Observatório da Imprensa
Em março de 2022 reli o "Turning Back
the Clock", de Umberto Eco (Vintage Books, 2008). O livro é uma coleção de
artigos e ensaios em que ele analisa o que chamou, no sub-título, de "hot
wars and media populism".
Um desses artigos, de julho de 2003, publicado no L'Espresso, prendeu minha atenção. Neste, Eco comenta uma tentativa de Berlusconi, de "retirar a legitimidade do sistema judiciário italiano". Berlusconi era então primeiro-ministro, pela segunda vez (2001-06). Em tom de desafio, ele disse que "já que foi eleito pelo povo" ele não aceitaria "ser julgado por alguém que alcançou aquele posto no judiciário graças apenas à sua qualificação profissional".
Ora
– prossegue Eco –, "se levarmos a sério esse raciocínio, eu não posso
concordar em ter uma operação de apendicite feita por um cirurgião, ou mandar
meus filhos para a escola – e poderia até mesmo resistir a uma ordem de prisão
por um policial; porque essas pessoas são autorizadas a executar suas funções
devido às suas qualificações profissionais e não por eleição popular."
Quase
duas décadas depois, em janeiro desse 2022, li nos jornais brasileiros que o então
presidente "desobedeceu a uma determinação do presidente do Supremo
Tribunal Eleitoral e não compareceu à sede da Polícia Federal para prestar
depoimento no inquérito que apurava um vazamento de investigação sobre ataque
de hacker a urnas eletrônicas". Isso apesar da sua "atuação direta,
voluntária e consciente" na quebra daquele sigilo, conforme termos da
investigação. Ele se colocava acima da lei porque o povo (e Deus, segundo ele) foi
quem o colocou no comando.
Chamou-me a atenção, neste ponto, o conceito de "povo", ou de "eleição popular". Berlusconi, falecido em 2023, era dono da maior rede de empresas de comunicação da massa na Itália. E nos seus dias de primeiro-ministro a internet apenas engatinhava. Hoje, plataformas de redes sociais atingem mais pessoas – e mais diretamente, através do celular – do que as telas gigantescas das TVs.
O Povo e o Voto
Para Eco, "como uma entidade única,
natural, congregando as mesmas vontades, sentimentos ou valores morais, o povo
não existe". Segundo ele, o que existe são grupos de cidadãos, com suas
crenças, princípios e mesmo idéias diferentes. Assim torna-se mais correto
dizer que um presidente (ou qualquer outro representante) foi eleito pela
maioria dos votos dos "cidadãos", do que dizer simplesmente que ele
foi eleito "pelo povo".
Dentro
desse enfoque, se "povo" não existe, os populistas (hoje, como de
praxe) sempre tentam (e geralmente conseguem...) criar – segundo Eco –
"uma imagem virtual de vontade popular".
A palavra virtual, embora usada naquele
texto de 2003, ganha dimensão nova nos dias de hoje. A televisão torna-se
obsoleta diante das redes sociais. Afora ideologia, envolvimento e compromissos
comerciais, as emissoras de televisão, em países democráticos, são sujeitas a
certas formas de controle, normas legais a serem observadas. Já uma plataforma
digital se torna uma ferramenta poderosa – quase não controlada, de custo
baratíssimo, quase nulo – para a implementação e manutenção do populismo.
Outro
fator, as técnicas de venda, me chama a atenção. Uma delas, muito usada, é
"ser vítima de perseguição". Funcionou, naquele ano, como um escudo
para o então presidente do Brasil, razão pela qual ele decidiu não atender ao
chamado de um juiz federal.
Trago
aqui um outro ponto que não estava no contexto da Itália, pelos idos de 2003: o
uso da fé, o uso das religiões – quanto mais dogmática, melhor – para manter no
cabresto esse tal "povo virtual" citado por Umberto Eco. Esse povo,
alimentado pelo que vem das redes sociais, obedece ao que vem dos seus
dirigentes, de forma cega, pré-medieval até, ignorando erros desses mesmos dirigentes
– sejam eles falhas acidentais ou crimes premeditados.
Eco acerta de novo lá no título do livro: o populismo, avançando hoje a passos largos, é uma força gigantesca que vem contribuindo para atrasar o relógio da história.
Um comentário:
" As lições de marketing de Barack Obama ficarão marcadas na história recente da humanidade. Gostando dele ou não, o presidente americano foi um marco na trajetória política, não só dos Estados Unidos como do mundo.
A eleição do ex-presidente significou uma revolução no planejamento da campanha política norte-americana de 2008. O uso da rede mundial de computadores não era uma novidade, mas o modo como o candidato usou os recursos da internet transformou-se em parâmetro para especialistas em marketing político. "
( Data Goal )
Talvez a direita tenha aprendido, e bem, essa lição.
😏😏😏
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