quarta-feira, 26 de junho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Eleição na França traz tensão ao projeto europeu

O Globo

Eventual vitória da extrema direita lançaria país em período de instabilidade sem precedentes

Quando os franceses forem às urnas no domingo eleger os ocupantes das 577 cadeiras da Assembleia Nacional, estará em jogo mais que o legado das reformas do presidente Emmanuel Macron. Um Parlamento dominado pelo ultradireitista Reunião Nacional (RN), seguido pela Nova Frente Popular (NFP), coalizão liderada pela extrema esquerda, lançaria o país num período de instabilidade sem precedente, prejudicial ao projeto europeu. O mandato de Macron, líder mais vocal da União Europeia (UE), acaba em 2027, mas, a depender do resultado, problemas domésticos o enfraquecerão no bloco.

Se confirmados, os ganhos eleitorais dos extremistas de direita (e de esquerda) aumentarão a erosão dos partidos no centro do espectro político. É verdade que a coalizão liderada pelo centrista Olaf Scholz segue governando a Alemanha, e o Partido Trabalhista, depois de uma guinada ao centro, é favorito nas próximas eleições no Reino Unido. Mas essas conquistas em nada diminuem a insatisfação dos europeus. Entre as décadas de 1960 e 1980, a fatia de votos dos partidos social-democratas se manteve em 34% do total. De lá para cá, houve uma queda de pelo menos 10 pontos percentuais. Na França, os socialistas, representantes da tendência moderada, são coadjuvantes dos extremistas na coalizão de esquerda.

Uma vitória de extremistas na França traria enormes transtornos. Com uma dívida que equivale a 110% do PIB, o déficit fiscal francês foi de 5,5% no ano passado. Uma crise econômica imporia novo teste ao euro e às autoridades financeiras europeias. Populistas de direita e esquerda prometem cortar impostos e elevar gastos públicos. Uma vez no poder, ou cometerão estelionato eleitoral, ou semearão o caos. Os radicais de direita são especialmente críticos à UE e próximos da Rússia de Vladimir Putin. A política externa é prerrogativa da Presidência, mesmo assim não se pode subestimar a influência do Parlamento.

As pesquisas dão o RN, de Marine Le Pen, com 35,2% das intenções de voto, a NFP, de Jean-Luc Mélenchon, com 28,3%, e a coalizão de Macron com apenas 20,1%. Os números devem ser vistos com cautela. Os próprios institutos destacam as peculiaridades do sistema eleitoral francês. Os dois (ou três) candidatos mais votados no domingo seguirão para um segundo turno em 7 de julho. Dada a aversão ao RN em certos círculos, haverá pressão pelo voto útil contra seus candidatos no segundo turno.

Logo depois de anunciado o resultado da eleição para o Parlamento europeu, quando ficou evidente a força do RN, Macron decidiu antecipar o pleito nacional. Até auxiliares mais próximos criticaram sua aposta. Ele argumentou ser premente ouvir a voz das ruas. Aparentemente, sua intenção é unir quem não está nos extremos. Até o momento, é incerto o que ocorrerá. Se obtiver sucesso, Macron será elogiado como uma espécie de salvador da Quinta República Francesa. Se falhar e pavimentar o caminho para a extrema direita chegar ao Executivo, ou no futuro à Presidência, terá sido seu algoz.

Brasileiros ignoram como Meta usa seus dados para treinar modelos de IA

O Globo

Falta de regulamentação eficaz permitiu que empresa processasse as informações sem autorização explícita

Meta pretendia começar a usar, a partir de hoje, dados compartilhados por usuários de Facebook e Instagram na Europa para treinar seus modelos de inteligência artificial (IA). Mas, ao informar a intenção, foi alvo de questionamentos das autoridades europeias e teve de adiar os planos. No Brasil e nos Estados Unidos, o desenlace foi diferente. A análise de postagens, fotos e legendas publicadas pelos usuários já é realidade, e milhões estão no escuro sobre como suas informações já foram, são ou serão usadas.

