quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Míriam Leitão - Fingir não ver o que propõe


- O Globo

A surpresa do presidente Bolsonaro com as propostas da política econômica é falsa ou ele nunca entendeu coisa alguma do que sua equipe vem prometendo desde a campanha. Quando o ministro Paulo Guedes fala em desindexar as despesas do orçamento, o que é? É não corrigir pela inflação os gastos, entre eles, as pensões e aposentadorias. Em outras palavras, congelar. Este governo fez várias propostas polêmicas. Sugeriu adiar o BPC, reduzir acesso ao abono, cobrar imposto de desempregado e até o emprego sem salário. Onde estava Bolsonaro em seu próprio governo que nada viu?

Ele sempre soube o que estava sendo proposto, tanto que ontem autorizou o senador Márcio Bittar a continuar os estudos para um programa social amplo. Bittar está tentando encaixar no orçamento ou na PEC do Pacto Federativo. Entre as medidas que estuda está o congelamento do salário mínimo para financiar o Renda Brasil, conforme o próprio senador revelou ao repórter Marcello Corrêa de O GLOBO. Ou seja, tirar do pobre para o paupérrimo.

Todas as ideias que o governo tem apresentado têm essa característica que o presidente demagogicamente atribuiu à “gente que não tem coração”. Tudo em seu governo possui essa marca. Na proposta original da reforma da Previdência estava a ideia de que o beneficiário do BPC — idoso muito pobre ou deficiente — ao chegar aos 65 anos recebesse apenas R$ 400 em vez de salário mínimo. E só aos 70 anos tivesse direito ao valor integral. O Congresso derrubou. Propôs também reduzir de dois para um salário mínimo a renda dos que recebem abono salarial. O Congresso derrubou.

Depois o projeto enviado era o de criar um programa chamado de “emprego verde e amarelo” que seria financiado por um imposto cobrado de quem ficasse desempregado e recebesse o seguro-desemprego. Essa forma esdrúxula de financiar o programa acabou caindo também. Não foi a única ideia ruim. Em geral elas são abatidas pela reação da opinião pública, dos políticos ou da Justiça. Em março, o governo baixou uma MP que permitia a suspensão do salário por quatro meses. Depois das críticas, revogou a própria MP.

O Ministério da Economia quer “quebrar o piso” dos gastos públicos. Há muito tempo o país precisa sim flexibilizar o Orçamento, mas antes é preciso perguntar de onde tirar. Se acontecer o que o governo propõe, naquele projeto dos três Ds, desindexar, desvincular e desobrigar, todos os percentuais fixos para áreas como saúde e educação poderão cair. O problema é onde serão realocadas as despesas. Nesse governo é certo que serão mais afetados os gastos mais necessários. Enquanto se fala em desvincular as outras despesas, o Ministério da Defesa tenta vincular a sua. Quer 2% do PIB anual.

Esse governo chegou a propor que no ano de 2021 não houvesse o Fundeb, o que provocaria uma tragédia na educação brasileira. Pensou em adiar o Censo para transferir os recursos para o Ministério da Defesa. Antes da pandemia havia sido reduzido em mais de um milhão o número de beneficiários do Bolsa Família, 60% deles moradores dos estados do Nordeste. Os governadores da região tiveram que ir ao Supremo contra isso.

Sensibilidade social não há no atual governo. Mesmo quando eles têm razão em parte, o método é errado. A tese sobre o abono salarial é que jovens da classe média acabam recebendo quando estão no início da carreira. Por que então não introduzir um recorte de renda familiar como exigência para receber o benefício? No caso do BPC, o que se diz é que há gente recebendo que não teria direito, porque tem renda acima do que a lei estabelece. Isso se resolve com fiscalização e cruzamento de dados. Aliás, esse acompanhamento tem que ser constante nas políticas públicas.

No ajuste fiscal quais são as despesas que se deve atacar? É fundamental saber escolher, ter um projeto e comunicá-lo de forma clara e transparente. Na democracia todas as despesas têm defensores, mesmo as mais injustas, como acaba de se ver na ambiguidade presidencial em relação aos gastos tributários com as igrejas.

Bolsonaro manipula os fatos com o objetivo de enganar. Quer que os outros fiquem com os ônus de qualquer medida impopular do governo, para que ele fique apenas com o bônus. Finge não ver inclusive o que ele mesmo assinou e propôs.

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