sábado, 11 de novembro de 2023

Eduardo Affonso - Objeção de consciência

O Globo

Para pontuar bem no Enem, é preciso rezar pela cartilha do governo, e o aluno se adestra para escrever o que os corretores querem ler

Está na Constituição Federal (art. 5º, VIII):

Se vale para o serviço militar, o exercício profissional, o trabalho ao sábado etc., por que não para o Enem? Afinal, se quiserem acertar algumas das questões, muitos terão de se manifestar contrariamente àquilo em que acreditam.

Há quem ache que o agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo. Há quem veja no agro um ogro, o bicho-papão que provoca chuvas de veneno e violência (concreta e simbólica) contra a pessoa do pobre camponês. O tema permite ambas as abordagens, mas só os do segundo grupo (que ainda usam a palavra “camponês”) estarão contemplados no gabarito oficial.

Uma questão bem formulada proporia a discussão de múltiplos pontos de vista, pondo à prova a capacidade de compreender e articular argumentos contrastantes. Mas não: para pontuar bem, é preciso rezar pela cartilha do governo de turno, e o aluno se adestra para escrever o que os corretores querem ler e acionar o botão que lhe dará sua recompensa — ainda que não corresponda ao que ele pensa.

Mais que avaliar o nível de conhecimento ou a capacidade de análise crítica — fundamentais para o sucesso no ensino superior —, o exame se empenha em selecionar os já catequizados ou passíveis de catequização — sem deixar escapar a oportunidade de catequizar um pouco mais.

A palavra “molambo” é racista? Etimológica, cultural e historicamente, não. Chegou até nós por meio da língua quimbunda, e sempre significou pano velho, farrapo — prestando-se, e muito bem, a sentidos figurados. Machado de Assis fala em “um triste molambo de mulher”; o samba-canção de Augusto Mesquita diz que a amada ficou “pra impedir que a loucura/fizesse de mim/um molambo qualquer”. Molambento e esmolambado tornaram-se depreciativos para pobres, maltrapilhos — não necessariamente afrodescendentes. Mas o Enem endossa a tese do cunho racial — perdendo a chance de discutir polissemia e uso simbólico da linguagem.

Uma saída para o irresistível apelo à doutrinação seria fazer cadernos de prova conforme os matizes ideológicos. O estudante escolheria entre a prova amarela (de direita), vermelha (de esquerda) ou azul (liberal) — e as questões seriam corrigidas por bancas alinhadas com cada uma dessas vertentes. Assim, para ter acesso à universidade, nem o jovem conservador precisaria se ajoelhar no milho (ou na soja) e demonizar o agronegócio, nem o progressista se submeter a chamar de “revolução” o golpe de 1964 ou o liberal endossar que “entre o masculino e o feminino só existam mínimas diferenças” (e pudesse propor um placar mais apertado para esse 7 x 1 da cultura sobre a biologia).

Até lá, serão males menores exigir que o aluno saiba o significado de landfills, leftovers e perishables enquanto o responsável pelo conteúdo de ciências humanas não diferencia “hora” e “ora”. Ou que demonstre domínio da escrita — e o enunciado da redação tartamudeie com “enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado”.

(Nas questões subjetivas de múltipla escolha, bem podia haver opção equivalente ao voto em branco. Assim, ninguém precisaria tentar adivinhar o que passa pela cabeça dos “especialistas”, que sabem das canções do Caetano mais que o próprio Caetano.)

 

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