A empresa argumenta que já existe autorização de uso, pois há muitos anos a IA governa seus sistemas de segurança e integridade. E diz que, a qualquer momento, os usuários podem se opor a fornecer os dados. É verdade que os brasileiros têm a opção de bloquear o acesso a eles, como garante a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), mas o procedimento é trabalhoso e pouco intuitivo.

O fundador da Meta, Mark Zuckerberg, anunciou no início do mês que um assistente de inteligência artificial em português será integrado aos serviços da empresa a partir de julho. Os recursos começarão pelas caixas de busca de Instagram, Facebook e WhatsApp. Está previsto também um site semelhante ao ChatGPT, alimentado pelo modelo da Meta, o Llama. Mas Zuckerberg não deixou claro que os serviços seriam precedidos por mudanças nos termos de uso. No dia 16, uma mudança na política de privacidade facilitou a análise de dados capturados dos brasileiros.

Para os desenvolvedores de IA, dados são matéria-prima básica. Os grandes modelos de linguagem (LLMs) usados nas ferramentas de IA como Llama, ChatGPT ou Google Gemini são treinados por quantidades colossais de conteúdo produzido por seres humanos. Dos livros e acervos de jornais às informações disponíveis na internet. O “aprendizado” das máquinas se dá a partir da análise de um oceano interminável de bits. O GPT-4 foi treinado com uma quantidade de textos que um ser humano levaria 20 mil anos para ler.

Em comunicado oficial, a Meta reconhece suas intenções: “Como é necessária uma quantidade grande de dados para treinar modelos eficazes, uma combinação de fontes é usada para treinamento”. Porém a empresa peca na falta de transparência. Ao jornal The New York Times, um porta-voz não explicou como as informações dos usuários são tratadas. Preferiu ser evasivo, afirmando que são usadas “para construir e melhorar as experiências de IA”.

O contraste com a Europa mostra a falta que faz uma regulação mais eficaz das redes sociais tanto nos Estados Unidos como no Brasil. Dado o histórico da Meta no que diz respeito à privacidade, é aconselhável que as autoridades fiquem atentas. O lançamento de uma ferramenta de IA tem potencial de maravilhar o público com as novidades e recursos que oferece. Os benefícios são bem-vindos. A opacidade no relacionamento com os usuários não é.

Ata do Copom traça cenário desfavorável para a inflação

Valor Econômico

Incertezas externas e domésticas desenharam um quadro que deu ao diagnóstico do Copom um tom mais duro sobre o futuro da política monetária do que os documentos anteriores recentes

A decisão do Comitê de Política Monetária de pôr fim ao ciclo de queda de juros se baseia em motivos mais amplos do que a leniência fiscal do governo Lula, embora estejam estreitamente ligados a ela. Para o Banco Central (BC), a economia já cresce marginalmente acima do seu potencial, o que faz com que a inflação resista a convergir para a meta, apesar de um juro real muito alto, de 6%. As incertezas externas, que estão levando à desvalorização do real, e as domésticas, entre as quais se encontram pressões possíveis de preços decorrentes da tragédia no Rio Grande do Sul, desenharam um quadro que deu ao diagnóstico atual do Copom um tom muito mais duro sobre o futuro da política monetária do que os documentos anteriores recentes.

As projeções para a inflação futura pioraram com o avanço da desvalorização do real, constatação nova em relação à ata de maio. O câmbio considerado no cenário de referência do BC entre as duas reuniões evoluiu de R$ 5,15 para R$ 5,30, enquanto a previsão sobre o comportamento dos preços administrados melhorou para este ano e o próximo. No prognóstico anterior, situavam-se respectivamente em 4,8% e 4%, e agora em 4,4% e 4%. Como apontou ontem o diretor de Política Monetária, Gabriel Galípolo, o Copom se reuniu em 7 e 8 de maio com o dólar valendo R$ 5,03 e fez o encontro seguinte em 18 e 19 de junho com ele a R$ 5,47.

