como se diz no economês. Um
programa de equilíbrio fiscal poderia associar-se a um novo empréstimo no FMI
com a finalidade de criar esse ambiente de normalidade.
O presidente eleito no domingo passado
defende teses ditas “libertárias”: passar a chave no Banco Central da República
Argentina e atirá-la pela janela; dolarizar a economia; fechar ministérios e
por aí vai. O problema econômico do nosso vizinho vai requerer um bom caldeirão
de feijão e uma panela generosa de arroz. Voltar ao básico.
As maluquices propostas por Javier Milei na
campanha levariam a um quadro ainda mais grave que o atual. Renunciar à própria
moeda sem ter dólares para guarnecer o consumo e o investimento? E, depois,
como cuidar do próprio quintal sem manejar o custo da moeda, o juro? Depender
de um emissor estrangeiro?
O corralito e a Lei da Conversibilidade não
foram acompanhados de um programa fiscal sólido. Pior, alimentaram a
ideia-força de que o peso argentino jamais faria frente ao dólar. Essa ideia
explica a taxa de câmbio de quase quatro vezes a cotação oficial. Não há
reservas internacionais e o balanço de pagamentos vai mal. Por outro lado, o
desajuste fiscal está longe de ser insolúvel; daí poderia vir um sinal
concreto.
A eleição de Javier Milei para presidir a
Argentina, parceiro econômico sulino central para o Brasil, é preocupante,
porque não se vê, até o momento, um plano econômico à altura desses desafios.
Se não abandonar, rapidamente, as sandices que defendeu no palanque, vai torrar
o precioso tempo de que dispõe. Será preciso, sim, endereçar um novo acordo com
o
FMI e estabelecer as bases de um programa de
ajuste fiscal digno desse nome. Uma regra fiscal clara combinada com medidas de
ajuste exequíveis.
A bolada do FMI poderá representar apenas um
paracetamol para diminuir a febre ou o início de um programa de recuperação da
credibilidade. Isso é fundamental para o país voltar a exibir a atratividade
necessária para o investimento estrangeiro, restaurando as funções básicas de
qualquer moeda: meio de troca, reserva de valor e unidade de conta.
O descontrole inflacionário e a consequente
carestia não são condições imutáveis. A solução para a crise econômica daquele
país passará, novamente, pela busca de dólares combinada com um esforço fiscal
efetivo, menos brutal do que pareceria necessário à primeira vista. O
importante é dar um sinal concreto em termos de medidas de controle do gasto
público e aumento da arrecadação tributária.
É torcer para um rompante de lucidez. Afinal,
um país que produziu Jorge Bergoglio, o melhor papa já eleito pelo conclave,
com espírito público e sensibilidade social elevados, não pode perder a
esperança e a fé.
*Economista-chefe e sócio da Warren Investimentos,
foi secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo
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