Valor Econômico
A destruição até dos laços de família com a polarização manipulada pelo bolsonarismo gerou a desorganização política do país com o crescimento da desorganização social
Um dos aspectos mais preocupantes da política
brasileira desde o fim da ditadura militar e, acentuadamente, desde a ascensão
de Jair Messias à Presidência da República, é o do declínio do humor político.
Sinal de que está em decadência a consciência crítica popular que, entre nós,
se manifestava no riso.
O bolsonarismo trouxe consigo o ódio às diferenças políticas, a satanização dos diferentes e das diferenças, a intolerância em relação ao outro, suas ideias, seu modo de ser. Trouxe, sobretudo, a ideologia no lugar do saber, da ciência, da arte, da liberdade de pensamento, da consciência crítica, do discernimento e da criatividade.
Na Primeira República, as músicas faziam o
desmonte crítico dos fatos políticos e dos chamados figurões da política.
Política era tudo. Na Revolução de 1924, em São Paulo, num combate durante uma
noite fria no Belenzinho, o tenente João Cabanas, que comandava os rebeldes
contra os legalistas do Exército, mandou seus soldados cantarem bem alto “Tatu
Subiu no Pau”. Música de Eduardo Souto, sucesso do Carnaval de 1923, o que
deixou os inimigos atônitos e vulneráveis. A cantoria fora de hora e de lugar
era arma da revolta.
A música carnavalesca fazia parte de um mesmo
conjunto de crítica política com as caricaturas de jornais, revistas e
almanaques de farmácia.
Por esse crivo, sublinhar e ironizar as
incoerências políticas era um modo de expor e ressaltar os aspectos irracionais
e contraditórios da ação política. Muitas vezes, com verdadeiros diagnósticos
etnográficos dos nossos defeitos políticos.
Desconstruir e ironizar para revelar e
desqualificar o avesso de poderosos e do poder tem sido um modo de tomar
consciência do que querem nos ocultar para nos dominar. Chico Buarque usou esse
recurso político durante a ditadura militar. Dizer para desdizer.
Eu ainda não ingressara no curso primário
quando, em 1945, até a molecada da rua, em suas brincadeiras, abria o berro
para cantar “O Cordão dos Puxa-Saco”, de Roberto Martins. Puxa-saco não era o
patriota, era o frouxo.
Com o fim da ditadura de Vargas, os
oportunistas disputaram o vazio do poder, acolitados pelos bajuladores de
sempre, suprapartidários. Aqui, isso aconteceria de novo com o fim da ditadura
militar de 1964. Quem na véspera fora de direita, no dia seguinte de manhã já
era de extremo centro. País macunaímico, temos vivido sob o domínio da cultura
dos sem caráter.
O “Cordão dos Puxa-Saco” é composição
lembrada ainda hoje porque descreve uma situação que se repete e perdura. Tem
alguns detalhes interessantes. Em primeiro lugar, a distinção entre cordão e
bloco.
O herói social da música é o bloco, modesto,
pequeno, vicinal, comunitário, sem estandarte nem instrumentos. Vilão é o
cordão, cheio de recursos, abrigo dos débeis de caráter que encontram seu lugar
social puxando o peso que é dos outros.
Em países civilizados, a derrota eleitoral de
um partido remove-o de fato do poder, mas não da política. Neles não existe
poder indireto e disfarçado. Aqui, estamos vivendo a anomalia de que os
derrotados continuam agindo como se o poder tivesse duas faces, a de dentro e a
de fora, sendo esta a do poder dos puxa-saco, os lambe-botas, os chaleiras.
Vai se ver se a democracia está sendo
derrotada pelo cordão dos puxa-saco. A não desprezível massa de 30% de seres
imobilizados ideologicamente e inamovíveis, aprisionados no curral político da
mera veneração a quem os capturou não como político, mas como feitor, e tem
mais visibilidade como poder do que o governo.
O puxa-saquismo faz das pessoas anômalos
cúmplices dos poderosos e neles nega a política como representação e o eleitor
como cidadão. Durante a ditadura do Estado Novo, a grande massa getulista
legitimava-se enviando cartas ao chefe de Estado, geralmente denunciando como
comunistas os conhecidos, vizinhos, colegas, amigos e até parentes.
As cartas eram repassadas aos setores de
repressão política do Estado, que fazia o seu serviço. Os delatores julgavam-se
patriotas, como se julgam os aduladores de agora. A pátria não pode ser
confundida com cordão dos puxa-saco.
A destruição até dos laços de família com a
polarização manipulada pelo bolsonarismo gerou a desorganização política do
país com o crescimento da desorganização social.
Foi particularmente atingido o caráter
comunitário da sociabilidade brasileira e das nossas tradições, a tolerância em
relação às diferenças de identidade social, de opção em relação ao que é
próprio da sociedade moderna, sua diversidade pluralista e funcional. O
puxa-saquismo é a consequência da linearização mental e ideológica da
população. Nem Deus escapou. Surgiu entre nós o puxa-saquismo pseudo-religioso.
2 comentários:
Falando em puxa-saquismo, delações e bajuladores de ditaduras, sugiro a leitura do excelente e essencial " O fim do homem soviético ", de Svetlana Aleksiévitch.
Nada do que foi produzido aqui não chega, nem de perto, muito perto, infinitamente perto, dos horrores produzidos pelo stalinismo e seus congêneres do totalitarismo soviético.
😏😏😏
Hmmmmm...
Não sei se me expressei corretamente, mas okays...
😏
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