O avanço do dólar diante do real é a interface entre dois cenários que prejudicam o combate à inflação. O cenário externo, que o BC qualifica como muito adverso, em função da “incerteza elevada e persistente sobre a flexibilização da política monetária nos EUA”, modificou os preços dos ativos, desfavorecendo os de maior risco, como os brasileiros. Com isso, os investidores estrangeiros retiraram R$ 43 bilhões da bolsa até segunda-feira, pressionando o real. As apostas contra a moeda brasileira também subiram no mercado de derivativos, com as posições compradas em dólar atingindo US$ 78,3 bilhões (Valor, ontem).

A outra parte dessa história tem a ver com a deterioração das perspectivas fiscais domésticas. Ela implica gastos maiores da União, que estimularam uma economia já ao redor do pleno emprego. O resultado é que as atividades econômicas estão “mais fortes” no ano, em um ritmo que não auxilia a queda da inflação. Esta é outra mudança do comunicado relevante. No Relatório de Inflação de março, o BC apontava um crescimento da economia cerca de 0,6% abaixo de seu potencial. Isso mudou. “O Comitê avalia que o hiato do produto, que se encontrava levemente negativo na última avaliação divulgada, está agora em torno da neutralidade”, registra a ata.

O Copom avaliou que as surpresas pelo lado da maior atividade foram a formação bruta de capital fixo (investimentos) e o consumo das famílias, além de um mercado de trabalho apertado. Com isso, apesar de a inflação cheia apresentar arrefecimento, as medidas de inflação subjacente permanecem acima da meta de inflação (3%). Aumento da renda e emprego fizeram com que o componente mais instável da inflação, a evolução do nível de preços dos serviços, que tem maior inércia, assumisse “papel preponderante na dinâmica desinflacionária no estágio atual”.

O Copom modificou outra variável importante em sua estratégia, a taxa neutra de juros, que tem causado debate recorrente nas últimas reuniões. Como a situação fiscal só piorou, havia a suspeita de que essa taxa, a partir da qual se calibra se a política monetária está sendo suficientemente contracionista ou relaxada, poderia ser maior do que aquela com a qual o BC trabalhava. Os economistas do Itaú, por exemplo, calcularam o juro neutro de seis formas diferentes e concluíram que ele varia de 4% a 5%. O Copom, por outro lado, o elevou “marginalmente” de 4,5% para 4,75% depois de sublinhar que ela “não é uma variável que deve ser atualizada em frequência alta e que tampouco deveria ter movimentos abruptos”. Um significado da mudança é que os juros são menos inibidores do que pareciam ser, embora a taxa real seja bastante alta sob qualquer medida.

Tudo somado, foi a vez de o Copom discutir se o balanço de riscos, que pesa as possibilidades de a inflação subir ou cair, não havia se deslocado do nível equilibrado para o altista, uma discussão também feita na reunião anterior. Um argumento utilizado foi que o hiato do produto havia se fechado, e a inflação de alimentos, se mostrado persistente. A conclusão foi que parte desses fatores já havia sido incorporada e não alteraria a avaliação.

Dessa forma, o cenário prospectivo para a inflação piorou, tanto pelo aumento da atividade, desancoragem das expectativas, fechamento do hiato do produto, maior resistência inflacionária, pressão da valorização do dólar e piora da situação fiscal. Há sinais puramente sazonais de deterioração. Junho e julho de 2023 tiveram um IPCA muito baixo, o que não deve ocorrer agora. Com isso, o índice em 12 meses pode ultrapassar provisoriamente a meta de 4,5%, alerta a consultoria Macrométrica. Mas o cenário alternativo elaborado pelo BC, outra novidade da ata, indica que a manutenção da Selic em 10,5% é capaz de levar o IPCA a atingir praticamente a meta - 3,1% em 2025.

Hora de agir para estabilizar a finança

Folha de S. Paulo

Lula pode combater deterioração se determinar contingenciamento no Orçamento e antecipar nome reputado para o BC

Esgota-se a margem para a retórica presidencial na condução da política econômica. Aproxima-se o momento de o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deixar de lado as bravatas e mostrar com ações se preserva algum compromisso com a estabilização da finança.

A ata da última reunião do Comitê de Política Monetária confirmou não haver discordância de diagnóstico entre os diretores do Banco Central sobre a elevação do risco inflacionário. A grande incerteza doméstica é saber se o governo federal cumprirá suas obrigações na regra fiscal em vigor.

Não se trata de cobrar nenhum "austericídio" do Executivo, muito pelo contrário. O marco aprovado em 2023, na esteira de uma das maiores expansões de despesa já registradas, permite uma nova elevação dos gastos em 2024, correspondente a 70% da alta da receita e limitada a 2,5% acima da inflação.

Pois essa norma generosa caminha para ser desrespeitada. De janeiro a maio de 2024, ante 2023, a arrecadação cresceu 8,7% acima da inflação, em boa parte devido a medidas patrocinadas pela Fazenda.

Tal é a sanha gastadora da gestão petista que nem sequer a disparada arrecadatória bastará para assegurar o cumprimento da meta de aproximar o Orçamento do equilíbrio neste ano.

O dispêndio com benefícios previdenciários e outros vinculados ao salário mínimo aumenta muito acima do limite global de 2,5% reais. Algo parecido ocorre com os desembolsos em saúde e educação, que voltaram a ser atrelados a percentuais da receita.

O remédio imediato para essa sangria é o contingenciamento de despesas discricionárias. Uma suspensão de gastos em rubricas de custeio e investimento —que incluem emendas parlamentares— de R$ 15 bilhões, nas contas mais otimistas, precisará ser anunciada já em julho sob o risco de arruinar-se de vez a regra fiscal.

Se decretasse o contingenciamento necessário, Lula retiraria um pouco da pressão extraordinária sobre câmbio e juros, que impulsiona as expectativas da inflação futura e deprime as perspectivas de crescimento econômico.

Outra medida ao alcance do chefe de Estado para ajudar na estabilização financeira seria antecipar a indicação de um nome de boa reputação para suceder a Roberto Campos Neto no Banco Central.

As bobagens reiteradas pelo presidente da República sobre juros, BC e equilíbrio fiscal estão prejudicando o seu próprio governo. Para Lula, seria tomar um risco político e eleitoral considerável flertar com um surto inflacionário ou mesmo recessivo na metade final do seu mandato. Há, afinal, uma oposição competitiva pronta para arrebatar-lhe o Planalto em 2026.

Metas sem lastro

Folha de S. Paulo

Fiasco do plano de ensino mostra que objetivos devem ser factíveis e monitorados

Toda política pública deve conter metas e prazos, mas não basta estipulá-los. É preciso que os objetivos sejam factíveis, que haja fontes para os recursos, que os responsáveis sejam claramente designados e que haja monitoramento para identificar problemas e buscar soluções durante o processo.

Tudo indica que o Plano Nacional de Educação (PNE) falhou nesses quesitos. Desenvolvido pelo Executivo e aprovado pelo Congresso Nacional em junho de 2014, o PNE determinou objetivos que deveriam ser alcançados até este junho.

Passados os dez anos, contudo, das 20 metas estabelecidas, só 4 foram parcialmente cumpridas, segundo relatório da ONG Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Entre elas: hoje 75% dos docentes do ensino superior têm título de mestre ou doutor, mas a rede privada não alcançou o mínimo de 35% de doutores; a rede pública respondeu por metade da expansão das matrículas do ensino técnico de nível médio, mas elas não triplicaram; chegou-se a 60 mil mestres titulados anualmente, mas não se formaram 25 mil doutores.

Ademais, o avanço no aprendizado exigido para todas as etapas da educação, a partir das notas do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), só foi alcançado nos anos iniciais do ensino fundamental (do 1º ao 5º). Nos anos finais, a pontuação manteve-se próxima à meta, mas no ensino médio houve piora.

Houve retrocesso também em garantir que 100% da população de 6 a 14 anos tenha acesso ao ensino fundamental —a taxa caiu de 97,2% em 2014 para 95,7%, em 2023.

Gargalos crônicos não foram eliminados, como se vê na frustração da meta de ter 100% das crianças alfabetizadas no 3º ano fundamental ou na de que 95% dos alunos concluam o fundamental na idade adequada. O ensino integral, que deveria estar em no mínimo 50% das escolas, chegou a só 27% em 2022 (último dado disponível).

O governo federal ainda não enviou o novo PNE ao Congresso. Se mais uma vez ficar limitado a objetivos sem lastro, o plano tende a não fazer muita diferença para melhorar os indicadores sofríveis da educação brasileira.

Assimetria de informação na reforma tributária

O Estado de S. Paulo

Enquanto grupos de trabalho fingiam se dedicar à regulamentação da reforma, os debates mais relevantes sobre o tema ocorriam a portas fechadas, sem a participação dos contribuintes

Os grupos de trabalho que discutem a regulamentação da reforma tributária preveem apresentar o parecer final no dia 3 de julho. Falta, portanto, uma semana para que a sociedade saiba os detalhes sobre o funcionamento dos futuros impostos que incidirão sobre bens e serviços e do Comitê Gestor que fará a distribuição das receitas arrecadadas entre Estados e municípios.

O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), havia se comprometido a apreciar os textos em plenário até o fim do primeiro semestre. Depois do dia 17 de julho, o Congresso entrará formalmente em recesso e, a partir de agosto, os deputados deverão se dedicar às eleições municipais.

A boa notícia é que o prazo para concluir a discussão das propostas na Câmara será cumprido, o que é essencial para que a reforma possa entrar na fase de transição, que começa em 2026. A ruim é que isso ocorrerá sem que tenha havido o mínimo de transparência sobre o conteúdo das propostas.

Os grupos de trabalho formados para debater os textos o fizeram de maneira pro forma. Nada de relevante aconteceu por lá. Eles foram formalmente instalados em maio, mas a fase de audiências públicas já está praticamente encerrada. Nesta semana, os parlamentares foram dispensados de comparecer em Brasília para não perderem as festividades de São João em seus municípios e participar da já tradicional feira anual do turismo institucional promovida pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, em Lisboa.

Lira não definiu relatores. A previsão é que os 14 membros dos dois grupos de trabalho devam assinar e ler os pareceres de maneira conjunta. Convenientemente, ninguém deixará sua digital na proposta. Não que os debates sobre os textos não tenham ocorrido. As discussões mais relevantes foram feitas em reuniões pretensamente técnicas – portanto, fechadas – entre os deputados, o governo e as partes interessadas, cujo teor certamente era de conhecimento dos líderes partidários.

Só quem não sabe o que virá na próxima semana é o contribuinte, que não foi convidado a participar das conversas. O pouco que se sabe se deve à imprensa. Nesta semana, por exemplo, o Estadão revelou que o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic) defende taxar carros elétricos com o chamado “imposto do pecado”, que incidirá sobre produtos e atividades que causem danos à saúde e ao meio ambiente.

Já se sabia que a ideia do governo era sobretaxar automóveis leves, vans e veículos de carga com o Imposto Seletivo, mas o detalhe é que, diferentemente deles, os carros elétricos não emitem poluentes, o que – em tese – os isentaria desse imposto. O Mdic, no entanto, pensa diferente, e alega que as baterias dos veículos elétricos são fabricadas na China, a partir de fontes de energia suja.

Para o coordenador do Observatório Brasileiro do Sistema Tributário, Francisco Mata Machado Tavares, a lógica do governo de sobretaxar as atividades, e não a emissão de carbono em si, é ultrapassada. “Parece que criamos um tributo dos anos 1970 para enfrentar problemas do século 21″, afirmou, no que tem toda a razão. Para o vice-presidente da Anfavea, Luiz Carlos Moraes, a medida parece ter fim meramente arrecadatório, no que também tem toda a razão.

Muitas outras discussões estranhas ocorreram nos grupos de trabalho. Reportagens deste jornal revelaram uma silenciosa investida de Estados e municípios para tentar reforçar a arrecadação por meio de mudanças em impostos como IPVA, IPTU, ITBI e ITCMD e de taxas como a Cosip, que nada tinham a ver com a reforma sobre bens e serviços.

Enquanto os grupos de trabalho fingiam trabalhar, a Câmara se dedicava a acelerar todo tipo de assunto neste mês, da anistia às multas aplicadas aos partidos pela Justiça Eleitoral à proibição de delações premiadas por presos, passando pela lei que equipara o aborto após 22 semanas ao crime de homicídio, mesmo em caso de gestação resultante de estupro.

Não deixa de ser simbólico que um tema que afetará o dia a dia das empresas e do consumidor e, por óbvio, o próprio crescimento da economia tenha sido tratado de forma tão opaca pelos deputados.

Na foto de Lula com FHC, só há um estadista

O Estado de S. Paulo

Lula teve mais uma chance de se redimir das injustas críticas que fez ao Plano Real e a FHC – que, recorde-se, lhe deu apoio na eleição –, mas preferiu ser fiel à sua natureza incorrigível

O presidente Lula da Silva visitou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, num encontro do qual saiu com uma comovente foto estampando o cumprimento de ambos. Os dois líderes que um dia representaram as principais forças políticas do País demonstraram mais uma vez civilidade, carinho e amizade. Como ocorreu outras vezes quando se encontraram pessoalmente, a imagem despertou em muita gente de boa vontade certo saudosismo de quando a polarização se organizava dentro dos marcos razoáveis de convivência, diálogo e divergência. A grandeza da foto, contudo, tirada no exato dia em que a Fundação Fernando Henrique Cardoso realizou um evento em comemoração aos 30 anos do Plano Real, esconde a constrangedora discrepância na estatura política dos dois personagens. Só superficialmente a visita de Lula pode ser vista como um gesto de magnificência efetiva. Quando observada em profundidade e à luz da história, constata-se a pequenez lulopetista.

Mais uma vez Lula desperdiçou uma providencial oportunidade de reconhecer o valor e o papel de Fernando Henrique Cardoso. Não haveria momento mais conveniente para tanto, a começar pelo aniversário do Plano Real, do qual FHC foi o principal arquiteto político, ao não só unir o mais impressionante time de economistas dispostos a debelar a hiperinflação, como também ter a sabedoria de que a boa técnica não prescinde da boa política. FHC negociou exaustivamente com um Congresso que conhecia por dentro e preferiu o uso público da razão à demagogia salvacionista. Mas, ao registrar o momento em suas redes, Lula optou por unir a imagem com FHC com o registro de outros três encontros: com o ex-presidente José Sarney, o escritor Raduan Nassar e o jornalista Mino Carta. Foi como se preferisse evitar dar a FHC o protagonismo que este merecia, sobretudo na semana comemorativa do Real. Ou como se não conseguisse superar o histórico e mal resolvido desconforto do PT com o Plano e seus artífices. E assim Lula mostrou seu verdadeiro tamanho, minúsculo perto de FHC.

Teria sido uma ótima oportunidade para um gesto de reconhecimento, por exemplo, ao apoio que FHC lhe deu no segundo turno da eleição presidencial de 2022. Naquele ano, mal iniciada a renhida disputa entre Lula e Jair Bolsonaro, o tucano não hesitou em anunciar: “Neste segundo turno, voto por uma história de luta pela democracia e inclusão social. Voto em Luiz Inácio Lula da Silva”. Ali FHC emprestava a Lula apoio incondicional em nome da democracia. Com seu apoio viriam outros, capazes de assegurar a frente ampla de que o petista precisava para superar Bolsonaro nas urnas e evitar o pior. Exceto por raros momentos de dor pessoal – como no caso da morte da ex-primeira-dama Ruth Cardoso – e pelo apoio dado na primeira eleição de FHC, como senador, em 1978, é difícil imaginar grandeza semelhante por parte do atual presidente.

O fato é que Lula e o PT nunca entenderam o Plano Real. Economistas do partido apostavam no fracasso do Plano, enquanto, no front político, com a campanha no horizonte daquele ano de 1994, os petistas só enxergavam interesses eleitorais rasteiros quando, na verdade, se estava diante de um divisor de águas na história nacional. Os eleitores perceberam o descompasso e garantiram a FHC a mais indiscutível vitória dada a um candidato a presidente. Inconformados, os morubixabas petistas lideraram uma inclemente oposição ao governo tucano. Uma oposição por vezes violenta, que passava tanto pela demonização do presidente quanto por uma espécie de novo udenismo, com a denúncia estridente do que diziam ser grandes “escândalos de corrupção”. Depois, quando assumiram o poder, os petistas acusaram FHC de lhes deixar uma “herança maldita”, expressão inventada por Lula que até hoje anima a militância e da qual o demiurgo nunca recuou, a despeito de sua flagrante injustiça.

Por isso, a visita de Lula a FHC e a imagem cheia de cordialidade entre ambos provam que FHC continua um estadista, capaz de superar as inúmeras grosserias que os petistas cometeram e ainda cometem contra ele. Já Lula mostrou que jamais será o estadista que julga ser.

A dor do parto na Argentina

O Estado de S. Paulo

País entra em recessão, consequência do ajuste que vai testar o governo de Javier Milei

A semana passada foi a melhor do governo de Javier Milei em seis meses, e a mais intensa. No Congresso argentino, o Senado aprovou reformas ambiciosas; fora, ativistas queimavam carros e atiravam pedras. Um retrato da tensão que pode quebrar seu governo ou romper a hegemonia peronista.

Após décadas de estatismo, protecionismo e clientelismo, é difícil superestimar a disfuncionalidade da economia argentina. Com sistemas de controle de preços insustentáveis e incontinência fiscal alimentada por dinheiro impresso pelo Banco Central, o país bateu recordes de recessão, hiperinflação e calotes. As reservas internacionais evaporaram.

Para seu crédito, Milei não apelou ao crônico vício no pensamento mágico. “No hay plata”, disse em sua posse. Em outros países, sua grosseira “motosserra” seria uma irresponsabilidade. Na Argentina era uma necessidade. O corte de gastos foi brutal. Milei tirou da tomada a máquina de imprimir dinheiro e depreciou o peso. Seguiram-se o superávit e a queda da inflação, mas também a recessão.

O pacote aprovado no Senado contém medidas de liberalização, incentivos a investimentos estrangeiros, privatizações, aumento de receita e poderes extraordinários para cortar gastos, eliminar regulações e flexibilizar regimes trabalhistas. É bem menos do que Milei queria e ainda voltará à Câmara para revisão. Mas foi sua maior vitória política e mostrou que “El Loco” é capaz de negociar com o establishment.

A primeira fase do governo terminou com relativo sucesso. Mas o desafio maior está por vir. Milei precisa decidir o futuro do Banco Central (que prometeu fechar) e do peso (que prometeu substituir pelo dólar). Há indícios de que o peso esteja de novo sobrevalorizado, o que afasta turistas, encarece exportações e dissuade investidores. Milei se inclina ao que chama de “dolarização endógena”: fixar limites para a oferta de pesos e apostar que os argentinos tirarão seus dólares do colchão quando a economia precisar. Essa heterodoxia dificultaria mais empréstimos do FMI, que, assim como a equipe econômica de Milei, favorece um sistema similar ao peruano de “competição de moedas”, em que os dólares coexistem com uma moeda cuja oferta é ajustada pelo Banco Central.

Por ora, permanece a incerteza. Mas o maior desafio é político: manter o apoio de centristas e da oposição moderada. Cerca de metade dos argentinos ainda apoia Milei. Mas até quando tolerarão as dores da austeridade e da recessão?

As eleições mostraram que os argentinos queriam mudanças dramáticas. E conseguiram. As dúvidas são se aguentarão o tranco, se Milei optará pelo pragmatismo ao invés da ideologia e se conseguirá negociar com a comunidade política e mobilizar a sociedade para viabilizar as reformas necessárias. O caminho é longo, mas o tempo é curto. As eleições de 2025 podem marcar o endosso ou a rejeição. No último caso, Milei será constrangido a escolher entre combater, sem força, por uma agenda liberalizante ou acomodar interesses de setores que se beneficiaram de uma economia disfuncional, ou seja, optar entre a estabilidade política e a sanidade econômica.

O exemplo que veio do Plano Real

Correio Braziliense

O que deve ser cobrado é uma maior eficiência nos gastos — e não apenas do Executivo —, para que se saiba o que efetivamente está sendo desembolsado e para qual finalidade

O grande e inegável mérito do Plano Real, prestes a completar 30 anos, foi debelar uma inflação de taxas astronômicas, que chegaram a mais de 80% no início dos anos de 1990. Naquele momento, iniciaram-se várias tentativas frustradas para controlar a subida dos preços, incorporada ao dia a dia dos brasileiros com as máquinas de remarcação sempre em operação no varejo, e o overnight dos bancos, garantindo a correção monetária do dinheiro que perdia poder de compra diariamente. Depois de vários planos, foi o Real que finalmente assegurou o controle da inflação, que caiu drasticamente de 916% em 1994, ano do lançamento pelo presidente Itamar Franco, para 22% em 1995 e 9,56% em 1996.

Para se ter uma dimensão do êxito do programa de estabilização monetária, nos últimos 30 anos, a inflação anual no Brasil ficou acima de dois dígitos em três ocasiões: em 2022, quando fechou em 12,53%; em 2015, 10,67%; e em 2021, 10,06% — todos anos de crise. Debelada a inflação, convenhamos que ninguém mais vai ser leniente com o risco de uma escalada dos preços, mas o Brasil ainda convive com outros problemas, como baixo crescimento, gritante desigualdade de renda e dificuldade para aprovar reformas ou se tirar privilégios tributários de grupos atendidos em uma situação emergencial (o que deveria ser temporário se tornou permanente).

Todos os problemas esbarram no controle das contas públicas para que o endividamento não seja elevado a um nível que ofereça aos investimentos em títulos do Brasil risco de inadimplência — ou default,  para usar um termo técnico do mercado financeiro. Aqui, há uma complexidade tão grande quanto há 30 anos em relação à inflação. É um erro imaginar que a responsabilidade sobre as contas públicas seja exclusiva do Executivo, quando, na realidade, ela tem a ver também com o Legislativo, que cria despesas a partir de benesses concedidas a grupos específicos ou impondo ao Executivo um custo altíssimo da própria existência, com R$ 53 bilhões destinados a emendas parlamentares, fora o orçamento do próprio Congresso Nacional.

No Judiciário, por sua vez, há regalias que não são dadas a nenhuma outra categoria de trabalhador da União. Fala-se em cortar gastos quase como um mantra para um governo federal que tem orçamento engessado por gastos obrigatórios e constitucionais e que, para reduzir despesas, tem de diminuir de tamanho. Mas reduzir o Estado em uma sociedade com alta desigualdade social é condenar uma parcela da sociedade a sobreviver com menos recursos e serviços públicos.

O que deve ser cobrado é maior eficiência nos gastos — e não apenas do Executivo —, para que se saiba o que efetivamente está sendo desembolsado e para qual finalidade. Mais controle e mais transparência sobre esses gastos em um esforço, que é preciso repetir, não deve ser apenas do Executivo, mas de toda a União, incluindo os outros dois Poderes, de estados e municípios. É preciso que, assim como houve consenso para debelar a inflação, com benefício geral e custos apenas para alguns setores que se acostumaram a ganhar muito dinheiro com o giro do capital, todos estejam imbuídos no mesmo propósito.

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